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A violência por trás dos símbolos ocultos do crime organizado

Atualmente, o Brasil possui 88 facções ativas, sendo que apenas o PCC e o Comando Vermelho têm ramificações fora do país

Nos últimos meses, o Brasil registrou uma série de assassinatos brutais motivados por gestos simples que, em algumas regiões, são interpretados como códigos de facções criminosas. De acordo com dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), esses grupos não apenas disputam territórios, mas também se apropriam de símbolos culturais e gestos, transformando-os em marcas de poder. A falta de conhecimento sobre essas associações têm colocado jovens e até crianças em situações de extremo perigo. Especialistas são unânimes ao afirmar que as ações das facções criminosas no país vêm aumentando a cada ano e que a expansão de suas atividades ocorre, em parte, pela insuficiência de ações do Estado.

Os símbolos utilizados por facções criminosas no Brasil, como o "V", do Comando Vermelho (CV), e o gesto de três dedos associado ao Primeiro Comando da Capital (PCC), são marcas de poder e identidade dentro e fora dos territórios controlados por essas organizações. O "V", que simboliza vitória, foi apropriado pelo CV para representar sua força e presença, enquanto o gesto de três dedos é utilizado pelo PCC como uma forma de reconhecimento interno entre seus membros. Embora pareçam inofensivos, esses gestos carregam significados profundos nas áreas dominadas pelas facções e, quando utilizados inadvertidamente, podem ser vistos como provocações, colocando vidas em risco. A disseminação desses símbolos tem amplificado os perigos.

Na sexta-feira, um homem de 40 anos foi morto na comunidade do Catiri, em Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. De acordo com testemunhas, ele foi confundido por traficantes com um miliciano porque vestia uma roupa preta.

Vidas perdidas

Nos últimos meses, vários casos chamaram atenção para a violência gerada pela simbologia. Henrique Marquez de Jesus, de 16 anos, foi morto em Jericoacoara, Ceará, após fazer um gesto de três dedos enquanto posava para uma foto. Ele era turista e visitava a região ao lado do pai. No Mato Grosso, Jonatan Roberto Garcia Parpinelli, 36, foi assassinado em Diamantino por postar uma foto com o mesmo gesto. Em Porto Esperidião, as irmãs Rayane e Rithiele Porto, 25 e 28, foram sequestradas e brutalmente assassinadas, também por terem postado fotos em suas redes sociais fazendo símbolos com as mãos. Na Bahia, Marcos Vinícius Alves Gonçalves, 20, também foi morto por causa de uma foto com gestos interpretados como ligados ao Comando Vermelho. Em Londrina, Gabriel Fernando dos Santos Lima, 17, foi morto a tiros enquanto dormia em casa. O coroinha era catequista e fotógrafo da Paróquia São José, no distrito de Irerê. A Polícia Civil do Paraná investigou o caso e considerou a possibilidade de o coroinha ter sido morto por engano.

Na Paraíba, o conflito entre as facções "Estados Unidos" e "Al-Qaeda" exemplifica como a simbologia é utilizada como arma de controle. A facção "Al-Qaeda", abrasileirada para "Okaida", surgiu como oposição à hegemonia dos "Estados Unidos". Nesse contexto, roupas com estampas da bandeira americana, estrelas e listras passaram a ser vistas como provocação em áreas controladas pela Al-Qaeda. Há alguns anos, cortes de cabelo com desenhos e riscos na sobrancelha também foram apropriados pelas facções. Segundo investigações, vários crimes ocorreram em diferentes estados, envolvendo jovens que adotavam esses estilos sem conhecer as conotações. Em Fortaleza, Jefferson Brito Teixeira, 14 anos, foi morto a tiros em 2020. O Ministério Público do Ceará concluiu que o adolescente foi assassinado por criminosos que acreditavam que os cortes na sobrancelha simbolizavam pertencimento a uma facção criminosa.

O Correio entrevistou, com exclusividade, um jovem que tem contato com membros de uma facção e forneceu detalhes sobre as ações violentas dessas organizações, que se apropriaram de diversos símbolos. Ele assegurou não ter envolvimento direto com nenhuma facção, mas afirmou conhecer pessoas associadas a elas. "Não tenho envolvimento direto, mas crescemos em áreas onde as facções estão presentes e acabamos sabendo como elas agem, o que fazem, seus interesses e como se comportam", declarou. Segundo ele, é comum nas periferias ouvirem-se expressões como "tudo 2". "Essa expressão significa que todas as pessoas daquela região pertencem ao mesmo grupo", explicou.

Simbologias

O professor Maurício Stegemann, especialista em Direito Penal e Criminologia da Universidade de São Paulo (USP), destaca que a urbanização excludente das grandes cidades brasileiras é um dos fatores que contribuem para a territorialização dos espaços marginalizados. Segundo ele, essa dinâmica cria fronteiras que favorecem vínculos de solidariedade mecânica entre os moradores dessas áreas. "Esses vínculos são reforçados por símbolos próprios, utilizados como forma de identificação entre os membros de cada grupo ou facção", explica Stegemann, ao apontar que os símbolos utilizados pelas facções não são apenas marcas de pertencimento, mas também ferramentas de diferenciação.

O sociólogo Marcelo Senise ressalta que a utilização de símbolos pelas facções criminosas é um fenômeno contemporâneo, mas com raízes históricas. "Os símbolos, antes vistos como comuns, são transformados em ferramentas de controle social. É como um marketing que legitima sua presença territorial e intimida quem não faz parte do grupo", afirma o sociólogo.

O especialista ressalta que a apropriação de gestos simples, como o "V de vitória" e outros sinais, é também uma estratégia midiática das facções. "Essas ações têm um objetivo claro de ganhar as páginas de jornal, reafirmar a presença do grupo e demonstrar poder tanto para a sociedade quanto para facções rivais", analisa.

Gabriel Ferreira, criminalista e mestre em Direitos Humanos, reforça que a apropriação de práticas culturais, como cortes de cabelo e riscos na sobrancelha, reflete o domínio simbólico das facções. "Hoje, qualquer escolha estética ou gestual pode ser perigosa dependendo da região onde você está", afirma, ressaltando que essa apropriação cultural demonstra a ausência do Estado em áreas vulneráveis.

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A influência das redes

Luciana Salgado, consultora de marketing e novas tecnologias, destaca que a desinformação sobre a simbologia usada por facções criminosas torna a sociedade extremamente vulnerável. "O desconhecimento sobre o linguajar, os gestos e o local de atuação de facções pode levar qualquer cidadão a pagar com a própria vida. Muitas pessoas não percebem que esses códigos, impostos pela criminalidade, têm um peso significativo", alerta. Essa falta de informação é particularmente grave em um ambiente onde gestos, estilos e até palavras podem ser interpretados como desafios ou provocações.

A especialista também chama atenção para o uso estratégico das redes sociais pelas facções criminosas. Segundo ela, plataformas como Facebook, Instagram e TikTok são usadas para aliciar jovens e crianças, atraídos por uma vida de ostentação. A facilidade de acesso às redes sem a devida regulamentação é um fator que agrava essa situação. "A ausência de controle adequado facilita o contato direto entre os criminosos e os jovens, transformando as redes sociais em um terreno fértil para o aliciamento", analisa.

Autoridades

A Secretaria de Segurança Pública do Mato Grosso (SSP-MT) disse, em nota, que a investigação da Polícia Civil identificou 16 pessoas envolvidas nas mortes das irmãs Rayane e Rithiele Porto. "O inquérito policial, conduzido pela delegacia de Porto Esperidião, foi concluído em 30 de setembro. Oito adultos foram indiciados por organização criminosa, extorsão mediante sequestro qualificada por morte, extorsão mediante sequestro qualificada por lesão grave, tortura e furto. Oito adolescentes responderão a atos infracionais análogos aos crimes apontados na investigação. Seis investigados foram presos e apreendidos durante a operação 'Circus', e outros 10 foram detidos em flagrante na ocasião do crime", diz a nota.

O Correio também tentou contato por e-mail e por telefone com a Secretaria de Segurança Pública do Ceará, mas eles optaram por não se manifestar sobre o assunto. As Defensorias Públicas dos estados do Mato Grosso e Ceará também foram procuradas, mas não houve respostas.

Para especialistas, há falhas do Estado. Maurício Stegemann, especialista da Universidade de São Paulo (USP), critica a ausência de políticas públicas eficazes para combater a desinformação em áreas dominadas por facções. "A falta de campanhas informativas e educativas torna as pessoas mais vulneráveis à violência simbólica, especialmente em regiões onde o controle territorial é exercido com rigor", destaca.

Embora a violência simbólica tenha ganhado destaque, o sociólogo Marcelo Senise acredita que o fenômeno pode ser passageiro. "Não vejo isso prosperar a longo prazo. Essas ações, apesar de brutais, muitas vezes são casos isolados que não se sustentam. Porém, enquanto persistem, causam um impacto devastador", acrescenta.

 


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