Valdirene Boaventura Santos — vítima de trabalho análogo à escravidão na infância — comparou as violências de ter vivido em condições desumanas de trabalho com o fato de ter sido abandonada pela mãe aos oito anos, na casa de uma família, na cidade de Mascote, extremo sul da Bahia.
“Eu não sabia qual era a pior violência, se era o que eu passava na casa da patroa, ou que eu vivenciava na casa da minha mãe. Porque as pessoas com quem minha mãe se relacionava também praticavam as mesmas coisas com as minhas irmãs”, relata Valdirene.
Atual diretora do Sindicato das(os) Trabalhadoras(es) Domésticas(os) da Bahia (Sinddoméstico/BA), Valdirene Santos contou ao Correio sua história de vida e ressaltou seu papel no combate a trabalhos análogos à escravidão no Brasil.
Nesta terça-feira (28/1), dia Nacional do Combate ao Trabalho Escravo, o Ministério do Trabalho e Emprego divulgou que ao menos 2.004 pessoas foram resgatadas de trabalhos análogos à escravidão no Brasil em 2024. Nesse contexto, a história de Valdirene Boaventura Santos reforça a necessidade do combate a situações vividas por ela.
Empregada aos oitos anos
A infância de Valdirene foi marcada por trabalhos forçados, traumas psicológicos e frustrações. Ela contou ter sido abandonada após o pai se separar da mãe — que tinha cinco filhos. "Minha mãe pegou três filhas que tinha, e me deixou em uma casa de família", relatou.
Essa família, segundo Valdirene, disse que a colocaria em uma escola com uma falsa promessa de que ela estudaria. Além de não ter sido levada ao colégio, Valdirene afirma te sofrido assédio sexual de um integrante da família. "Meu patrão sempre ia no quarto, na cama beliche (onde eu dormia) e mexia comigo", descreveu a integrante do sindicato.
Valdirene voltava para a casa da mãe quando seu patrões viajavam. Ela inclusive contou que o patrão a assediava sexualmente. "Quando contava a minha mãe, ela dizia que eu fazia corpo mole, e me mandava retornar voltar para o local de trabalho", acrescentou.
Nova cidade
Valdirene, então, foi trabalhar na casa de outra família. "Eu recebi uma proposta para deixar a cidade onde morava e partir para Salvador, onde eu iria estudar". Determinada a seguir seu sonho, ela tentou viajar sozinha, mesmo sendo menor de idade, e foi no bagageiro do ônibus, em um trajeto de nove horas.
Após um ano trabalhando na capital baiana, a promessa de ajudar Valdirene a estudar não havia sido cumprida, e ela nem recebia o salário combinado. Então, pediu para ir embora. Esse pedido não foi bem recebido pelos chefes da casa, que começaram a espancar Valdirene e a trancá-la dentro de um quarto.
Certa vez, a patroa falou que ela poderia ir embora e até pediu para que Valdirene se preparasse. No entanto, quando chegou o dia, a jovem foi trancada no quarto enquanto a família viajou.
Fuga
Ao procurar a polícia e contar a situação dela, o policial disse que não poderia fazer nada por ela, e a direcionou para o sindicato das empregadas domésticas. No Sindicato, ela foi atendida por uma integrante chamada Creuza, que a orientou acionar o Ministério Público, já que Valdirene menor de idade.
Valdirene, então, voltou à casa da patroa. Depois de 45 dias, ela conseguiu fugir da casa e ir ao encontro de Creuza, que fez questão de levá-la até o ministério público, onde o caso foi acompanhado durante um ano, antes de ser arquivado.