Áudios vazados da influencer Ana Paula Minerato na última semana geraram polêmica nas redes sociais ao expor supostos comentários racistas da apresentadora sobre a cantora Ananda, do grupo Melanina Carioca. Nos registros, ela se refere à artista como "neguinha" e chama seu cabelo de "duro". O caso gerou ampla repercussão e Minerato acabou desligada da Gaviões da Fiel, escola de samba na qual era musa de carnaval, e da Band, emissora em que apresentava um programa desde 2015. Além disso, passou a ser alvo de uma investigação da Secretaria Estadual da Justiça e Cidadania, da Justiça de São Paulo.
O caso da influencer não é o único e nem o primeiro em um cenário que tem viés de gênero. O estudo Racismo e Injúria Racial Praticados nas Rede Sociais, publicado em outubro do ano passado, realizado pela Faculdade Baiana de Direito em parceria com o portal jurídico Jusbrasil e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), levantou que as mulheres concentram 58,54% dos casos de racismo e injúria racial em redes sociais julgados em segunda instância no Brasil. Os homens representam apenas 18,29% e outros 23,17% não têm gênero identificado.
O relatório também aponta que a participação de mulheres entre os agressores é significativamente maior do que o usualmente observado em estudos sobre outros tipos de crimes. Entre os agressores, 55,56% são homens, mulheres são 40,74% e pessoas com gênero não identificado representam 3,7%.
"Ao todo, a pesquisa analisou 107 acórdãos (decisões colegiadas de um tribunal) disponíveis no banco de dados do Jusbrasil, que coleta informações públicas do Sistema Judiciário." Foram identificados também que os tipos de agressão mais comuns são os de nominação pejorativa e animalização, e os principais tipos de provas são os "prints" (capturas de tela) que têm a natureza de prova documental, boletins de ocorrência e depoimentos de testemunhas, mostra o relatório Racismo na Internet — evidências para formulação de políticas digitais, da Secretaria de Comunicação (Secom) do governo e do Ministério da Igualdade Racial, publicado em janeiro deste ano.
O professor e chefe do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Guilherme Marcondes, explica que mulheres negras sofrem com dois opressores sociais: o racismo e o machismo. "É possível compreender que mulheres negras são, nas sociedades ocidentais, aquelas que sofrem com um duplo efeito de seus marcadores de raça e gênero, neste sentido, o racismo e o machismo vigente nas sociedades lhes oprimem duplamente. Portanto, como na sociedade que nos circunscreve, nas redes sociais, que fazem parte desse todo social a que chamamos de sociedade, os marcadores sociais de classe, gênero e raça fazem com que mulheres negras das classes populares sejam alvo constante de violências e opressões", frisa.
O professor comenta ainda que casos como o de Minerato não necessariamente contribuem para a conscientização sobre o racismo nas redes sociais e que são, na maioria das vezes, focado nos agressores e não nas vítimas. "Acredito que seja fundamental que a agressora receba as sanções que lhe cabem em termos legais, porém a atenção não deve servir para dar mais visibilidade para a agressora."
Ananda comentou sobre o caso, após dizer que havia ido à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) na Lapa, no Rio de Janeiro, para fazer um boletim de ocorrência contra Ana Paula. "Com certeza, não afetou só a mim", iniciou Ananda no vídeo. "Eu fui a pessoa para quem foram proferidas essas palavras, mas ela 'cutucou' um negócio muito maior."
Drible ao algoritmo
As redes sociais, como o Instagram ou o Tiktok, utilizam uma espécie de inteligência artificial que funcionaria para barrar esses ataques racistas e violentos por meio de palavras-chave, mas Letícia Chagas, co-deputada estadual pelo Movimento Pretas do PSol, explica que o algoritmo é facilmente burlado e que sua vivência no meio digital é marcada por ataques racistas que sofrem pouca ou nenhuma represália.
"Eu recebo, vez ou outra, ataques abertos nas redes sociais. E esses ataques abertos não sofrem nenhum tipo de penalidade dentro das redes, sobretudo no Instagram, que é o lugar em que eu mais trabalho. Hoje, as redes sociais costumam impedir um conteúdo que aborde racismo, que aborde discriminação, mas os ataques abertos não citam essas palavras, né? Uma coisa que comigo é muito comum de acontecer são ataques ao meu cabelo. Se utilizam de palavras que são difíceis para um algoritmo, para uma inteligência artificial conseguir identificar isso como racista", conta.
Para Chagas, o algoritmo, que deveria ajudar, acaba atrapalhando. Devido às palavras-chaves serem selecionadas por inteligência artificial, a palavra "racismo" não pode ser dita nas redes por ser considerada ofensiva. Essa medida dificulta produtores de conteúdos negros de divulgar sua vivência e falar de suas dores.
A militante explica que é necessário utilizar "subterfúgios" como troca de letras ou modificação de som para o conteúdo ter o alcance necessário. "Se a gente quer falar da nossa vivência, se a gente quer falar das nossas dores, a gente precisa se utilizar de uma série de ferramentas para que a rede social não impeça o nosso conteúdo de ter alcance. Às vezes, é preciso modificar o som na edição, é preciso trocar letras da palavra racismo para que aquilo não seja considerado um conteúdo impróprio, o que é um grande absurdo", aponta.
Essa realidade, para Letícia, exige um olhar atento, pois, mesmo sem episódios de grande repercussão, a discriminação racial continua sendo uma constante no ambiente on-line, prejudicando milhares de pessoas diariamente. Ela lembra, ainda, que, especialmente no Brasil, o racismo, às vezes, adquire uma conotação de sutileza. "Não é sempre que casos como o da Ana Paula Minerato acontecem. Mas mesmo assim, a gente está sofrendo racismo dentro das redes quase todos os dias", reforça.
Marco Civil
O caso de racismo envolvendo Minerato reacendeu o debate sobre o racismo nas redes sociais, coincidindo com o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a responsabilidade das plataformas digitais pelo conteúdo publicado por seus usuários. A discussão, que pode alterar o Marco Civil da Internet, busca intensificar o combate a discursos de ódio e discriminação no ambiente virtual, no qual o racismo ainda é um problema constante. Para o advogado Daniel Blank, especialista em direito digital, é necessário que as big techs adotem uma postura mais proativa.
Ele reforça que as empresas de tecnologia precisam agir de forma mais efetiva, indo além das medidas atuais, que "nem sempre são eficazes ou consistentes", explica. "A responsabilidade das plataformas deve ir além de uma simples resposta às denúncias, sendo necessário um esforço contínuo para identificar e bloquear conteúdos prejudiciais antes que se espalhem", argumenta.
Blank acredita que, caso o STF decida responsabilizar as plataformas, haverá o "fortalecimento da responsabilização", obrigando as empresas a agir com maior rapidez na remoção de conteúdos racistas e na prevenção de novos casos. No entanto, ele alerta que uma decisão contrária poderá "enfraquecer os mecanismos de combate ao racismo, permitindo que conteúdos prejudiciais permaneçam on-line por mais tempo".
O advogado diz também que é preciso garantir que o combate à discriminação não seja usado para comprometer a liberdade de expressão. "Isso pode ser alcançado por meio de políticas claras que definam o que constitui discurso de ódio", conclui.
*Estagiários sob a supervisão de Andreia Castro
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