Tragédia no Sul

Vítimas de enchentes no RS iniciam 2025 com a esperança de um ano melhor

Após enfrentar desastres climáticos por dois anos consecutivos, população espera que o poder público esteja mais preparado

 Iolanda (E) e Sandra (D) seguem amigas e retomando a vida em POA -  (crédito:  Arquivo Pessoal)
Iolanda (E) e Sandra (D) seguem amigas e retomando a vida em POA - (crédito: Arquivo Pessoal)

As enchentes que devastaram quase todo território do Rio Grande do Sul, entre abril e maio deste ano, deixaram muitas cicatrizes. Mais de 2,3 milhões de pessoas foram atingidas e, muitas dessas, precisaram deixar suas casas para ficarem protegidas. O Correio voltou a conversar com gaúchos entrevistados durante o desastre para saber como foi a etapa de reconstrução e as expectativas para o novo ano.

"O recomeço foi muito triste, estava tudo muito horrível. Móveis na rua, que tiraram de dentro do apartamento, um odor horrível dos esgotos, muito barro na rua", relembra Iolanda Espíndola Sarmento, 73 anos."O condomínio que eu moro estava todo aberto, conseguia entrar até sem autorização, sem nada. Tudo muito úmido e o que tinha no apartamento, estragado", conta a aposentada sobre seu retorno para casa no bairro Humaitá, um dos mais afetados pela cheia do Guaíba, em Porto Alegre.

A reportagem conversou pela primeira vez com a gaúcha em maio, enquanto ela aguardava atendimento no centro de acolhimento de Capão da Canoa, no Litoral Norte do estado. A cidade montou uma estrutura para receber cerca de 100 mil pessoas que deixaram a capital em busca de um local seguro.

À época, ela contou que abrigou 15 vizinhos em seu apartamento na na zona norte da cidade, já que morava no terceiro andar, onde a água não chegou. Eles precisaram deixar o local, navegando em cima de um colchão, depois de passarem muito tempo sem água, luz e gás. "Teve um casal que guardou as coisas no meu apartamento e, assim que eu voltei, eles tiraram para deixar livre o espaço. Eles ficaram sabendo que o meu filho também perdeu tudo com a enchente e doaram para ele uma geladeira", conta feliz a aposentada.

Junto com Iolanda, no litoral gaúcho, estava a amiga Sandra da Rocha, 65, que mora no mesmo bairro de Porto Alegre. "Estava bem precário quando consegui voltar. O entorno do bairro Humaitá não tinha nada, nenhuma estrutura. Até hoje a gente vai no mercado que foi muito afetado e não tem quase nada. Parecia um bairro fantasma. Tinha entulho para tudo quanto é lado, lixo, lama", lamenta a moradora, que relembra o dano material e mental das enchentes. "As sequelas, vou te dizer, foram perdas materiais, mas a saúde da gente ficou zero. Até hoje eu trato de depressão e ansiedade. Falo sobre isso e me emociona demais", diz.

Ainda em maio, quando falou com o Correio pela primeira vez, Sandra já relatava sintomas que ficaram da tragédia, como crises de pânico. Ela faz acompanhamento psicológico para tratar a situação e pretende deixar o apartamento onde mora, por medo de mais um episódio similar.

"Quero me mudar daqui porque o medo é grande de as enchentes voltarem. A gente mora perto do Guaíba e, se não fizerem uma drenagem, nosso rio vai transbordar de novo e a água vai vir. Tenho medo. Quando chove um pouco mais, a gente já fica com aquela coisa de viver tudo de novo", conta.

Desde que as enchentes ocorreram, os poderes públicos começaram a tomar medidas para tentar evitar novos episódios. A nível municipal, a Prefeitura de Porto Alegre trabalha na recuperação dos diques que romperam, por conta do maior nível histórico do Rio Guaíba, de 5,73 metros. Procurados pelo Correio, eles não detalharam como isso está sendo feito.

Já pelo estado, a Secretaria de Reconstrução do governo gaúcho afirmou que já destinou R$ 4,1 bilhões para ações de reconstrução. Para enfrentar a crise meteorológica e seus impactos, foi criado o Plano Rio Grande, que é o programa de reconstrução, adaptação e resiliência climática, que propõe uma série de medidas para diminuir os impactos causados pelas chuvas.

"A atuação ocorre em ações emergenciais, que são consideradas de curto prazo; ações de reconstrução, planejadas como iniciativas de médio prazo; e no eixo chamado 'Rio Grande do Sul do futuro', com projetos e obras de longo prazo", informa o órgão em nota.

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Auxílio

Raquel Nunes, de 25 anos, conversou com a reportagem em Capão da Canoa também no mês de maio, em uma tenda de saúde montada pela prefeitura. Ela esperava atendimento médico para os sobrinhos que foram resgatados com ela de casa por um jet ski em Eldorado do Sul, na Região Metropolitana — a cidade foi uma das mais afetadas pelas chuvas e 80% das casas ficaram debaixo d'água.

Para ela, a ajuda do poder público foi essencial para retomar a vida. "Foi um choque chegar em casa e ver tudo vazio. A enchente levou tudo, tudo mesmo. Ainda estamos em reconstrução. Consegui comprar uma cozinha para a minha mãe, fui comprando devagar com o dinheiro do Auxílio Reconstrução (do governo federal), conseguimos comprar duas camas, dois guarda-roupas e estamos ainda em processo", descreve Raquel sobre a volta para casa.

"Ainda tem marca da enchente nas casas, não arrumaram muitas coisas e a maioria das pessoas foram embora, não quiseram voltar. Eu gostava muito de chuva, mas agora... Umas semanas atrás começou a chover muito e vinham aquelas rajadas de vento, de levantar as coisas. Eu que não tinha medo de chuva, agora, toda vez que chove, me dá uma sensação estranha", acrescenta a gaúcha.

Segundo Raquel, todos os sobrinhos que foram resgatados estão bem, inclusive, Davi, que completou oito meses recentemente — na época da enchente, ele tinha menos de um mês de vida e foi tirado da casa em que estava pelos bombeiros, dentro de uma mochila. Todos voltaram a morar em Eldorado e seguem reconstruindo, aos poucos, o que precisam dentro de casa.

O auxílio citado por Raquel beneficiou cerca de 374 mil famílias gaúchas e foi criado pelo governo federal — que investiu, até setembro deste ano, R$ 1,9 bilhão para esse fim. Além disso, foi criado o Fundo do Plano Rio Grande (Funrigs), que garante orçamento federal para auxiliar no enfrentamento das consequências sociais, econômicas e ambientais do evento climático extremo.

De acordo com a pasta, diversos recursos têm sido destinados para ações tanto de reconstrução como de prevenção, por meio de programas como o Fundo a Fundo da Defesa Civil, o programa de desassoreamento de rios e canais e o Volta por Cima, que ofereceu assistência às famílias atingidas pela enchente, já recebeu mais de R$ 250 milhões em repasses do Estado, entre outras iniciativas.

Avaliação política

As tragédias climáticas, sem dúvidas, tiveram um impacto político nas eleições municipais e os prefeitos que tomam posse neste dia 1º com responsabilidade redobrada de pensar em políticas públicas para evitar novos desastres. A falta de atenção dos parlamentares e o descaso do governo com a prevenção foram críticas latentes aos governantes. Alguns conseguiram se eleger, já para outros, a catástrofe foi decisiva para renovação política.

Entre as entrevistadas pelo Correio, as opiniões são divididas. Para Iolanda, o prefeito reeleito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), "fez o possível" durante as enchentes. Sandra, por sua vez, é crítica à reeleição do chefe do Executivo gaúcho. "O povo reclama, reclama, mas elege sempre as pessoas erradas. Aí, depois, acontecem as coisas e querem reclamar. O prefeito precisa fazer muito mais para a nossa cidade voltar", declara. Melo foi ao segundo turno enfrentando a deputada federal, Maria do Rosário (PT), que teve grande rejeição e conseguiu apenas 38% dos votos válidos.

Na Região Metropolitana, as enchentes foram o assunto principal de campanha, o que gerou algumas mudanças, como em Eldorado do Sul, que elegeu Juliana Carvalho, do PSDB, adversária do então prefeito, Ernani de Freitas Gonçalves (PDT). Raquel conta que a frustração com o então governo municipal foi decisiva para os votos migrarem para outra concorrente.

"Nas primeiras semanas, pós- enchente, a prefeitura não teve muito empenho. Demoraram bastante para retirar os móveis da frente das casas", lamenta a gaúcha, dizendo que tem expectativa de que, a partir de 1º de janeiro, se intensifiquem as ações para reconstruir a cidade.

Vida nova

Com a chegada de 2025, as gaúchas se seguram na esperança de tempos melhores do que nos últimos dois anos, em que o Rio Grande do Sul registrou grandes catástrofes climáticas. "Eu me emociono muito quando penso no que aconteceu, parece que foi para amenizar os corações. Estou consciente de que foi um aprendizado. No próximo ano, desejo que tudo volte a funcionar melhor do que estava e que exista mais amizade", aponta Iolanda.

Sandra resume toda experiência à palavra força. "O que ficou de lição de tudo isso que aconteceu é força. Não só para mim, mas para outras pessoas, que tiraram uma força não sei de onde para passar por essa dificuldade. Força daquele momento e agora de conseguirmos fazer o que podemos e tentar, aos poucos, superar", declara.

Raquel conta que passou o Natal com a família de uma maneira diferente. "Foi o momento da família se reunir e contar como foi grato neste ano, mesmo com o que passou. Desejo para 2025 que isso não aconteça mais e os prefeitos cumpram com as palavras deles", diz a gaúcha, que relembra da importância da solidariedade. "A enchente mostrou que, tendo dinheiro ou não, todos foram para o mesmo caminho", acrescenta.

Mayara Souto
postado em 31/12/2024 16:00
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