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"Ações no Cerrado são urgentes porque o que resta é muito pouco", diz especialista

Professora da UnB reconhece avanços, mas afirma que é preciso fazer mais para evitar a degradação de biomas como o Cerrado. Ela considera, ainda, que estados, municípios e sociedade precisam contribuir no esforço pela sustentabilidade

 08/11/2024 Credito: Ed Alves/CB/DA.Press. Cidades. CB Agro recebe Mercedes Bustamante, Professora da UnB,  -  (crédito:  Ed Alves/CB/DA.Press)
08/11/2024 Credito: Ed Alves/CB/DA.Press. Cidades. CB Agro recebe Mercedes Bustamante, Professora da UnB, - (crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)

Membro da Academia Brasileira de Ciências e uma das autoridades de referência sobre o Cerrado, a professora da Universidade de Brasília Mercedes Bustamante reconhece avanços no controle do desmatamento do bioma. Mas considera a situação ainda preocupante, a demandar ações “urgentes”. 

A especialista acredita que a solução para mitigar as agressões ambientais passa por um conjunto de ferramentas. É preciso fortalecer a atuação de estados e de municípios na defesa do meio ambiente. No caso específico do Cerrado, a especialista defende incentivos para que proprietários rurais desmatem porções menores do bioma, abaixo do permitido pelo Código Florestal. 

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida aos jornalistas Carlos Alexandre de Souza e Adriana Bernardes. 

Em relação ao desmatamento e emissão de gases poluentes, como a senhora enxerga a situação atual? 

Os dados que saíram recentemente, divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), mostram uma redução do desmatamento na Amazônia. O Inpe monitora aquilo que a gente chama de corte raso — remoção completa ou quase completa de uma área de vegetação —, e eles mostram uma desaceleração do desmatamento no Cerrado. 

Mas, infelizmente, o desmatamento ainda está em um patamar muito alto, tanto na Amazônia, com cerca de 6 mil km² quadrados, e no Cerrado, com cerca de 8 mil km². No caso do Cerrado em particular, considerando um bioma que já perdeu 50% da sua cobertura. 

Então, aqui realmente as ações são muito urgentes, porque o que resta já é muito pouco. 

É mais importante ver o filme do que só a fotografia… 

O filme significa o que nós já perdemos, então coloca ainda um peso maior na conservação dos remanescentes. 

Eu tenho sempre muito cuidado também ao colocar que nós ainda temos 50% do Cerrado, porque não significa que esses 50% estão em condições ideais. Nós estamos perdendo grandes áreas contínuas, ficam pequenos fragmentos, degradados. 

A própria conservação dos 50% que permanecem é um ponto de preocupação também. 2024 foi um ano complicado, nós tivemos queimadas, incêndios florestais de grande extensão. Aquilo que não foi convertido, mas apresenta um processo de degradação. 

Fala-se muito que o Cerrado é resiliente, mas chega uma hora que a resiliência chega ao fim… 

Esse é um ponto importante. Ele tem uma resiliência, mas essa resiliência depende também de que fatores estressantes para o bioma não estejam presentes. 

A situação que nós observamos hoje é que, além do desmatamento e da degradação, nós vemos a transformação que a própria mudança climática global vem causando no Cerrado. 

Ele vem enfrentando múltiplas fontes de estresse e a resiliência também tem um limite, né? Chega um ponto em que você não tem mais a capacidade de recuperação do sistema. 

O que poderia ser feito? 

O primeiro ponto, efetivamente, é frear o desmatamento. Não é só o desmatamento ilegal. A gente precisa frear o desmatamento sem adjetivos, porque, pelo Código Florestal, pela Lei de Proteção da Vegetação Nativa, há a possibilidade de autorizar até 80% de conversão em propriedades privadas. Significa que a gente tem que considerar “bom, será que eu posso autorizar menos, porque a situação hoje já está muito crítica?”. Se nós continuarmos permitindo legalmente a supressão de vegetação no patamar de 80%, não vai sobrar Cerrado. 

O governo apontou que as queimadas deste ano foram em propriedades privadas. Existe, então, uma questão de titularidade? 

O Cerrado tem uma característica complexa, é um desafio. É a questão fundiária. Na Amazônia, a maior parte das terras são da União. A Amazônia tem uma extensão grande de chamadas “áreas não destinadas”, que a União pode destinar para a unidade de conservação.

Mas, no Cerrado, a maior parte da posse da terra é privada. Então a União tem pouco espaço, mas poderia apoiar a criação de novas unidades de conservação. Isso significa que, aqui, o processo tem que ser efetivamente de concertação e de conciliação entre o uso da terra e a conservação. Sem conservação, a gente não vai ter agricultura. 

Qual seria o conjunto de ações para frear o desmatamento do Cerrado? 

Um caminho é fortalecer os órgãos estaduais de meio ambiente, porque são eles que fazem a autorização dos estados. (É importante) que eles tenham 40%, porque a sua propriedade já está numa bacia muito degradada, muito desmatada, e a gente precisa conservar esses fragmentos”. 

E ao mesmo tempo, para o proprietário que diz “bom, eu não vou aproveitar 30% da minha a propriedade que eu poderia. Qual é o incentivo que eu posso ter a mais para conseguir manter isso?”.  

 

A União Europeia decretou que, a partir de 2025, haverá maiores restrições aos produtos de exportação do agro brasileiro. Qual é a saída?

Essas restrições já vêm sendo faladas há muito tempo. Precisamos ter a perspectiva de que isso virá. Para as grandes empresas, elas começam a ver um risco reputacional de ter seus produtos associados a um mercado consumidor que demanda cada vez mais rastreabilidade, sustentabilidade e que suas cadeias estejam associadas a uma produção que não respeita direitos humanos, meio ambiente, etc. 

Sempre digo, é importante separar o joio do trigo. Quem está produzindo bem, que incentivos ele vai receber, que apoio ele vai ter nessas negociações? 

Existem dúvidas até mesmo na União Europeia.

Acho que eles perceberam que nem eles estavam preparados para isso. Como eles fariam esse processo de auditoria no que era produzido? Não é trivial. Mas, por outro lado, o adiamento não significa que isso não tenha que ver. Nós ganhamos um tempo, né? É importante usar esse tempo com sabedoria, fazer uma preparação e levar uma argumentação clara do Brasil. 

Quando a gente fala do setor da agricultura, conheço muitos que estão ali tentando efetivamente fazer bem feito, lidar com cadeias ilegais, porque é muito difícil você ficar do lado da legalidade se tem alguém que está produzindo de forma que não é correta e não tem que pagar todos os custos que você tem por estar na legalidade. Dentro do próprio setor, essa diferenciação precisa estar esclarecida.

É preciso mostrar, também, que produzindo de forma sustentável, isso também gera um valor agregado maior…

Exato. Quem se beneficia disso é a própria sociedade e a população brasileira. É pela saúde dos brasileiros. Nós podemos estar em um ambiente mais conservado, de ter direito a um alimento também de qualidade.

Há um consenso de que houve avanços na agenda ambiental em 2023. Este ano, esse avanço continuou, ou paramos? 

Considero 2023 um período de retomada, de reconstrução. Mas, por todas as razões que conhecemos, esse processo tem uma velocidade que talvez não fosse aquela que inicialmente prevíamos. Havia todo um aspecto de recuperar conselhos ambientais, legislação, programas. 

E em 2024 vieram efetivamente os eventos extremos. Essa é uma mensagem importante para todos os países. Eles (os desastres climáticos) estão aí, e quando eles vêm, têm um impacto econômico muito grande. Você vê um estado como o Rio Grande do Sul: a recuperação não vai ser trivial. Talvez tenha saído das manchetes agora, mas os problemas continuam lá. Gravíssimos.

Estamos mais próximos do ponto de não retorno?

O Acordo de Paris colocou estabilizar o aumento da temperatura em 1,5ºC até 2100. Veja, retomar o patamar pré-Revolução Industrial não está nesse mapa. A gente está falando de uma estabilização do aumento da temperatura.

Mesmo assim, com o que hoje tem na mesa, colocado pelos países de promessas, a gente não chega a 1,5ºC. A gente está acima, com 2ºC para 3ºC. São questões que a gente tem que efetivamente observar o que pode ser feito no momento. A gente já tem um conjunto de soluções que podem ser empregadas e muitas delas envolvem o setor de uso da terra, a questão da conservação biológica, a questão das práticas sustentáveis na agricultura.

A etapa de transição já passou…

Sim. A resposta tem que ser muito rápida na redução das emissões. Na linguagem do clima, nós chamamos a redução das emissões é a mitigação. E tem o que chamamos de adaptação. Mas a adaptação também tem limites, né? Por exemplo, a nossa capacidade de tolerar aumento da temperatura. Fisiologicamente é limitada. 

A gente morre de calor. Ondas de calor vão ser um problema muito grande no Brasil. Isso é um limite, não tem como. Para outros setores, por exemplo, com o aumento do nível do mar, há um limite para adaptação. Quanto que eu vou tolerar para as cidades litorâneas, se no Brasil a gente tem uma concentração enorme de grandes cidades no litoral. Se não vier muito bem casada a redução das emissões, até a adaptação vai ficar muito difícil.  

E como a gente lida com isso?

A sociedade civil, as organizações, as empresas, tudo isso faz parte do que a gente chama de governança ambiental, que é mais do que o governo. Esses setores têm que começar a ter uma pressão maior sobre essa necessidade, para que a atuação e a vontade política se manifestem de forma mais contundente. 

É importante lembrar que se o Brasil faz o seu papel, o mundo inteiro é beneficiado, porque a atmosfera é um bem comum global. Mas se a gente faz adaptação aqui no Distrito Federal, não resolve o problema do Rio de Janeiro. Adaptação é uma questão local. 

O governo federal tem um papel importante, sim, de articulação, de financiamento, de mostrar caminhos, mas estados e municípios vão ter que se organizar para isso.  

Qual o papel da universidade no enfrentamento das tragédias climáticas?

Elas são as instituições que geram a maior parte do conhecimento científico no Brasil e têm trabalhado muito fortemente na agenda climática também. Elas têm um papel, também, nos caminhos de apontar para adaptação. São elas que formam professores. 

Se nós queremos professores que consigam trabalhar nas escolas sobre educação climática, eles serão formados dentro das universidades. Mas elas têm um papel também muito importante no processo de transformação ecológica do Brasil. 

Muitas áreas do conhecimento ou profissões talvez terão um papel menos relevante no futuro, e novas profissões vão surgir dentro desse quadro de transformação ecológica. Quem vai formar ou recapacitar esses novos profissionais? Serão as universidades.

*Estagiário sob a supervisão deCarlos Alexandre de Souza 

 

postado em 09/11/2024 03:55
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