O ano era 1984. Dia e mês, não se sabe ao certo, pois as reuniões eram diárias. Na sala privativa do Vaticano, o então cardeal Joseph Ratzinger, mais tarde, papa Bento XVI, convencia o papa João Paulo II de que o comunismo estava se infiltrando na América Latina por meio de padres que pregavam uma tal Teologia da Libertação. Ele se referia aos frades brasileiros e irmãos biológicos Leonardo e Clodovis Boff e, especialmente, ao peruano Gustavo Gutiérrez Merino, morto na última terça-feira, aos 96 anos.
O polonês Karol Wojtyla, hoje São João Paulo II, viveu, na juventude, aquilo que, para ele, eram os horrores do comunismo. Seu pontificado, nos anos 1980, teve influência decisiva na queda do regime em seu país — a primeira do leste europeu —, ao apoiar o líder Lech Wallessa no fortalecimento do sindicato Solidariedade. De pronto, convenceu-se de que era preciso silenciar os padres para não deixar o regime se alastrar pela América do Sul. Delegou a tarefa ao próprio Ratzinger, que era prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Ele foi mais duro com Boff, o Leonardo, que havia escrito, em 1981, o livro Igreja, carisma e poder, questionando a estrutura hierárquica da Igreja e propondo uma eclesialidade a partir dos pobres, como fez Jesus Cristo. Boff foi condenado ao Silêncio Obsequioso, que o proibia de falar em público e de dar entrevistas.
"Um dado curioso é que nos mesmos dias em que eu fui julgado no Vaticano, o cardeal Ratzinger realizou uma reunião, em Roma, com todo o episcopado do Peru, assessorado pelos teólogos da ex-inquisição, para julgar o Gutiérrez", recorda Boff, em entrevista ao Correio. "Gutiérrez estava lá. Eu encontrei com ele. Nunca o tinha visto tão abatido, com o rosto tão desfigurado, pela injustiça que fizeram contra ele. Tentaram condenar, mas acabaram não indo diretamente contra ele, mas contra os textos dele. Eles foram diretamente contra mim apenas. Não foram diretamente contra Gutiérrez, mas ele foi obrigado a fazer modificações em alguns textos", conta o teólogo, explicando que o amigo peruano teve que reformular sua teoria para não ser silenciado, retirando expressões que remetessem a uma interpretação marxista de suas publicações.
Segundo Boff, o termo Teologia da Libertação foi usado pela primeira vez no fim de 1965, em uma palestra do padre Gutiérrez em Petrópolis (RJ). Ele veio trazer para a Igreja do Brasil um resumo das orientações do Concílio Vaticano II, conduzido pelos papas João XXIII e Paulo VI, cuja prerrogativa era, justamente, a de uma Igreja descentralizada, menos hierárquica e voltada para a "opção preferencial pelos pobres".
Em 1971, Gutiérrez publicou o livro Teologia da Libertação: perspectivas. Por causa desse livro, ele ficou conhecido como o pai da Teologia da Libertação. O brasileiro, Frei Betto, foi quem primeiro atribuiu o título ao sacerdote. “Logo que li o livro do Gustavo me senti totalmente identificado. A Teologia da Libertação está em mim muito antes de terem cunhado esta expressão”, conta o frei dominicano, que pertence à mesma congregação religiosa do peruano. Frei Betto e Leonardo Boff acabaram por se tornar os maiores representantes da teologia no Brasil. Clodovis abandonou a teoria, porém, por entender que os estudiosos haviam trocado o Cristo pelo pobre.
Ao definir a teoria, Betto diz que a proposta é "reler os evangelhos a partir da realidade das pessoas, especialmente de um povo colonizado e oprimido". O teólogo e escritor, que também conversou com o Correio, está publicando uma tetralogia que aprofunda essa abordagem. Já foram publicados os livros Jesus militante, sobre o evangelho de Marcos; e Jesus rebelde, sobre o evangelho de Mateus. Está previsto para o início de 2025 Jesus revolucionário, sobre o evangelho de Lucas; e, no mesmo ano, Jesus amoroso, sobre o evangelho de João.
Tudo interligado
Conta Boff que Dom Helder Câmara, arcebispo de Recife já falecido, também conhecido pela defesa dos mais pobres, costumava dizer que o primeiro teólogo da libertação foi São Francisco de Assis, santo protetor da ecologia, que abraçou a pobreza. Isso, explica, diz ele, o fato de o atual papa ter escolhido o nome de Francisco para marcar o seu pontificado. Desde que assumiu, em 2013, o argentino tem conduzido sua liderança, a partir da Teologia da Libertação, o que pode ser visto nos documentos que assina e na prática. Criou, por exemplo, um dicastério para tratar da pobreza e, frequentemente, reúne-se com moradores de rua.
O papa Franscisco compartilhou um vídeo em que comentou a morte de Gutiérrez. "Gustavo, um grande. Um homem da igreja. Que soube estar calado, quando teve que estar calado. Soube sofrer, quando teve que sofrer. Soube levar adiante tanto fruto apostólico, tanta teologia rica", disse o pontífice.
Com a assessoria de Boff, o papa atualizou a Teologia da Libertação, colocando junto com os pobres a preocupação com o meio ambiente, o que está definido no documento Laudato Si — o cuidado com a casa comum, em que o papa chama a atenção para a importância de governos e sociedades combaterem a pobreza e os desastres ambientais na perspectiva de uma "ecologia integral", em que "tudo está interligado".
"Graças à Teologia da Libertação, temos atualmente o papa Francisco com a sua corajosa postura de defensor dos oprimidos e da preservação ambiental", comenta Frei Betto. "Ela se aplica no mundo de hoje nos documentos e nos pronunciamentos do papa e nas atividades das pastorais progressistas, como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
Igreja viva
No Brasil, as CEBs são a tradução prática da Teologia da Libertação. Nelas, as tradicionais missas e outros rituais da tradição católica são feitos a partir de discussões políticas, contextualizadas na realidade do país e da região dos fiéis. "Trata-se de uma igreja pautada no compromisso social, na ministerialidade e na sinodalidade. Os leigos, de modo especial, as mulheres, assumem o seu papel como protagonistas em diversos serviços", define Liz Mari da Silva Marques, membro da articulação nacional das CEBs.
Ela representa a Comunidade Moisés Libertador, da Arquidiocese de São Paulo. "Aqui, vivemos na teimosia do Reino, na prática da Sinodalidade, da Justiça, da Paz e na Defesa da Casa Comum", descreve. "Em Jesus de Nazaré fazemos a memória daqueles e daquelas que lutaram pelas grandes causas da humanidade e deram a sua vida. Derramaram o seu sangue pela fidelidade ao Evangelho e pelo compromisso com os empobrecidos", completa.
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br