Aldeia Ulupuwene (MT) — Pouco tempo depois de celebrar a chegada da réplica da gruta sagrada de Kamukuaká (como relatado na edição de ontem do Correio), o povo Wauja, no Alto Xingu, foi afetado por um evento climático extremo. Há uma semana, uma tempestade destruiu três ocas da aldeia, uma delas, recém construída. A tradicional relação do povo indígena com a natureza tem enfrentado desafios em meio a crise climática.
A etnia Wauja tem cerca de 400 indígenas, de acordo com o último Censo Indígena do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e está dividida em quatro territórios. Na aldeia Ulupuwene, há cerca de dez ocas familiares e outras que abrigam o posto de saúde da aldeia, o ateliê de artesanato e um centro cultural — todos construídos com madeira, tijolo de barro e palha.
As famílias que ficaram desabrigadas estão provisoriamente nas outras casas e realizando uma campanha de arrecadação para comprar mantimentos e reconstruir os lares.
O fato rememora uma ferida ainda não curada. Em dezembro do ano passado, um raio caiu no território e provocou um incêndio que rapidamente se alastrou e queimou seis ocas. No início deste ano, a aldeia iniciou um mutirão para reconstruir todas as casas destruídas. Com um processo totalmente manual, a construção das ocas leva alguns meses. Uma delas, por exemplo, tinha acabado de ser finalizada, quando a tempestade da semana passada a destruiu novamente.
"Nossas casas são fáceis de pegar fogo. Ano passado, seis casas queimaram por causa de um raio, até a minha. Estava muito seco e foi tudo muito rápido. Ninguém conseguiu apagar, ninguém salvou as coisas, perdemos tudo", relembra Autaki Waurá, professor da aldeia e doutorando em Antropologia Social pela Unicamp.
Tanto o alto volume de chuva quanto a seca agravada provocam estragos. Os indígenas relatam que vêm percebendo essas mudanças no clima há alguns anos e cada vez mais intensas. "A emissão de CO2 tem gerado alterações climáticas e estamos tendo eventos extremos. Desde o ano passado, também temos a influência do El Niño, que leva a estiagem muito forte no Norte do país e no Xingu — que tem o bioma amazônico", explica o ambientalista Charles Dayler.
Após uma estiagem longa, a chuva vem de "forma muito concentrada", o que potencializa os estragos, de acordo com o especialista. Dayler afirma que a região "é muito rica em material combustível", o que explica o alastre do fogo em casos de queimadas.
Desmatamento
O cacique Akari Wuará, da aldeia Topepeweke, conta que, quando o pai era vivo, o clima era muito diferente. Em setembro, as chuvas costumavam iniciar e, agora, demoram um mês a mais, o que afeta muito na produção de alimentos. "Nessa época [início de outubro] já tinha muito pequi. Agora, não tem mais fruta. Só chove três meses e para. Não era assim. Um dia eu vou morrer e penso como vão ficar meus filhos", lamenta.
Para a liderança indígena, o desmatamento é um dos principais fatores que induzem o cenário. "Temos uma área degradada em volta do nosso território, bem pertinho, onde plantam soja, algodão, milho. O branco pensa em ganhar dinheiro e a gente respeita a natureza. Plantamos na nossa roça os nossos alimentos, pescamos no rio, mas não fazemos barragem para não secar ele, e na floresta buscamos material de construção", explica Akari.
Segundo ele, o rio Batovi, um dos principais afluentes do Rio Xingu, está secando cada vez mais. O cacique conta que estragou seu barco tentando navegar, em meio a pedras e pouca água. "Se vocês (brancos) pensarem em não desmatar a cabeceira do rio, já seria bom para nós", clama.
Kelly Waaurá, artesã e uma das mulheres responsáveis pela colheita dos alimentos da aldeia, também reclama a dificuldade com a roça. "O tempo está muito seco. O pessoal planta e morre porque não chove. Não crescem as plantas. Esse ano está sendo muito difícil. O rio também é bem seco, muito abaixo da média", lamenta.
Responsável pela loja de artesanato da aldeia, a indígena conta que a relação deles com a floresta sempre foi muito próxima. Nos brincos, colares e cerâmicas são reproduzidas plantas, flores e animais. "A floresta é a nossa respiração, tem muitos remédios para a gente, é muito importante", diz.
"A questão do desmatamento é muito séria. Traz muita secura, o rio muda, o tempo de chuva muda", lamenta também o cacique Mairawe Kaiabim, do povo Kawaiwete (Kaiabi), uma das 16 etnias que compõem a Terra Indígena do Xingu.
A coordenadora regional do Xingu na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Iré Kayabi, afirma que manter a floresta de pé é a única maneira de mitigar parte dos eventos climáticos. "As roças nas comunidades não estão vingando, rios que chegam a secar. Estamos tentando mostrar que todos precisam da floresta e dos rios para ter qualidade de vida", afirma.
Recorde de focos de incêndio
O Mato Grosso, neste ano, foi o estado que mais registrou focos de incêndio — 49 mil. A região da Amazônia Legal, a qual o Xingu faz parte, também teve recorde de incêndios nos últimos sete anos — 163 mil. No dia em que a reportagem do Correio chegou à aldeia Ulupuwene, um forte cheiro de queimado infestava o local. O sol alaranjado também denunciava que queimadas estavam ocorrendo nas redondezas.
Segundo a coordenadora da Funai, parte dos incêndios na região ainda acontecem devido a prática de roça. Apesar de ser uma técnica milenar, queimar as plantações para renovar a terra, quando feita no tempo errado, causa danos extremos.
"Tem se pensado muito nessa nova forma de fazer roça, quando queimar, quando plantar, está mexendo muito com o jeito que tudo era feito antes. O que temos feito é informar para não queimar porque não tem chovido. Pedimos para esperar um pouco", comenta Iré Kayabi. De acordo com ela, um trabalho de conscientização nas aldeias tem sido feito, com o apoio da Associação de Terras Indígenas do Xingu (Atix).
O ambientalista Charles Dayler atenta que, sim, a queima de roça sem o início das chuvas colabora para as queimadas, mas que é só um dos fatores, somado à crise climática. "Os fatores se somam, atuam em conjunto", diz.
As lideranças indígenas têm pensado maneiras de proteger o próprio território das intempéries climáticas. "Queremos pedir socorro. Temos sérios problemas no Xingu com o desmatamento. Sem territórios, não tem educação, não tem saúde. Precisamos preservar o nosso território", desabafa o cacique Managu Ikpeng, do povo Ikpeng.
Nascentes tombadas
Entre as alternativas para driblar o cenário, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) avalia o tombamento das nascentes do Rio Xingu. Se concretizado, será o primeiro rio tombado no Brasil. "Queremos alargar o tombamento da gruta de Kumukuaká e religar ela ao Rio Xingu e também estudar fazer isso em cada nascente do Xingu", explica Hukai Wuará, que participa de um grupo de trabalho entre a Atix e o Iphan.
Além disso, os indígenas têm tentado conscientizar mais pessoas sobre a realidade das aldeias através das redes sociais, compartilhando fotos de seu dia a dia com florestas desmatadas, queimadas, rios secando e casas sendo reconstruídas, após desastres climáticos.
Pirathá Mars, do povo Wauja, é um dos administradores do perfil "Comunicador do MIU (Museu Indígena da Ulupuwene)" nas redes sociais. Ele conta que viu na fotografia uma maneira de retratar a realidade de seu povo. "Peguei a máquina para usar na nossa luta. Antigamente a gente usava arco e flecha para lutar, depois que a gente estudou, usamos caneta e papel e, agora, a máquina veio fortalecer a nossa luta", diz o indígena animado.
"Desde a colonização do Brasil contam mentiras sobre as populações indígenas. Agora, com essas ferramentas de tecnologia, os indígenas podem contar a sua própria história. A verdadeira história", finalizou Pirathá.
Como ajudar
- S.O.S Aldeia Ulupuwene
- Razão Social: Associação Indígena Ulupuene - AIU
- Pix (CNPJ): 16.685.736/0001-80
* A jornalista viajou a convite da People's Palace Project
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