Xingu

Entre tempestades e queimadas, povo Wauja sofre com mudanças climáticas

Após longo período de estiagem, indígenas enfrentam tempestade que derruba ocas recém recuperadas. Lideranças alertam para desmatamento na região

Três ocas ficaram destruídas com tempestade na madrugada da última segunda-feira (14) na Aldeia Ulupuwene. Elas haviam acabado de ser reconstruídas após incêndios -  (crédito: Comunicadores do Museu Indígena Ulupuwene)
Três ocas ficaram destruídas com tempestade na madrugada da última segunda-feira (14) na Aldeia Ulupuwene. Elas haviam acabado de ser reconstruídas após incêndios - (crédito: Comunicadores do Museu Indígena Ulupuwene)

Aldeia Ulupuwene (MT) — Pouco tempo depois de celebrar a chegada da réplica da gruta sagrada de Kamukuaká (como relatado na edição de ontem do Correio), o povo Wauja, no Alto Xingu, foi afetado por um evento climático extremo. Há uma semana, uma tempestade destruiu três ocas da aldeia, uma delas, recém construída. A tradicional relação do povo indígena com a natureza tem enfrentado desafios em meio a crise climática.

A etnia Wauja tem cerca de 400 indígenas, de acordo com o último Censo Indígena do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e está dividida em quatro territórios. Na aldeia Ulupuwene, há cerca de dez ocas familiares e outras que abrigam o posto de saúde da aldeia, o ateliê de artesanato e um centro cultural — todos construídos com madeira, tijolo de barro e palha.

As famílias que ficaram desabrigadas estão provisoriamente nas outras casas e realizando uma campanha de arrecadação para comprar mantimentos e reconstruir os lares.

O fato rememora uma ferida ainda não curada. Em dezembro do ano passado, um raio caiu no território e provocou um incêndio que rapidamente se alastrou e queimou seis ocas. No início deste ano, a aldeia iniciou um mutirão para reconstruir todas as casas destruídas. Com um processo totalmente manual, a construção das ocas leva alguns meses. Uma delas, por exemplo, tinha acabado de ser finalizada, quando a tempestade da semana passada a destruiu novamente.

"Nossas casas são fáceis de pegar fogo. Ano passado, seis casas queimaram por causa de um raio, até a minha. Estava muito seco e foi tudo muito rápido. Ninguém conseguiu apagar, ninguém salvou as coisas, perdemos tudo", relembra Autaki Waurá, professor da aldeia e doutorando em Antropologia Social pela Unicamp.

Tanto o alto volume de chuva quanto a seca agravada provocam estragos. Os indígenas relatam que vêm percebendo essas mudanças no clima há alguns anos e cada vez mais intensas. "A emissão de CO2 tem gerado alterações climáticas e estamos tendo eventos extremos. Desde o ano passado, também temos a influência do El Niño, que leva a estiagem muito forte no Norte do país e no Xingu — que tem o bioma amazônico", explica o ambientalista Charles Dayler.

Após uma estiagem longa, a chuva vem de "forma muito concentrada", o que potencializa os estragos, de acordo com o especialista. Dayler afirma que a região "é muito rica em material combustível", o que explica o alastre do fogo em casos de queimadas.

  • Kelly Wuará é artesã e responsável pela colheita de alimentos na aldeia Ulupuwene, no Xingu. Ela reclama que a seca está deixando poucas plantas vivas
    Kelly Wuará é artesã e responsável pela colheita de alimentos na aldeia Ulupuwene, no Xingu. Ela reclama que a seca está deixando poucas plantas vivas Alaor Filho/Fotos Publicas
  • Autaki Wuará é professor da aldeia Ulupuwene, no Xingu, e teve a casa atingida por raio no ano passado e está reconstruindo ela
    Autaki Wuará é professor da aldeia Ulupuwene, no Xingu, e teve a casa atingida por raio no ano passado e está reconstruindo ela Alaor Filho/Fotos Publicas
  • Pirathá Marsusa administra perfil nas redes sociais e usa a fotografia para pedir atenção às mudanças climáticas
    Pirathá Marsusa administra perfil nas redes sociais e usa a fotografia para pedir atenção às mudanças climáticas Alaor Filho/Fotos Publicas
  • Em 2023, um incêndio já havia afetado a aldeia Ulupuwene, no Xingu, e destruído seis casas
    Em 2023, um incêndio já havia afetado a aldeia Ulupuwene, no Xingu, e destruído seis casas Comunicadores do Museu Indígena Ulupuwene
  • A aldeia Ulupuwene, no Xingu, sofreu graves danos com uma tempestade na última segunda-feira (14/10) e luta para reconstrução
    A aldeia Ulupuwene, no Xingu, sofreu graves danos com uma tempestade na última segunda-feira (14/10) e luta para reconstrução Comunicadores do Museu Indígena Ulupuwene
  • Três ocas ficaram destruídas com tempestade na madrugada da última segunda-feira (14) na Aldeia Ulupuwene. Elas haviam acabado de ser reconstruídas após incêndios
    Três ocas ficaram destruídas com tempestade na madrugada da última segunda-feira (14) na Aldeia Ulupuwene. Elas haviam acabado de ser reconstruídas após incêndios Comunicadores do Museu Indígena Ulupuwene

Desmatamento

O cacique Akari Wuará, da aldeia Topepeweke, conta que, quando o pai era vivo, o clima era muito diferente. Em setembro, as chuvas costumavam iniciar e, agora, demoram um mês a mais, o que afeta muito na produção de alimentos. "Nessa época [início de outubro] já tinha muito pequi. Agora, não tem mais fruta. Só chove três meses e para. Não era assim. Um dia eu vou morrer e penso como vão ficar meus filhos", lamenta.

Para a liderança indígena, o desmatamento é um dos principais fatores que induzem o cenário. "Temos uma área degradada em volta do nosso território, bem pertinho, onde plantam soja, algodão, milho. O branco pensa em ganhar dinheiro e a gente respeita a natureza. Plantamos na nossa roça os nossos alimentos, pescamos no rio, mas não fazemos barragem para não secar ele, e na floresta buscamos material de construção", explica Akari.

Segundo ele, o rio Batovi, um dos principais afluentes do Rio Xingu, está secando cada vez mais. O cacique conta que estragou seu barco tentando navegar, em meio a pedras e pouca água. "Se vocês (brancos) pensarem em não desmatar a cabeceira do rio, já seria bom para nós", clama.

Kelly Waaurá, artesã e uma das mulheres responsáveis pela colheita dos alimentos da aldeia, também reclama a dificuldade com a roça. "O tempo está muito seco. O pessoal planta e morre porque não chove. Não crescem as plantas. Esse ano está sendo muito difícil. O rio também é bem seco, muito abaixo da média", lamenta.

Responsável pela loja de artesanato da aldeia, a indígena conta que a relação deles com a floresta sempre foi muito próxima. Nos brincos, colares e cerâmicas são reproduzidas plantas, flores e animais. "A floresta é a nossa respiração, tem muitos remédios para a gente, é muito importante", diz.

"A questão do desmatamento é muito séria. Traz muita secura, o rio muda, o tempo de chuva muda", lamenta também o cacique Mairawe Kaiabim, do povo Kawaiwete (Kaiabi), uma das 16 etnias que compõem a Terra Indígena do Xingu.

A coordenadora regional do Xingu na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Iré Kayabi, afirma que manter a floresta de pé é a única maneira de mitigar parte dos eventos climáticos. "As roças nas comunidades não estão vingando, rios que chegam a secar. Estamos tentando mostrar que todos precisam da floresta e dos rios para ter qualidade de vida", afirma.

Recorde de focos de incêndio 

O Mato Grosso, neste ano, foi o estado que mais registrou focos de incêndio — 49 mil. A região da Amazônia Legal, a qual o Xingu faz parte, também teve recorde de incêndios nos últimos sete anos — 163 mil. No dia em que a reportagem do Correio chegou à aldeia Ulupuwene, um forte cheiro de queimado infestava o local. O sol alaranjado também denunciava que queimadas estavam ocorrendo nas redondezas.

Segundo a coordenadora da Funai, parte dos incêndios na região ainda acontecem devido a prática de roça. Apesar de ser uma técnica milenar, queimar as plantações para renovar a terra, quando feita no tempo errado, causa danos extremos.

"Tem se pensado muito nessa nova forma de fazer roça, quando queimar, quando plantar, está mexendo muito com o jeito que tudo era feito antes. O que temos feito é informar para não queimar porque não tem chovido. Pedimos para esperar um pouco", comenta Iré Kayabi. De acordo com ela, um trabalho de conscientização nas aldeias tem sido feito, com o apoio da Associação de Terras Indígenas do Xingu (Atix).

O ambientalista Charles Dayler atenta que, sim, a queima de roça sem o início das chuvas colabora para as queimadas, mas que é só um dos fatores, somado à crise climática. "Os fatores se somam, atuam em conjunto", diz.

As lideranças indígenas têm pensado maneiras de proteger o próprio território das intempéries climáticas. "Queremos pedir socorro. Temos sérios problemas no Xingu com o desmatamento. Sem territórios, não tem educação, não tem saúde. Precisamos preservar o nosso território", desabafa o cacique Managu Ikpeng, do povo Ikpeng.

Nascentes tombadas

Entre as alternativas para driblar o cenário, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) avalia o tombamento das nascentes do Rio Xingu. Se concretizado, será o primeiro rio tombado no Brasil. "Queremos alargar o tombamento da gruta de Kumukuaká e religar ela ao Rio Xingu e também estudar fazer isso em cada nascente do Xingu", explica Hukai Wuará, que participa de um grupo de trabalho entre a Atix e o Iphan.

Além disso, os indígenas têm tentado conscientizar mais pessoas sobre a realidade das aldeias através das redes sociais, compartilhando fotos de seu dia a dia com florestas desmatadas, queimadas, rios secando e casas sendo reconstruídas, após desastres climáticos.

Pirathá Mars, do povo Wauja, é um dos administradores do perfil "Comunicador do MIU (Museu Indígena da Ulupuwene)" nas redes sociais. Ele conta que viu na fotografia uma maneira de retratar a realidade de seu povo. "Peguei a máquina para usar na nossa luta. Antigamente a gente usava arco e flecha para lutar, depois que a gente estudou, usamos caneta e papel e, agora, a máquina veio fortalecer a nossa luta", diz o indígena animado.

"Desde a colonização do Brasil contam mentiras sobre as populações indígenas. Agora, com essas ferramentas de tecnologia, os indígenas podem contar a sua própria história. A verdadeira história", finalizou Pirathá.

Como ajudar

  • S.O.S Aldeia Ulupuwene
  • Razão Social: Associação Indígena Ulupuene - AIU
  • Pix (CNPJ): 16.685.736/0001-80

* A jornalista viajou a convite da People's Palace Project

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postado em 21/10/2024 03:50
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