Em outubro, o Brasil envia para o Continente Gelado mais uma leva de pesquisadores, na 43ª edição da Operação Antártica (Operantar). Ao longo de todo o verão, os cientistas farão pesquisas de campo e análises laboratoriais que vão ajudar a entender as complexas relações entre a região, os oceanos e o clima do planeta. Para o secretário da Comissão Interministerial dos Recursos do Mar (CIRM), contra-almirante Ricardo Jaques, a Antártica é estratégica para prever e entender os eventos climáticos extremos decorrentes do aquecimento global. A CIRM é o órgão responsável por coordenar todos os órgãos que participam, direta ou indiretamente, das pesquisas desenvolvidas na Estação Antártica Comandante Ferraz, na Ilha Rei George. Para ele, a presença brasileira no continente é estratégica tanto do ponto de vista científico quanto do geopolítico, mas é preciso reforçar o orçamento do Programa Antártico, que teve que se adaptar ao corte de recursos, neste ano. O secretário conversou com o Correio e, a seguir, os principais trechos da entrevista.
O Programa Antártico já se consolidou como um programa de Estado. Diante da emergência climática, de catástrofes como a que atingiu o Rio Grande do Sul, a sociedade está convencida da importância das pesquisas na região?
Nós temos feito diversas palestras sobre o tema, 'lives' diretamente da Estação Antártica com diversas escolas do Brasil inteiro porque a gente entende que precisa convencer o brasileiro, desde jovem, da importância da conservação, da importância de se estudar cada vez mais a Antártica. Essas 'lives' têm repercussão sensacional com as crianças. Mas a gente também está lidando com outras gerações. Aí entra um trabalho muito intenso, inclusive junto ao Congresso Nacional, com apoio da Frente Parlamentar Mista de Apoio ao Programa Antártico, para que a gente possa demonstrar a importância dessas pesquisas.
Esse trabalho está dando certo?
Um dos resultados concretos é que, na última chamada pública de pesquisa do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), conseguiu um aumento do número de pesquisas atendidas, saímos de 21 para 29 projetos que serão apoiados pelo Programa Antártico brasileiro. Tivemos uma atuação muito grande para divulgar o resultado dessas pesquisas como uma forma a mais de sensibilizar a sociedade.
Olhando para a tragédia do Sul, qual a relação com a Antártica?
Neste ano, nós atingimos, no verão antártico, o recorde negativo de cobertura de gelo em torno do Continente Antártico. Obviamente, isso traz consequências. É por isso que nós temos plena confiança — e acreditamos — na importância dessas pesquisas para, cada vez mais, entender esses fenômenos, a correlação desses fenômenos com o que acontece no território brasileiro. Nós nos preocupamos muito com o que acontece na Amazônia, e devemos nos preocupar com isso. Mas a distância de Pelotas (RS) a Tefé, no coração da Amazônia, é de 3,4 mil km. É a mesma distância que separa Pelotas da Estação Antártica.
Bem mais perto do que parece...
Se nós nos preocupamos com o que acontece na Amazônia e o impacto disso no território brasileiro, nós também devemos nos preocupar com o que acontece na Antártica. O Brasil é o sétimo país mais próximo do Continente Antártico, então, nós temos que entender o que acontece lá para buscar a correlação com o que acontece no nosso território. E isso só pode ser feito com ciência e pesquisa.
Como é coordenar, como militar, uma secretaria que envolve 18 ministérios?
Toda pesquisa que é feita no Continente Antártico passa por um processo. A avaliação do mérito é feita pelo MCTI por meio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico); depois, a Marinha faz uma análise da exequibilidade do apoio logístico para levar o projeto até o Continente Antártico; e o Meio Ambiente faz uma análise do impacto ambiental daquela pesquisa que vai ser feita. O papel da Marinha é fazer o apoio logístico para levar o pesquisador até lá, conduzir as pesquisas que são feitas embarcadas nos navios — temos várias em andamento sobre oceanografia, por exemplo — e apoiar o pesquisador que vai ficar na Estação Antártica.
A Marinha também faz pesquisa na Antártica?
Sim, nós temos levantamentos hidrográficos feitos no entorno do Continente Antártico, nas águas circundantes, e esse resultado gera informações batimétricas (de medição de profundidade) e hidrográficas que são transformadas em cartas náuticas que são importantes para a navegação na região.
A Antártica é responsável pela formação de muitos dos eventos climáticos que atingem o Brasil. A Estação Polar pode ser o nosso principal centro de alerta de desastres?
Com certeza, entender o que acontece na Antártica pode nos permitir ter uma rede de alarmes antecipados muito mais eficiente. É lógico que a Marinha, hoje, conta com um sistema de observação oceânica e de monitoramento também muito eficaz. E reforço a importância de que isso seja feito em uma base científica de pesquisas que precisa ter continuidade no tempo.
Em um mundo turbulento, qual o papel geopolítico da Antártica?
O Tratado da Antártica estabelece que o continente só pode ser utilizado para fins pacíficos, voltados para a pesquisa científica, não sendo permitida a criação de instalações militares. Esse ambiente que se construiu com o tratado fez com que a Antártica fosse blindada de eventos externos. A gente consegue identificar a cooperação entre países, a busca de soluções para problemas como o crescimento do turismo antártico — que nós discutimos na última reunião dos membros do Tratado da Antártica.
Há muitas pressões econômicas sobre a Antártica?
Na reunião consultiva realizada na Finlândia (em junho do ano passado), os países confirmaram tudo o que foi acordado no início da vigência do tratado. Embora tenhamos visto notícias da descoberta de uma grande jazida de petróleo, pela Rússia, no entorno na Antártica, a questão da exploração econômica sequer é discutida nas reuniões. Hoje, a preocupação é, exatamente, muito mais de conservação daquele espaço, de descobrir o que se tem, os potenciais.
A Antártica pode ser considerada um exemplo de sucesso do multilateralismo?
Sim. Ainda que tenhamos algumas dificuldades decorrentes das questões geopolíticas externas, o modelo que atingimos lá, dentro do Tratado da Antártica, com decisões tomadas por consenso — ainda que demande um esforço gigantesco para que as resoluções saiam em função das necessidades de negociar com 29 partes —, é, sim, um exemplo de que a gente pode, com todas as dificuldades, fazer com que o multilateralismo funcione.
Há dinheiro para manter essa estrutura funcionando em modo ótimo?
Esse é um desafio. Neste ano, com os cortes orçamentários que tivemos, precisamos fazer diversos ajustes para que possamos atender a demanda dos pesquisadores, que é a nossa meta final, apoiar a pesquisa científica na Antártica. Mas nós estamos empenhados em buscar novas fontes de recursos para que a situação, em 2025, não seja prejudicada. Nossa preocupação, hoje, é que estamos operando no limite do que nós tínhamos de disponibilidade orçamentária. Se não tivermos novos aportes para o ano que vem, infelizmente, teremos que fazer uma redução no apoio às pesquisas, e é isso que a gente não quer. Queremos continuar fazendo o que temos feito nos últimos 40 anos, que é apoiar as pesquisas na Antártica.