O desastre ambiental que destruiu o Rio Grande do Sul, em maio, elevou a crise global das mudanças climáticas a um grau de preocupação inédito no Brasil e estendeu a toda a sociedade o debate sobre prevenção e mitigação de danos causados por eventos extremos da natureza. Na tragédia gaúcha, o número de mortes pode passar de 200 — são 179 confirmadas até ontem e 34 pessoas ainda estão desaparecidas. Diante de tanta destruição, será possível, um dia, prever eventos extremos a tempo de mobilizar estruturas de atendimento antes que tragédias se instalem? Os cientistas dizem que sim.
Uma das chaves para entender como as mudanças climáticas impactam o Brasil está a 3,6 mil km de distância de Porto Alegre e atende pelo nome de Estação Antártica Almirante Ferraz. O Continente Antártico e os mares que o circundam guardam muitas informações fundamentais sobre o clima do planeta e, em particular, do Brasil. Diante do aquecimento global e dos desafios que essas alterações impõem a governos do mundo todo, a presença brasileira na Antártica vem se tornando cada vez mais estratégica, tanto do ponto de vista da ciência, quanto da importância geopolítica da região.
O verão deste ano registrou a segunda menor extensão de gelo marinho já observada até hoje, cerca de 2 milhões de km², uma área 30% menor do que a média anual registrada ao fim dos verões de 1981 a 2010. A maior perda de gelo foi registrada no ano passado, quando a área congelada não chegou a 1,8 milhão de km². Para a comunidade científica, esse desequilíbrio está diretamente ligado ao aquecimento global e serve como mais um aviso de que não dá para protelar a adoção de medidas para enfrentar a emergência climática.
O Correio conversou com pesquisadores e militares ligados às pesquisas na Antártica para entender a importância da presença brasileira na região. Em um ponto, há consenso: o primeiro alerta sobre eventos climáticos extremos com potencial para atingir o país virá, na maioria das vezes, do Polo Sul, potente fábrica de frentes frias e de massas polares que chegam até o Brasil, afetando o tempo do campo e das cidades. Por isso, apontam a importância estratégica de estudar não só o clima e a atmosfera da região, mas também o comportamento do Oceano Austral, a biodiversidade da região e a dinâmica do gelo polar, que preserva uma infinidade de dados sobre a história do planeta.
"Nós nos preocupamos muito com o que acontece na Amazônia — e devemos nos preocupar com isso —, mas a distância de Pelotas (RS) para Tefé, no coração da Amazônia, é de 3,4 mil quilômetros. É a mesma distância de Pelotas até a Antártica. Se nós nos preocupamos com o que acontece na Amazônia e com seus impactos no território brasileiro, nós também devemos nos preocupar com o que acontece na Antártica. O Brasil é o sétimo país mais próximo do Continente Antártico. Precisamos entender o que acontece lá para buscar a correlação com o que acontece no nosso território. E isso só se consegue com ciência e pesquisa", explicou o secretário da Comissão Interministerial dos Recursos do Mar, contra-almirante Ricardo Jaques Ferreira, ao Correio.
Nesse aspecto, o Brasil é veterano. As pesquisas científicas na Antártica são feitas, de forma quase ininterrupta, há mais de 40 anos, antes mesmo da inauguração da Estação Comandante Ferraz, em 1984. O direito de instalar uma base científica avançada no Sul do planeta foi conquistado ainda em meados dos anos 1970, quando o país aderiu ao Tratado da Antártica, um consórcio de 29 nações com direito de fixar presença e patrocinar pesquisas na região. Desde 1983, o Brasil é membro consultivo do tratado.
De lá para cá, a Marinha organizou 42 edições da Operação Antártica (Operantar) e se prepara, neste ano, para enviar mais uma equipe de cientistas, em outubro, quando as condições meteorológicas permitem a navegação e o transporte aéreo de equipamentos e suprimentos. Até a chegada dessa nova leva de pesquisadores, a rotina da estação fica sob responsabilidade de 17 militares da Marinha que estão, neste momento, enfrentando o início do rigoroso inverno polar. Quando a reportagem conversou, por videoconferência, com o chefe da estação, capitão de fragata Wagner Oliveira Machado, a temperatura externa estava em -10ºC.
A nova estação, que substituiu as instalações originais destruídas por um incêndio, em 2012, está entre as mais modernas e originais do mundo para esse tipo de uso. O projeto é brasileiro, a estrutura ficou por conta de uma indústria da China, e a nova casa do Brasil na Ilha George foi inaugurada oito anos depois do acidente. Apesar do revés, o programa brasileiro não foi interrompido, os projetos de pesquisa foram tocados a bordo do Navio Polar Comandante Maximiano e do Navio de Apoio Oceanográfico Ary Rangel, e nas estações estrangeiras parceiras do Brasil na região.
Pesquisa de ponta
O Brasil está na vanguarda das pesquisas antárticas e acumula um conhecimento que é compartilhado com toda a comunidade científica global. Os estudos também dão subsídios para as decisões da comunidade do Tratado da Antártica, em um ambiente colaborativo que difere das tensas relações geopolíticas atuais. Por força do acordo internacional, é assegurada a liberdade de pesquisas, com resultados compartilhados de forma pública.
As instalações brasileiras podem ser usadas por pesquisadores estrangeiros, assim como o país utiliza a estrutura de outros países. A própria presença militar na região está assegurada pelo tratado, desde que seja voltada, exclusivamente, para fins pacíficos. Atualmente, 35 países (incluindo Brasil) mantêm unidades de pesquisa na Antártica, entre eles, Estados Unidos, China e Rússia.
"Manter a nossa intensidade de pesquisa na Antártica aumenta a nossa capacidade preditiva. Quanto mais informação acumulada, maior a nossa capacidade de prever e agir. É de uma importância óbvia para o interesse da Humanidade. O El Niño, que provocou as chuvas no Sul, e o La Niña, tudo tem conexão com o que acontece nos polos", apontou o pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), Eduardo Secchi, que coordena um estudo sobre os impactos das mudanças climáticas na biodiversidade e na resiliência dos ecossistemas marinhos na Península Antártica.
"Precisamos entender, primeiramente, os processos físicos e termodinâmicos que ocorrem entre o oceano e a atmosfera para, mais adiante, melhorar as ferramentas numéricas que a gente usa tanto para estudar quanto para prever o clima. Quem sabe, algum dia, poderemos melhorar nossas previsões para responder, com precisão, se teremos um verão mais quente ou menos quente?", indaga o coordenador da pesquisa, o meteorologista Luciano Pezzi, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
"A gente sabe que vivemos um clima diferente do que conhecíamos no passado, estamos vivendo, de fato, mudanças climáticas. E a Antártica também sofre com o problema. Estudos mostram que o Oceano Austral está mais quente do que alguns anos atrás", complementou.
"Todos os sinais indicam que vamos continuar nesse processo de aquecimento", alerta o glaciólogo Jefferson Simões, que conduz um estudo sobre o gelo polar. "O que observamos é a redução do mar congelado. A redução desse gelo marinho implica o aquecimento do oceano, com maior absorção de energia, e isso afeta a formação das frentes frias que afetam o Sul do Brasil. Isso significa maior dificuldade de penetração dessas frentes frias e, consequentemente, invernos menos rigorosos", analisou Simões.
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br