A produção de hemoderivados no Brasil deixou de ser uma questão apenas relacionada à saúde. Hoje, é algo que envolve independência em relação as exportações e que ainda traz benefícios econômicos como consequência. Daí porque a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás) é considerada estratégica e faz parte da defesa nacional. "Nossa ideia com a biotecnologia é produzir o IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo), a matéria-prima. Essa é a ultima fase da nacionalização da cadeia produtiva. Aí, tudo vai ser brasileiro, não vamos depender de outros para mais nada. Por isso é que a Hemobrás tornou-se uma empresa estratégica para a defesa nacional. Recebemos o selo no ano passado", afirma Ana Paula Menezes, presidente da Hemobrás. Ela destaca que a pandemia de covid-19 trouxe uma valiosa lição para o Brasil: não depender de importações, sobretudo na área farmacêutica e de medicamentos. "A gente ganha autonomia, soberania, independência. O que a gente sofreu com a pandemia ensinou muito", lembra. A seguir, os principais trechos da entrevista.
A pandemia de covid-19 chamou a atenção para a necessidade de o Brasil não depender da indústria farmacêutica estrangeira. Para fabricarmos as vacinas aqui, dependíamos de matéria-prima importada. Já se tem a consciência de que a nacionalização é fundamental nessa área?
Fica mais fácil hoje a gente explicar para a população que é importante. Antes, havia um esforço muito grande para dizer que é importante nacionalizar a cadeia produtiva, porque, senão, a gente tem a dependência externa — ninguém entendia por que. Hoje, quando se fala, todo mundo lembra o que passamos na pandemia, quando precisamos trazer do exterior insumos hospitalares e farmacêuticos, e até luvas.
Que vantagens a nacionalização traz?
Se incorporamos a tecnologia, temos uma receita. Temos que copiar exatamente o que o fornecedor de tecnologia está dizendo. Não pode mudar nada. Quando a gente estiver fabricando, não tivermos mais dependência tecnológica, poderemos nacionalizar essa cadeia. Isso significa muito porque a gente pode trazer para o Brasil a produção, por exemplo, de filtro, de embalagem de plasma, de teste e pode levar isso para Goiana (PE). É um desafio permanente: atrair indústrias que possam abastecer nossa cadeia de insumo e trazer desenvolvimento. Além de fabricar, temos o desafio de mexer com a economia da região. Se tivermos excedente, podemos, inclusive, vender para a América Latina, colocar nosso medicamento no mercado — trazer receita para o país.
Se desenvolvermos nossa própria tecnologia, entraremos num seleto clube — certo?
Alguns países têm produção de hemoderivados, mas são pequenas porque o plasma é uma matéria-prima difícil. Qualquer coisa pode estragá-lo, pode não ter qualidade. Têm países muito pequenos que fazem, mas, da dimensão do Brasil, nenhum. A gente sabe que Cuba faz, e a Argentina tem uma fábrica. Mas de biotecnologia na América Latina, ninguém tem.
Ou seja, o desenvolvimento dessa tecnologia é, acima de tudo, uma política de Estado...
O governo criou essa política de parceria com o setor privado. Por exemplo: na nossa fábrica biotecnológica, a gente tem uma parceria com a farmacêutica japonesa Takeda, que desenvolve a vacina Qdenga, contra a dengue. Fizemos essa parceria para incorporar a tecnologia deles, que nos ensinam a fazer. A nossa fábrica, hoje, é um modelo da Takeda, tanto que só podemos usar os insumos que eles usam para nada sair diferente. Quando estivermos sozinhos na produção, podemos até nacionalizar esses insumos. Essa é a fase de incorporação tecnológica. Essa política representa que enquanto a gente está na parceria, o medicamento não é apenas nosso. O medicamento que o Sistema Único de Saúde (SUS) compra é exclusivo da Takeda, o que garante a fidelização de mercado até que se conclua o processo de transferência tecnológica. Para o parceiro privado, é interessante estar conosco porque tem a fidelização do mercado. E para o Brasil, é fundamental porque a gente incorpora tecnologia e quando acaba esse processo, a tecnologia é nossa. A gente ganha autonomia, soberania, independência. O que a gente sofreu com a pandemia ensinou muito.
Temos muitos medicamentos nacionalizados?
São raros os que têm uma cadeia toda nacionalizada — é como um carro, um celular. Só que na indústria farmacêutica, se a gente não tiver a preocupação de nacionalizar a matéria-prima, a gente vai continuar dependendo externamente. Nossa ideia com a biotecnologia é produzir o IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo), a matéria-prima. Essa é a ultima fase da nacionalização da cadeia produtiva. Aí, tudo vai ser brasileiro, não vamos depender de outros para mais nada. Por isso é que a Hemobrás tornou-se uma empresa estratégica para a defesa nacional. Recebemos o selo no ano passado.
A percepção de que a Hemobrás é estratégica vem desde quando?
O governo brasileiro tem, desde 2004, apontado para o papel da saúde como uma alavanca também do desenvolvimento industrial, que é o Complexo Econômico da Saúde. A indústria de medicamentos, a indústria de equipamentos de saúde, de insumos, é importante do ponto de vista do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro. E a gente tem esse papel. Inclusive, quando a gente nacionalizar toda a cadeia de produção, vamos reduzir em R$ 1 bilhão cada uma das fábricas no deficit de importação e exportação.
Por ser uma indústria estratégica, investimentos são fundamentais. Como está essa aplicação de recursos?
O ano passado foi muito importante, de retomada da empresa. Foi quando conseguimos investimentos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) porque, na nossa fábrica de hemoderivados, precisávamos concluir, exatamente, a imunoglobulina, que é um medicamento do qual temos muita dependência externa. A gente conseguiu R$ 800 milhões para a conclusão da fábrica de hemoderivados e, também, recursos para o fortalecimento dos hemocentros. Em todo o Brasil, cada estado tem seu hemocentro — e ainda tem a rede privada de hemocentros. É nesses locais que a gente vai recolher plasma. O PAC investe R$ 100 milhões nesses hemocentros porque, por causa de uma geladeira, de um freezer, a gente não conseguia recolher (o plasma), pois não tinham onde armazenar.
Os hemocentros estão preparados para esse armazenamento?
Tem hemocentro que tem uma estrutura de armazenagem legal, que a nossa auditoria vai lá e diz que está perfeito. Mas há outros que não têm essa estrutura. É um check-list mesmo. Aí, a gente tem que ajudar o hemocentro a se adequar. Um exemplo: o de Sergipe, que é estatal. A gente fez auditoria há exatamente um ano, mas não conseguiram se adequar para que possamos fazer o recolhimento. A gente estava junto com eles, comprando câmera fria para poder adequar. No mesmo estado, tem um hemocentro privado que gente fez auditoria e, três meses depois, já se adequaram completamente — entregamos o certificado de qualidade a eles. Ou seja, há uma variação grande. Na próxima segunda-feira, conversarei com o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, porque está abrindo um hemocentro e faremos a qualificação. Estamos em movimento para ampliar a rede.
O plasma é uma matéria muito sensível...
Quando a gente fala da qualificação industrial, passa por uma auditoria nesses hemocentros. É como um check-list. Além de fazer teste, tem a questão do armazenamento adequado, da temperatura; tem a questão do transporte, que tem que ser adequado por temperatura, o tempo que fica em congelamento, todos os testes de contaminação viral. Para o plasma ter qualidade, e virar medicamento, tem uma série de testes, exames e cuidados que são necessários para garantir o plasma industrial. Nosso plasma é muito bem triado. No fracionamento, 99,6% são totalmente aproveitados — não tem nenhum problema e olha que vai de navio uma parte, de caminhão. A perda já foi de 15% até 20% e, agora, é 0,4%. Um problema que havia era que a bolsa quebrava e se perdia o plasma. Foi um esforço para qualificar a embalagem.
Quanto plasma se consegue armazenar hoje?
Temos capacidade de armazenar e fracionar 500 mil litros, mas só conseguimos recolher 200 mil, 250 mil litros. Ainda se perde muito plasma porque alguns hemocentros — principalmente na rede privada não conveniada ao SUS — não nos entregam esse plasma. Recolhemos quase no Brasil todo, exceto na Região Norte pela dificuldade de acesso.
E a produção do fator VIII recombinante? Em que etapa está?
Vamos começar, ali por setembro ou outubro, a nacionalizar a fase de embalagem desse medicamento. Isso também é incorporação tecnológica. Embalar medicamento não é como embalar qualquer coisa. No final do ano, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) vai nos atestar a qualidade para, no próximo ano, a gente poder envazar. Serão, então, duas fases do processo de produção. Até o fim do próximo ano, a gente estará na produção do IFA, que é a biotecnológica. O ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) atestou, recebemos o certificado e estamos habilitados a produzir a matéria-prima. Em 2026, tenho certeza de que esse medicamento será todo brasileiro.
Isso coloca o país em outro nível?
A fábrica que a gente inaugurou em abril é de fator VIII recombinante. Coloca o Brasil em outro patamar porque é um medicamento biotecnológico. São poucos países, cinco ou seis, que produzem e têm essa tecnologia. A gente está num processo de finalização, e depois que incorporarmos a tecnologia, vamos ter a linha de produção do medicamento toda nacionalizada.
Há parcerias nessas pesquisas?
Temos com a Fiocruz Rio e Pernambuco, Farmanguinhos e parceiros nas universidades, com os quais a gente desenvolve testes e análises. Pensamos em desenvolver uma própria molécula nossa, criada e elaborada a partir da Hemobrás.
Para desenvolver tudo isso, os investimentos devem ser permanentes. Isso por si só é um desafio?
Nosso primeiro desafio é conseguir ampliar o recolhimento e qualificar o plasma. Investir em uma fábrica de hemoderivados é, também, investir em cidadania. Não é possível que as pessoas não se incomodem que quando se doa sangue, uma parte vai para a hemoterapia, mas outra parte é jogada fora, sabendo que esse plasma pode ser trabalhado para produzir medicamentos para a mesma população que o doou. Fracionamos 250 mil, 300 mil quando a gente pode fracionar 600 mil litros. A transfusão de sangue gera, em média, 700 mil litros de plasma. Significa transformar em imunoglobulina, albumina. E temos de acompanhar o desenvolvimento tecnológico para modernizar e inovar.
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br