Entrevista | Silvia Sander | oficial de proteção da Acnur

'Não é tarde demais para trabalhar mitigação das mudanças climáticas'

Representante da Acnur alerta que, no mundo todo, os desastres climáticos provocaram 32 milhões de deslocamentos internos

Capão da Canoa (RS) — A tragédia ambiental que assola o Rio Grande do Sul tirou milhares de gaúchos dos seus lares. Cidades inteiras ficaram submersas na lama e forçaram muitos a procurar novos abrigos em outros bairros e cidades. Silvia Sander, oficial de proteção da Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para Refugiados (Acnur) alerta que, no mundo todo, os desastres provocaram mais de 32 milhões de deslocamentos internos que, em sua maioria, tiveram como motivo as mudanças climáticas.

A especialista também explica o termo "refugiado climático", que vem sendo utilizado para nomear as pessoas que perderam tudo nas enchentes e foram forçadas a irem para outros locais. "Não é correto. Situações como a do Rio Grande do Sul geram, na verdade, deslocamentos internos, dentro do país", frisa Sander. Contudo, ela reforça que " não é tarde demais para trabalhar medidas de mitigação das mudanças climáticas". "Mais e mais as comunidades, as populações e os governos vão ter que aprender a conseguir potencializar ações de redução de emissões de carbono, minimizar fatores que aceleram o aquecimento global", afirma.

A seguir, os principais trechos da entrevista de Sander concedida ao Correio:

Estamos vendo o termo "refugiado climático" ser utilizado em algumas publicações das redes sociais, para referir-se aos desalojados por conta da enchente no RS. É correto utilizar essa expressão?

De fato, a gente tem visto a expressão "refugiado climático" ser comumente usada para descrever pessoas que estão em situação de deslocamento forçado, neste caso, devido a eventos relacionados ao clima. Contudo, essa não é uma expressão reconhecida no Direito Internacional, porque refugiado é aquela pessoa que sai da sua casa, no contexto de deslocamento forçado, em razão de graves conflitos, graves violações de direitos humanos, perseguições e, de forma associada ou não, também a desastres e a outras questões relacionadas às mudanças climáticas. Mas, o diferencial é que são pessoas que cruzaram uma fronteira internacional em busca de proteção. Então, não é correto. Situações como a do Rio Grande do Sul geram, na verdade, deslocamentos internos, dentro do país.

Como são esses deslocamentos internos por conta da tragédia ambiental?

Aqui, no Rio Grande do Sul, a maior parte das pessoas que foram afetadas são pessoas brasileiras e estão em um contexto de deslocamento interno. Por outro lado, existem pessoas que já estavam no Brasil, que já eram refugiados reconhecidos aqui, vindos, por exemplo, de Venezuela, Haiti, e outros países do continente africano, e que já tinham passado por uma situação de deslocamento forçado antes, por razões diversas. Existe um mito de que as mudanças climáticas têm desencadeado ou desencadearão movimentos transfronteiriços em grande escala, do Sul global para o Norte global. O que a gente observa é que, na verdade, a maior parte das pessoas forçadas a fugir, devido a desastres relacionados ao clima, se desloca dentro dos seus próprios países. Porém, também se espera um número crescente, ainda que bem inferior, do número de pessoas que cruzaram uma fronteira internacional por entenderem que não é mais possível viver no país em que estavam por estarem sujeitas a mudanças climáticas extremas.

Também podemos ver o fluxo migratório internacional?

Existem, sim, pessoas que, uma vez afetadas por desastres ou outros eventos climáticos extremos, associados a conflitos pré-existentes, perseguições préexistentes, situações de grande perturbação da ordem pública do país em que estão, decidem cruzar uma fronteira Internacional. Aí a gente pode pegar o exemplo do Haiti. Por muitos anos, o Haiti enfrentou e segue enfrentando um contexto gravíssimo que associa conflitos internos, graves insegurança, grave instabilidade no país, potencializado por uma série de eventos climáticos extremos, como terremotos e ciclones. Mas, existem interseções. São mais comuns situações em que esses deslocamentos internos acontecem no contexto que associa conflitos ou situações pré-existentes com temas relacionados às mudanças climáticas, ou mesmo, conflitos que sejam gerados a partir dos impactos das mudanças climáticas, por exemplo, depois de determinado de desastres recursos como a água potável tornam-se mais escassos e há disputa por esses recursos. Isso pode gerar ou potencializar conflitos já existentes.

E esse tipo de deslocamento tem ocorrido com frequência?

Em 2022, considera-se que desastres tenham provocado mais de 32 milhões de deslocamentos internos e, destes, 98% foram causados justamente por riscos relacionados ao clima. Então, vale dizer que pessoas em deslocamento forçado, por razões relacionadas às mudanças climáticas, têm sido cada vez mais e mais comuns, em todas as regiões do mundo e, aqui nas Américas, considerando que os países estejam ainda mais expostos aos impactos das mudanças climáticas, esses números também têm aumentado. Além disso, atualmente cerca de 70% das pessoas que estão em deslocamento interno no mundo estão em países vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas. Isso nos mostra que cada vez mais as mudanças climáticas vão se tornando, em termos quantitativos, o principal fator de deslocamento interno forçado dentro dos próprios países, como é o que a gente vê que está acontecendo agora no Rio Grande do Sul. Então, você tem, a essa altura, mais de 538 mil pessoas que tiveram que deixar suas casas e estão em contexto de deslocamento interno, em sua maioria brasileiras, mas também outras que já eram refugiadas ou migrantes aqui no Brasil.

A Acnur vê alguma tendência de deslocamento para outros estados das pessoas do Rio Grande do Sul?

A Acnur não tem ainda quaisquer dados ou elementos que demonstrem que as pessoas afetadas no Rio Grande do Sul estejam já se mudando para outros estados. É possível que isso aconteça, mas, por enquanto, nos parece que ainda é cedo para fazer essa análise. Eu acho que ainda estamos nos estados iniciais dessa situação de emergência e calamidade do RS. Ao longo dos próximos dias, semanas e meses é preciso observar se vão existir pessoas que depois de perderem tudo, talvez não pela primeira vez, vão decidir se mudar para outros estados ou cidades dentro do próprio Rio Grande do Sul, que estejam menos suscetíveis a graves eventos.

A senhora comentou sobre o quantitativo de refugiados que também estão no RS. Há uma estimativa de quantos deles foram afetados?

No Rio Grande do Sul, estima-se que existam mais de 42 mil pessoas refugiadas ou em necessidade de proteção internacional que foram afetadas pelas enchentes. As principais nacionalidades são, sobretudo, venezuelanos, haitianos e cubanos. É um dado estimado, muito provavelmente subdimensionado. Mas, ele já nos mostra o volume de pessoas que estão também sendo afetadas. O Rio Grande do Sul é o terceiro estado que mais recebeu venezuelanos desde que a Operação Acolhida, de interiorização dessas pessoas, iniciou, em 2018. No que diz respeito às respostas humanitárias, que estão sendo feito pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul, com apoio do governo federal, apoio de organizações internacionais, sociedade civil, é necessário que essas pessoas tenham as suas especificidades linguísticas, culturais também contemplados quando essas estratégias de assistência humanitária emergencial estão sendo desenhadas.

Como a Acnur vem atuando nesse sentido?

Parte do trabalho que a Acnur vem fazendo no Rio Grande do Sul e no âmbito federal diz respeito justamente a enfatizar que pessoas refugiadas que já estavam no Rio Grande do Sul não sejam discriminadas no acesso à assistência humanitária que está sendo provida e que as estratégias de assistência humanitária contemplem também, por exemplo, informação disponível em idiomas que são de mais fácil acesso para essas pessoas. Queremos que eles não sejam discriminados, que também possam ser acolhidos, resgatados e tenham acesso à alimentação, à kits de higiene e outros itens essenciais tanto quanto a população brasileira. Estamos contribuindo também com os planos de adaptação, que vão sendo elaborados em resposta às mudanças climáticas. Sugerimos que se tenham protocolos e medidas específicas para responder aos deslocamentos decorrentes dos eventos climáticos e também para incluir ativamente refugiados e outras populações que já estavam em deslocamento dentro dos planos de resposta, sem nenhuma discriminação. Estamos acelerando a elaboração desses planos, no marco das políticas públicas, para garantir que eles sejam os mais completos possíveis. Em segundo lugar, existe todo um trabalho que tem que ser feito com as próprias comunidades e populações que estão em deslocamento interno para que ela também seja mais resiliente quando esses eventos acontecem.

E como ser resiliente?

A resiliência tem a ver com garantir que essas pessoas tenham mais meios de vida, para que não precisem se estabelecer em territórios que estão especialmente expostos a riscos geológicos, de inundações. É garantir que essas pessoas tenham melhores meios de sustento e de auto suficiência para não ficarem tão expostas ou gravemente afetadas quanto essas situações aconteçam.

Existe um "passo a passo" para montar um bom plano de ação em casos de tragédias ambientais?

Sim. Quando você tem milhares de pessoas deslocadas, que perderam casas, uma das primeiras coisas que essas pessoas vão precisar é justamente de um abrigo, que seja seguro. Não são incomuns as situações em que esses abrigos quando precisam ser ativados do dia para a noite, que sejam feitos de uma forma improvisada e possível naquele momento. Mas, que pouco a pouco precisa ser aprimorada para melhor acolher as pessoas e também para reduzir riscos de violências e de outros incidentes que podem acontecer em quaisquer ambientes em que você tem milhares de pessoas aglomeradas sob muita pressão, traumatizados por terem perdido tudo e pelos eventos extremos que acabaram de enfrentar. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a gente tem ginásios de universidades que foram adaptados solidariamente para acolher 1.500 pessoas, num primeiro momento da forma como foi possível. Mas, aos poucos e o mais rapidamente possível, esses espaços têm que ser organizados para garantir que mulheres sozinhas com crianças não fiquem misturadas com homens sozinhos, que crianças desacompanhadas ou separadas dos pais não fiquem também misturadas, que pessoas que têm algum tipo de deficiência ou alguma demanda de saúde, possam ser acolhidas de uma forma mais adequada. Enfim, que os espaços de acolhimento tenham uma separação, na sua tipologia, na organização do espaço para acolher famílias de uma forma segura, num lugar que não ofereça riscos. Além de ser necessário, o treinamento de voluntários e de gestores que atuam nesse espaço para saber como melhorar a distribuição de alimentos, o acesso a esse espaço, as rotinas, regras de convivência, regras de entrada e saída.

O que é essencial nos planos de ação para situações como essa?

O que é preciso fazer, em primeiro lugar, é garantir que os esforços, que já estão em curso por parte das instituições, de medidas de mitigação e adaptação dos efeitos das mudanças climáticas incluam, ativamente, respostas específicas a possíveis deslocamentos forçados que essas mudanças climáticas já estão gerando. Por outro lado, que esses planos também de investigação e adaptação consigam incluir, de uma maneira ativa e mais específica pessoas refugiadas, dentre aquelas que são mais vulneráveis e mais expostas aos impactos dessas mudanças. Tudo isso são questões que precisam ser olhadas e que precisam entrar nos protocolos de criação e de gestão desses espaços para evitar que situações de violência baseada em gênero, violência contra criança, conflitos entre as pessoas acolhidas aconteçam. Existe no campo internacional, seja no contexto humanitário, seja em outras em outras situações, muita experiência acumulada sobre como fazer isso.

O que estamos aprendendo com o que está acontecendo com o Rio Grande do Sul?

O que a gente está aprendendo agora com o Rio Grande do Sul é que quando a situação acontece, a gente precisa trabalhar em conjunto com os atores da rede local, governo, sociedade civil, para ir aprimorando e adequando os espaços que já foram rapidamente criados. No entanto, a gente não precisa esperar que um incidente aconteça para daí passar a pensar sobre como organizar esse espaço. Então, se já sabemos que esse tipo de incidente pode acontecer, que determinadas cidades, determinados estados estão mais propensos a sofrer esse tipo de situação, então, que a rede local já tenha plano de contingência que possa ser rapidamente ativado de uma maneira adequada, se essas situações acontecerem. Isso vai organizar melhor e coordenar melhor ações de resgate, com as de acolhimento, com ações de documentação, de encaminhamento para atendimento a serviços essenciais. E também são medidas de adequação das estruturas que já foram criadas.

Qual mensagem a senhora deixaria sobre o momento que os gaúchos enfrentam?

A mensagem agora é que não é tarde demais para trabalhar medidas de mitigação das mudanças climáticas, então, mais e mais as comunidades, as populações e os governos vão ter que aprender a conseguir potencializar ações de redução de emissões de carbono, minimizar fatores que aceleram o aquecimento global. Além de também investir em medidas de preparação para quando esses eventos que, infelizmente, vão acontecer e já estão acontecendo ocorram. Dada a complexidade desse cenário que envolve questões relacionadas às populações inteiras em deslocamento forçado, questões relacionadas à rede de infraestrutura inteiras danificadas, impactos gravíssimos na economia, é preciso ter uma união de esforços.

 

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