É possível que você já tenha ouvido comentários que associam os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) a um local que “cuida de doidos”. No sentido grotesco da palavra, o tratamento de pessoas com transtornos graves e persistentes como seres cômicos à margem da sociedade não é de hoje. No entanto, um fenômeno diferente pode ser observado nos últimos meses.
Nas redes sociais, o termo “paciente do CAPs” começou a ser usado em uma série de postagens. Variações como “paciente número um do CAPs” ou “paciente mais fraco do CAPs” também podem ser encontradas, todas elas com o mesmo objetivo: apontar pessoas em algum episódio de alucinação, sejam elas reais ou apenas uma atuação para a internet.
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Alguns perfis nas redes sociais, inclusive, passaram a utilizar o termo para se referirem a si mesmos. Em uma pesquisa simples no X (antigo Twitter) é possível notar a presença de pessoas que utilizam o termo como nome de usuário.
É um fenômeno já conhecido, mas com outra roupagem.
Maria Rosa Pereira, 52 anos, frequenta o CAPs há 18 anos e relata já ter ouvido uma série de comentários preconceituosos, até mesmo dos próprios filhos. “Já ouvi pessoas dizendo que não vão pro CAPs porque é lugar de doido”, relata. “E eu falo que lá não é lugar de doido lá, é lugar de pessoas que fazem tratamento, que está precisando, que é melhor do que manicômio”.
Antes de começar a ser assistida pelo serviço de atenção psicossocial, Rosa passou por incontáveis internações no Sanatório Meduna e no Hospital psiquiátrico Areolino de Abreu, ambos em Teresina (PI), onde chegou a ser amarrada e impedida de ir no banheiro, além de ter sido separada dos filhos. A primeira delas foi quando tinha 15 anos.
“A psicóloga da Defensoria Pública me deu uma carta para eu ir para o CAPs e mandou um carro me deixar lá, só que eu não queria entrar porque eu tinha medo de ser igual ao manicômio”, recorda. “Eu chorei, eu perguntei aos vizinhos se lá batia nas pessoas, aí com muito tempo e insistência que eu consegui entrar”.
Hoje, a piauiense frequenta o CAPs duas vezes por semana como paciente e participa de reuniões como representante da família do marido, que conheceu lá. A história de Rosa já virou, inclusive, assunto de palestras dadas por ela.
Luta antimanicomial
Neste sábado (18/5), o Dia da luta antimanicomial marca o 1º Congresso Nacional de Trabalhadores da Saúde Mental, em Bauru (SP), em 1987. A reunião foi um dos marcos da luta pela reforma psiquiátrica, que culminou na Lei 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção aos direitos de pessoas
Marco da reforma psiquiátrica, os CAPs existem no país desde o fim da década de 80, mas a definição desses mecanismos como modelo prioritário a ser adotado no tratamento de transtornos mentais veio em 2002.
“O CAPs é uma expressão de uma política que vai na contramão do que se fazia nos hospitais psiquiátricos”, explica o professor de psicologia da Universidade Estadual do Piauí (Uespi) Emanoel José Batista de Lima. “É um serviço aberto, não fechado como era um manicômio, tem que cuidar do sujeito na comunidade inserido e com a equipe interdisciplinar”.
Ana Paula Guljor, presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e conselheira do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), explica que o processo de reforma psiquiátrica é também uma mudança no imaginário social das pessoas.
“Antigamente, se chamava essas pessoas de Pinel – nome em referência ao médico francês Philippe Pinel – que criou os primeiros asilos, que depois viraram os hospitais psiquiátricos e manicômios. Então, quando você diz 'paciente de caps' é um paralelo, porque o manicômio não é apenas uma estrutura física”, aponta. “A luta antimanicomial é muito mais ampla do que apenas o fechamento de manicômios, ela diz da ruptura com os manicômios mentais que aprisionam as pessoas em determinadas caixas, você aprisiona aquele sujeito é nesse lugar que foi já historicamente construído”.
Afinal, qual atendimento é feito no CAPs?
Existem diferentes modelos de CAPs, a depender da demanda do paciente. Os CAPs I atende pessoas de todas as idades que estejam em situação de intenso sofrimento psíquico, eles estão presente em cidades a partir de 15 mil habitantes. Já o CAPs II se diferencia por se destinar à assistência de pessoas acima de 18 anos e estar em municípios com mais de 70 mil pessoas. O Caps I é o braço da assistência psicossocial para crianças e adolescentes. A modalidade AD, sigla para Álcool e Outras drogas, se destina a pessoas em sofrimento decorrente da dependência química.
As modalidades CAPs III e CAPs AD III, disponíveis em cidades a partir de 150 mil habitantes, têm, respectivamente, 126 e 135 unidades pelo país. O modelo é uma ferramenta de atendimento 24h.
“Esse modelo é só para sair da crise, não é uma internação”, explica o professor. O paciente pode pernoitar no local, no entanto, após uma melhora, ele volta a ser cuidado em uma unidade de referência.
Karina Figueiredo é assistente social do CAPs AD de Ceilândia (DF) há 11 anos. Para ela, o maior diferencial do serviço é a equipe multidisciplinar. “Não existe um olhar só de um profissional, não é igual o ambulatório que a pessoa foi lá para consulta com o médico”, explica.
Assim que fala a alguém que trabalha no dispositivo, as dúvidas e curiosidades disparam. Karina explica que o estigma de “lugar de doido” ainda é forte, embora tenha diminuído nos últimos anos, e que faz com que algumas pessoas tenham receio de procurar o serviço. “Acho que as pessoas têm medo de ir no CAPs no primeiro momento porque ela tem aquele entendimento de que é lugar de doido, a gente vê essa dificuldade”, conta.
Ao chegar em uma unidade de atendimento, o primeiro passo é o acolhimento. “O CAPs é porta aberta, ele tem que estar a todo momento disponível para quem chegar”, explica a assistente social. Toda a equipe – enfermeiros, psiquiatras, assistentes sociais, psicólogos, terapêutas ocupacionais, técnicos de enfermagem e até profissionais em cargos administrativos – são capacitados para acolher pacientes em crise.
A partir desse primeiro diálogo, o profissional de referência deve analisar qual a melhor forma de seguir com o tratamento, no próprio centro ou em outros mecanismos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Os memes
Estimativas no Google Trends mostram que a pesquisa pelo termo “paciente do CAPS”, bem como a pesquisa pelo próprio Centro, teve um aumento expressivo a partir de abril em relação aos últimos 12 meses.
No TikTok, contas que utilizam o nome da instituição já contam com milhares de seguidores. Ao pesquisar a sigla na plataforma, é possível ver termos comumente pesquisados como “paciente do caps” e “caps meme”.
Coordenador do Laboratório de Psicologia da Mídia da Universidade Federal da Paraíba (LPM-UFPB), Carlos Eduardo Pimentel destaca que essas piadas podem gerar e disseminar desinformação sobre os centros. “Esses memes expressam atitudes frente a estes objetos sociais, no caso aqui os CAPs, mas poderia ser com o SUS, hospitais públicos, um governo, um partido político ou um time de futebol, geralmente assuntos populares que mobilizam a opinião pública”, destaca o professor.
“Os memes que são veiculados nas redes sociais podem ter um impacto nos internautas, no cotidiano dessas pessoas, no comportamento on-line mas também no comportamento off-line”, explica. “No caso, em atitudes e comportamentos relacionados aos CAPs, como na procura pelo tipo de serviço ou no endosso desse serviço para amigos, vizinhos ou colegas de trabalho”.
Louise* foi paciente do CAPs durante um ano. A designer de 26 relata que tenta não levar a sério os comentários na internet e que não chega a se sentir atingida, mas acredita que os memes geram muitas ideias erradas sobre o que é o serviço. “Eles acham que o CAPs é tipo um hospício, sendo que é o oposto disso, ele foi criado com uma proposta de ser o oposto disso”, relata. “Achei que talvez um meme popularizar fosse interessar as pessoas em saber o que é o Caps direito, mas pelo visto está até piorando”.
A jovem frequentou o CAPs durante quase todo o ano de 2021, mas saiu do serviço após mudar de cidade. Na época, ela chegou a contar apenas para a mãe e para alguns amigos. “O pessoal fica com vergonha de ter algum familiar que está indo num ambiente assim, tu é vista com uma pessoa que não tem a vida no lugar, não tem a cabeça no lugar, e em cidade pequena vem a fofoca”, conta.
Atualmente, ela continua recebendo atenção psicossocial do Estado, mas agora pela Unidade Básica de Saúde (UBS), onde faz algumas consultas pontuais. “O que diferencia o Caps de outros atendimentos é porque eles são treinados para lidar com problema de saúde mental mesmo, então acho que você se sente mais acolhida. Na UBS já todo tipo de coisa, então tipo eu chego lá e vejo gente tossindo, eu vejo passando mal, e fico ‘nossa, meu problema não é um problema de verdade’, é desconfortável”.
Para o professor Emanoel José Batista de Lima, da Uespi, o fenômeno dos memes com o CAPs ainda é recente e, por isso, deve ser visto com cautela e sem tirar conclusões. O pesquisador destaca algumas das motivações possíveis. “O preconceito contra pessoas com transtornos mentais é secular, então essas postagens talvez reflitam esse preconceito e diminuam algo que é entender que a pessoa que tem alguma questão de saúde mental, ela está em sofrimento mental”, sublinha.
No entanto, essa autodenominação como “paciente do CAPs” pode ser uma forma da juventude se expressar sobre temas relacionados a transtornos psicológicos. “Essa geração mais nova, diferente da geração anterior, tem uma maior facilidade de falar sobre o sofrimento mental. De postar, inclusive, em redes sociais que estão sofrendo, que estão ansiosos, que estão com alguma tristeza em demasia. Então, talvez essa seja a expressão desse tipo de geração que também fala muito sobre isso”, ressalta.
Hospitais psiquiátricos ainda são realidade
Mesmo após quase 40 anos do congresso de Bauru (SP), a luta antimanicomial ainda enfrenta uma série de desafios. O estigma associado aos usuários é apenas um deles.
A legislação do início dos anos 2000, que recomendou que o CAPs seria a porta de entrada para a rede de atenção psicossocial, definiu ainda o impedimento de que novos manicômios fossem abertos. No entanto, essa lei não estabelece o fechamentos desses dispositivos. Ainda existem, embora em quantidade menor, manicômios e hospitais psiquiátricos no país.
Na última semana, a Comissão de Segurança Pública (CSP) do Senado debateu a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário. O documento prevê que pessoas com transtornos mentais que “estejam custodiadas, sejam investigadas, acusadas, rés ou privadas de liberdade, em cumprimento de pena ou de medida de segurança, em prisão domiciliar, em cumprimento de alternativas penais, monitoração eletrônica ou outras medidas em meio aberto” devem ser atendidas pelas Rede de Atenção Psicossocial.
De acordo com a determinação, fica proibido que esses indivíduos sejam internados em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTP), também chamados de manicômios judiciários, ou outras instituições com características asilares. A medida prevê ainda que novas internações devem ser proibidas após dois meses da publicação, ou seja, em agosto deste ano.
Essa decisão do CNJ foi alvo de reações de diversos setores, como o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e a Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais. De acordo com os senadores da CSP, a proposta é complexa e divide a opinião pública, uma vez que o cumprimento de medida por pessoas com transtornos mentais pode ser entendida como uma questão de segurança pública.
* Nome fictício utilizado para preservar a identidade da entrevistada.