Bairros alagados, mortes e momentos de tensão. A realidade dos moradores do estado do Rio Grande do Sul, diante das tempestades que assolaram a região nos últimos dias, é marcada por adversidades. Os estragos causados pela força das águas de rios como o Guaíba e o Taquari desde a madrugada da última sexta-feira (3/5) continuam a afetar a população do estado.
“Nós saímos de casa com a roupa do corpo, os animais, uma mochila de roupa para as crianças e nosso material de trabalho. Fora isso, foi tudo perdido”, conta Taciane de Freitas Lopes, 30 anos. Moradora do bairro de São Luís, em Canoas, a médica veterinária relembra ao Correio os momentos de angústia vivenciados na última quinta-feira (2) em razão das fortes chuvas.
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Chegou a 100 nesta quarta-feira (8/5) o número de mortes nas enchentes. Há ainda 128 desaparecidos. A informação é do boletim das 12h de hoje da Defesa Civil do estado.
Segundo dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o volume de chuvas acumulado no estado entre o último dia 22 e a segunda-feira (6) foi superior ao previsto para todos os cinco meses de janeiro a maio.
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"Gente morta boiando"
Taciane lembra ter visto que estava chovendo muito, “mas não pensamos que poderia acontecer a enchente”. No dia, a médica veterinária estava de plantão numa clínica, enquanto o marido ficou em casa com seus dois filhos, um menino de 3 anos e uma menina de 7.
Pela manhã, ela recebeu a ligação do esposo alegando que a água havia começado a entrar no pátio do local onde viviam com mais quatro famílias. “Chegando em casa, em questão de 30 minutos, o pátio já tinha água na canela”, afirma a veterinária.
“Nós temos três idosos na família, dois de 67 anos e um de 91 anos. Nós pegamos as crianças e os idosos e levamos para o bairro de cima, onde tem a casa do meu cunhado”, continua. Taciane, o marido e o sogro seguiram no local, que começava a inundar, na esperança de conseguir salvar alguma coisa.
“Ficamos levantando as coisas de casa, não imaginamos que fosse tomar essa proporção. Quando era 14h, a água já tinha invadido nossa casa”, relembra.
“Nós levantamos o que deu, pegamos uma geladeira que estava boiando e começamos a colocar roupas, tudo o que dava para passar para a casa da minha cunhada, do lado, que é um pouco mais alta. Quando a água chegou na cintura, pegamos nossos dois cachorros e nossa gata — a outra gata fugiu e a gente ainda não conseguiu achar —, e saímos.”
Na noite de sexta-feira (3), segundo ela, já não havia mais como entrar a pé no bairro. “Todas as casas, a escola, a creche, tudo inundado”, acrescenta.
Taciane tinha duas barbearias, uma em São Luís, onde vive, e outra em Mathias Velho, bairro de Canoas assolado pela água. “A gente foi lá para tentar salvar o que deu, mas quando chegamos em Mathias Velho não conseguimos atravessar porque tinha muita polícia e pessoas fazendo corrente para poder tirar as pessoas de dentro do bairro. Tinham barcos que não entravam mais porque havia gente morta boiando”, relata.
No momento, a médica e a família estão em Viamão, na casa da mãe de Taciane. “Até então, ficamos durante todo esse tempo na casa de amigos, recebendo doações de roupa para a gente e para as crianças”, diz a veterinária. “A gente não tem mais nada. Perdemos tudo o que tinha dentro de casa. As nossas duas barbearias foram alagadas”, lamenta.
“Sentimos falta do governo”
Para a empreendedora Georgia da Rosa de Almeida, 27 anos, moradora do bairro de Rio Branco, em Canoas, os governos do estado e da cidade falharam não só em alertar a população para evacuar as casas em tempo hábil, como em prestar auxílio para o resgate dessas pessoas.
“Quem estava resgatando as pessoas era o próprio povo gaúcho. Eu, sinceramente, não vi polícia, brigada militar, Exército, não vi. A gente está sentindo muita falta, aqui no Rio Grande do Sul, do governador se mobilizar mais para ajudar essas pessoas, porque se não fosse o povo pegar seus barcos e ajudar, tinha morrido mais pessoas”, reclama. “Eles tinham que ter se mobilizado de forma mais rápida”, emenda.
A empreendedora conta que também foi pega de surpresa pela intensidade das enchentes. Acostumada com alagamentos causados pelas fortes chuvas no estado, pensou que seria algo breve e que levantar os móveis da casa seria suficiente. “Me arrependi. Se eu pudesse, tinha pegado o meu carro, colocado o que tinha dentro e tinha saído. Se eles (autoridades) tivessem sinalizado antes... deviam ter passado com um carro de som, na TV, em qualquer lugar falando ‘evacuem!’”
O primeiro andar da casa em que Georgia mora com a família, gatos e cachorros de estimação, virou um aquário a céu aberto. Ilhados no segundo piso, ela e os parentes tiveram sorte de ter um pouco de comida e água no local. Ela conta que não dava para tomar banho ou dar descarga. “E tem a preocupação pela falta de água, né? A gente não tinha se preparado com água, não tinha água nas torneiras. Não deu tempo nem de a gente ir ao mercado comprar insumos e água, a gente tinha o que a gente tinha ali e estava acabando”, relembra.
“É uma situação que você não sabe o que vai acontecer, de verdade. Chega a acreditar que tu vai morrer, sem saber o que vai acontecer, se alguém vai conseguir te buscar, se tu vai conseguir ajuda. É desesperador. É bem desesperador. E a gente não queria deixar nossos animais, porque muita gente não conseguiu pegar seus pets, então tinha muito cachorro abandonado, muitos animais que você ouvia de noite chorando”, conta com pesar.
Georgia compartilha o medo de que a situação se repita nos próximos anos. “O primeiro pensamento que a gente teve foi ‘vamos comprar um barco’. É complicado porque há muitos recomeços aqui no Sul, tem chuva de granizo, tem alagamento, tem enchente. Então, a gente fica com esse medo, com essa insegurança de se mudar para outras regiões e estar sempre preparado para o que pode vir.”
Sem comida ou água
Moradora de São Leopoldo, a jornalista Letícia Fagundes diz que a situação se agrava com o passar dos dias pela falta de água e comida na região, que está ilhada pela grande quantidade de água. “Na nossa cidade ninguém entra e ninguém sai”, resume.
“Não tem nada para vender no supermercado. Não tem pão, não tem leite, nem água”, conta a jornalista. Letícia afirma que tentou captar água de onde conseguiu, mas como a gasolina acabou, não dá para ir buscar em locais mais distantes.
“A gente está vivendo uma catástrofe aqui no Rio Grande do Sul. Os bombeiros e a polícia estão exaustos. Eu presenciei pessoas brigando dentro da enchente, é um esgotamento mental e físico. Eu ajudei muita gente e estou desgastada. O que nós mais precisamos é de voluntários. O pessoal está exausto”, declara.
A autônoma Letícia Cardoso, estudante de gestão em saúde e moradora da região norte de Porto Alegre, pontua que “as fortes chuvas começaram entre quinta e sexta-feira, depois pararam”. E que estava com esperança de que "descesse um pouco (nível da água), o que não aconteceu. Pelo contrário, começou a subir".
Ela conta que perdeu seu carro para a inundação e que, além do medo da água, a violência é motivo de preocupação. “Está tendo muito assalto, muito arrombamento, e é horrível dizer isso no momento de crise, mas assusta muito a gente.” Em ato voluntário, Letícia ajudou, no cadastro de pedidos de resgate on-line, pessoas que não conseguiam sair de sua localização. No período em que esteve ativa, tinham 4,7 mil pedidos em aberto.
Ela precisou deixar seu lar, onde vivia com o marido, Carlos Eduardo, na segunda-feira (6). “O pior momento foi decidir sair, ver as pessoas saindo das casas, o bairro abandonado. Uma vizinha, que tinha se mudado há dois dias para o apartamento do lado, teve que sair com as crianças”, lamenta.
Usando um barco, Letícia conseguiu chegar até a casa da mãe, que mora em uma região alta não afetada pela enchente.
Jaqueline Borba, auxiliar administrativa em Porto Alegre, enfrenta a crise junto de seu marido e do filho. “O pior momento está sendo agora, pois a água subiu bastante”, relata a auxiliar sobre a situação em casa. Ela conta que a ajuda tem vindo, principalmente, de outros moradores e de amigos conhecidos.
Apesar das adversidades, Jaqueline escolhe manter as esperanças. “Estamos vivendo um dia depois do outro, pois no momento está tudo incerto, a vida, o trabalho, os alimentos, tudo. Mas se cada um ajudar um pouco, vamos reerguer nosso estado de novo. Tenho esperança”, afirma.
Resgates
De acordo com a Segurança Pública do Rio Grande do Sul, o estado conta hoje com 4,6 mil homens das forças de segurança estaduais, 1.557 viaturas, 153 embarcações e 39 aeronaves. No total, atuam no resgate das vítimas no estado 440 bombeiros militares dos estados de Santa Catarina, São Paulo, Paraná, Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Pará, Distrito Federal, Paraíba, Rondônia, Sergipe, Amapá, Pernambuco, Tocantins, Piauí, Maranhão, Ceará, Alagoas, Rio Grande do Norte, Roraima, Acre e Amazonas..
Segundo o Corpo de Bombeiros de Santa Catarina, 2.073 pessoas foram resgatadas pela operação em conjunto com forças de outros estados desde 1º de maio. Nessa remessa, 285 animais também foram localizados e salvos.
*Colaborou Pedro José
*Estagiários sob a supervisão de Andreia Castro
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