Na semana passada, a Organização das Nações Unidas (ONU) cobrou do governo Lula a implementação de políticas públicas para garantir a saúde reprodutiva à mulher brasileira. A preocupação do Comitê da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) recaiu, principalmente, sobre dados que apontam para a gravidez precoce de 12,5 mil meninas de até 14 anos em 2023. Os informações são do próprio Ministério da Saúde.
Hoje, Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher, a imagem de uma astronauta será projetada em um monumento de Brasília para mostrar que, em 80 anos, desde que foi criada a lei do aborto, muita coisa aconteceu. O homem pisou na Lua, a inteligência artificial evolui a olhos vistos, mas os direitos reprodutivos permanecem desrespeitados no Brasil.
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O debate posto ao longo das últimas oito décadas não é fácil por envolver, além de convicções religiosas, questões bioéticas e perguntas às quais não há respostas precisas, como quando começa a vida. Nesta entrevista exclusiva ao Correio, a socióloga e cientista política Jaqueline Pitanguy, coordenadora da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), analisa o cenário atual, em que as posições cada vez mais polarizadas acabam por intoxicar o debate sobre o tema, a despeito de uma trágica realidade de mortalidade materna que afeta, especialmente, mulheres negras e pobres.
Jacqueline integra o Conselho Diretor da organização Women's Learning Partnership (WLP) do Diálogo Inter Americano e do Conselho Editorial da revista Health and Human Rights, da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard. Possui vários livros publicados, o mais recente é Feminismo no Brasil — Memórias de quem fez acontecer, publicado em 2022 pela editora Bazar Bom Tempo. A seguir, trechos da entrevista:
O Cepia, que a senhora coordena, vai usar, em Brasília, a alegoria de uma astronauta para chamar a atenção da saúde reprodutiva. Por quê?
A astronauta vem trazer uma mensagem que fala de uma característica do Brasil na área da saúde e dos direitos femininos: a imensa defasagem entre a realidade da vida das mulheres e as leis. Ela vai mostrar que foi mais fácil o ser humano pisar na Lua do que as mulheres terem, de fato, o direito de decidirem pela maternidade. A partir dessa mensagem, a astronauta traz um alerta, o questionamento sobre o porquê de estar acontecendo isso no Brasil. Um alerta para que as pessoas pensem e ajudem a atualizar a realidade da vida das mulheres e as leis que nos regem em muitos campos.
Por que a escolha de Brasília para essa performance?
Porque Brasília é o centro do poder. E um centro de poder eminentemente masculino.
Acredita que a mensagem será ouvida? O seu principal alvo, o Congresso Nacional, instituição onde se fazem as leis, tem um grande número de deputados conservadores.
O Brasil é muito complexo e muito grande. A gente tende a fazer um recorte muito reduzido. O grupo do negacionismo (no país) não é tão significativo. A maior parte da população brasileira está preocupada em sobreviver. Preocupada, sim, com saúde, vai ao médico e vacina as crianças. As mulheres ficam horas na fila do posto para levar o neném que não está passando bem. Em geral, as mulheres são muito preocupadas com saúde, isso em todos os níveis sociais. O negacionismo existe, sim, e tem aumentado não apenas no Brasil, mas é um fenômeno mundial ligado a uma posição política. E há uma leitura religiosa que se transforma quase numa leitura política da religião. Mas, na realidade, isso não caracteriza o Brasil. Eu acredito muito que o Brasil é aberto a refletir, a discutir. Esse Brasil, com quem tenho convivido ao longo da minha vida, é que me dá muita esperança.
Por que a defesa do direito de escolha extrapola a bandeira feminista e é uma questão de saúde pública?
Esse debate está muito mal situado. O que é necessário fazer, quando nós conversamos sobre o abortamento, é um debate republicano. Significa que, se uma pessoa tem uma religião que coloca que ela jamais deve fazer um abortamento, ela tem que ser respeitada nessa posição. Mas não se pode impor a toda a população a mesma posição, porque isso é autoritarismo, não é democracia. Democracia significa conviver com a diversidade e com a pluralidade. Inclusive, com a pluralidade de formas que as pessoas interpretam e vivem a sua espiritualidade.
Há uma fronteira entre convicção religiosa e direito civil?
É muito autoritário quando, em nome de uma crença religiosa, se constrói uma demonização das mulheres que abortam. A Pesquisa Nacional de Aborto indica que 81% das mulheres que já fizeram um abortamento no Brasil têm religião, sendo que 41% são católicas, e 32% são evangélicas. Então, são mulheres que, em algum momento da sua trajetória de vida reprodutiva, tiveram que fazer essa escolha. É um desrespeito a esse direito à saúde condenar as milhares de mulheres que recorrem a um aborto ao longo da sua vida.
Mas o que sustenta que se trata de uma questão de saúde púbica?
Os índices de morte materna. O Brasil tem índices escandalosos de morte materna. Isso é inaceitável. Somente no Rio de Janeiro, onde eu integro o comitê de morte materna, pouco depois da pandemia de covid-19, o índice estava em 111 por 100 mil. É o índice da África subsaariana. Agora baixou, está em pouco mais de 70. Mas é vergonhoso. Usando exemplos dos vizinhos, no Chile, o índice é 20. E não estamos nem falando da Noruega, nem da Suécia, que tem índices menores do que 10. Essa é uma situação gravíssima de saúde pública, e não é possível que deputados e deputadas não discutam essa questão no âmbito da saúde pública. É crime obrigar uma mulher a fazer um abortamento em qualquer circunstância. Assim como é crime continuar a conviver com essas altíssimas taxas de morte materna.
A situação é mais grave quando se trata de meninas. A ONU alertou o Brasil na semana passada, cobrando que o Estado preste assistência às meninas grávidas precocemente.
Sim. Existe uma epidemia de gravidez em meninas menores de 14 anos no Brasil. Gravidez em menor de 14 anos é caracterizada como violência sexual. E é baixíssimo o número de meninas que tiveram acesso ao abortamento. E elas têm direito, já que essa é uma gravidez que traz risco para a saúde da menina. São meninas púberes. Então, até mesmo nos casos permitidos por lei, há dificuldade atualmente. A situação do Brasil está muito complicada.
E ainda há uma dimensão da desigualdade social e racial.
Existe uma coreografia perversa que perpassa todas as dimensões da nossa vida. No caso da saúde reprodutiva e dos direitos reprodutivos, isso é absolutamente evidente. Daí a questão da justiça reprodutiva. Essa expressão foi cunhada por mulheres negras e se refere exatamente a isso: mulheres negras e pobres são as principais vítimas. Os debates no Congresso Nacional estão se dando de forma equivocada e com questões cruciais como essa, da saúde e dos direitos das mulheres.
Em abril, houve o lançamento da Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto e em Defesa da Vida, que preconiza teses opostas às da senhora. Como a senhora avalia?
Eles querem colocar o Brasil na lanterna do mundo. Por que o Brasil quer se colocar nessa posição? Eu acho que a gente tem que refletir um pouco. O Brasil abraçou a ideia de modernidade. A população brasileira muito rapidamente se adapta à inovação, à tecnologia e às novas invenções. Por que, então, essa esclerose quando se trata de saúde e de saúde reprodutiva, especificamente das mulheres? São séculos de construção de um patriarcalismo que ainda está muito presente na sociedade. Uma tarefa importante é chamar as pessoas para que, na sua diversidade, possam buscar soluções que permitam que esse país seja, de fato, plural, entendendo que a tua posição vai ser respeitada totalmente. Ninguém é obrigado a fazer um aborto. Agora se você é uma menina de 13 anos, que foi estuprada como acontece em milhões de casos, e está grávida, você tem todo o direito de ser acolhida e respeitada.
Qual modelo de legislação a senhora defende? Uma liberação geral, respeitando o direito de escolha?
Não existe isso de liberação geral. Isso é conversa do outro lado. O direito de decidir não é isso. O direito à decisão é o eixo principal, que é o direito de cidadania. A base é que é preciso respeitar as várias dimensões da vida. As pessoas podem decidir em quem votam, o que vão estudar, onde vão trabalhar. O direito de decidir é um direito fundamental. E esse direito se aplica também à vida reprodutiva. A reprodução, quando é humana, tem o direito de opção. Só é uma reprodução automática quando se trata de animal — mesmo assim, hoje os humanos já controlam a vida dos animais, com castração de gatos e cachorros etc.
Nesse sentido, qual é a perspectiva do feminismo?
O movimento feminista ressaltou esse elemento fundamental: a ideia de que você tem direito a ter uma autonomia reprodutiva. Você não está aqui para ter quantos filhos a biologia ou a natureza te colocarem, nem para ter filho nenhum. É nesse espaço que se coloca também o abortamento.
E quais seriam os limites da lei?
Quando se analisa a legislação dos vários países, é possível ver que a legislação vai se tornando mais restrita à medida que avança a gestação. Por exemplo, a maioria dos países vai permitir a interrupção da gestação até as 12 primeiras semanas, sem maiores restrições. À medida que a gestação avança, surgem outras circunstâncias em que é permitido o abortamento. No Brasil, é possível interromper uma gestação sem o prazo definido em alguns casos, como na anencefalia ou por estupro ou risco de vida para mãe, para a gestante. É claro que as etapas de gestação têm que ser consideradas em uma legislação.
Acha possível alcançar essa legislação agora?
A ministra Rosa Weber tentou fazer isso como o seu último ato no Supremo. Fez um belíssimo voto. Existe uma questão muito interessante, que é a chamada ponderação de direito. Como é que você pondera os direitos da mulher ou da adolescente daquele ser vivo que está gestando e do feto que está sendo gestado? E aí você tem legislações que vão variar de país para país. Eu acredito que nós ainda estamos, no Brasil, em uma etapa pré, de retirar o debate sobre o abortamento desse espaço contaminado, tóxico e buscar trazer mais racionalidade para a discussão. Creio que superando essa etapa, vamos conseguir chegar a uma legislação justa.
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