A tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul exacerbou um problema que já era evidente no Brasil desde a pandemia de covid-19: a saúde mental. A devastação provocada pelas águas tem agravado traumas e transtornos psicológicos em uma população que já enfrentou inúmeras adversidades.
De acordo com especialistas consultados pelo Correio, a destruição causada pelas enchentes no Rio Grande do Sul possui potencial para amplificar os traumas em uma comunidade que já está fragilizada por perdas de diversas naturezas. A perda de lares, empregos, e até mesmo de entes queridos, sem perspectivas de recuperação a curto prazo, pode intensificar sentimentos de desespero, ansiedade e depressão.
O relatório do Global Mind Project, publicado em março deste ano, revela que o país ocupa a última posição na média de países com o melhor bem-estar mental, ao lado da África do Sul e do Reino Unido. A proporção de angustiados no país representa 34% dos entrevistados, em que os jovens com menos de 35 anos são os mais afetados.
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A jovem empresária Georgia Rosa, 27 anos, perdeu todos os seus bens durante a enchente no bairro Rio Branco, em Canoas. "Há cerca de 20 dias, eu tive minha casa e minha empresa afetadas por causa da água", relembra. Georgia conta que, na primeira semana, após terem sido resgatados de barco, sua única vontade era de ajudar outras pessoas. "Havia muitas pessoas como eu, só com a roupa do corpo, uma mochila e alguns animais, de quem conseguiu pegar", comenta. "Quando chegou na segunda-feira da semana seguinte, eu, particularmente, senti uma queda muito grande, porque vi uma semana começando, onde eu sempre tinha minha rotina, e agora não tinha mais trabalho, não tinha mais casa. Comecei a chorar muito e ficar muito mal. Foi quando eu me desesperei", conta.
Georgia se viu perdida, e, neste momento, se deparou com psicólogos que estavam disponibilizando, de forma on-line, horários gratuitos para ajudar as pessoas que foram afetadas. A empresária recorda que uma amiga próxima entrou em contato com um desses profissionais por ela. "A gente precisa dessa ajuda, mas às vezes temos vergonha de pedir. Pensei 'ah, vou deixar para quem precisa', 'eu consigo, eu sou forte'", adiciona.
"Foi assim que a terapeuta entrou em contato comigo. Eu tive uma conversa com ela e pude conversar com alguém sobre isso, sem sentir que estava sendo julgada".
A empresária, agora, prefere viver um dia de cada vez. "Nós tentamos pensar de forma positiva, pois estávamos começando a fase de limpeza, mas novamente veio a chuva. Eu creio que vai demorar para me estruturar. É difícil pensar em um futuro a longo prazo, e isso cria uma ansiedade pelo futuro incerto", acrescenta Geórgia Rosa.
Suporte e acolhimento
Para a psicóloga e neuropsicóloga Juliana Gebrim, os efeitos das tragédias ambientais na saúde mental das vítimas devem ser tratados por fases, desde os impactos imediatos até as estratégias de longo prazo para a recuperação.
Segundo Juliana, a sensação de impotência é exacerbada pela destruição de um lar, que representa segurança e estabilidade para as vítimas. "O que mais impacta é a sensação de perda e insegurança. A incerteza sobre o futuro e a falta de controle sobre a situação aumentam significativamente os níveis de ansiedade e estresse", observa. A ausência da casa, bens materiais e, tragicamente, entes queridos, gera um trauma profundo, segundo a especialista.
Evitar completamente os traumas é difícil, mas a neuropsicóloga destaca algumas medidas que podem ajudar a atenuar os impactos. "Proporcionar apoio psicológico imediato e contínuo; garantir a segurança e as necessidades básicas das vítimas; e promover atividades que reforcem a resiliência e a sensação de comunidade são essenciais".
Os distúrbios mais comuns desenvolvidos em meio a tragédias incluem transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão e ansiedade. Por isso, Juliana explica que, em alguns casos, as pessoas podem desenvolver fobias específicas ou transtornos de ajustamento. Crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis e podem apresentar reações emocionais intensas e prolongadas, o que reforça a necessidade de um acompanhamento psicológico adequado.
O psicólogo especializado em Terapia Cognitiva Comportamental (TCC) Rafael Braga tem percepções diferentes sobre os impactos profundos e duradouros nas vítimas. Para o psicólogo, após o acontecimento de uma tragédia, evitar traumas torna-se impossível.
"Podemos oferecer o suporte psicológico, médicos, acolhimentos necessários", explica. Ele afirma que as pessoas afetadas desenvolverão quadros de ansiedade, depressão, trauma ou até mesmo estresse pós-traumático, necessitando de uma readequação completa em suas vidas. "Temos que dar o suporte, não tem como evitar mais. Cada indivíduo vai ter a sua resposta de forma particular".
A rapidez e a violência dessas perdas, assim como perdas variadas, desde entes queridos e bens materiais até empregos e empresas, levam a um profundo sentimento de perda e desesperança.
"Eles assistiram tudo sumindo debaixo d'água em poucos minutos. Agora pensam 'como será o futuro?', a partir do momento em que perderam, praticamente, tudo. Sem filhos e sem animais de estimação".
Braga ainda sublinha que a falta de filhos e animais de estimação também contribui para o luto, uma vez que esses vínculos emocionais são rompidos abruptamente. "É uma ruptura muito abrupta, nela acontece de um momento para o outro, um trauma e medo constante" observa.
"Como foi algo muito rápido, o cérebro entra em um alerta como se a qualquer momento pudesse vir a acontecer algo de ruim", completa.
Dentro do suporte e do acolhimento, existe uma parte que entrelaça as duas maneiras de se tratar uma vítima de desastres ambientais, não reviver o trauma. "Nunca deixe que aquelas pessoas revivam toda a situação que gerou o trauma", alerta. Perguntas sobre a situação ou sobre os motivos de não terem saído antes do desastre ocorrer podem potencializar o trauma. Crianças, em particular, podem apresentar regressão comportamental, com reações mais infantilizadas ou agressivas, além de enfrentarem dificuldades de concentração e problemas no desenvolvimento escolar.
"Vão ter que se readequar. Tudo o que aquela pessoa tinha de lembranças e vivências deixou de existir", conta. Os bens materiais fazem parte do processo de luto, mesmo quando é tentado minimizar essa perda com frases como "pelo menos você está vivo". "O espaço físico pode até existir, mas o lar foi destruído".
*Estagiárias sob a supervisão de Edla Lula.
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