Capão da Canoa (RS) — A 135 quilômetros da capital gaúcha, entre o mar e a Lagoa dos Quadros, está localizada a praia de Capão da Canoa. O município costuma ser destino das férias e feriados de grande parte da classe média e média-alta que vive na região metropolitana. No verão, os locais já estão acostumados a enfrentar grandes filas no mercado, trânsito lotado, carros espremidos para estacionar na avenida principal e comércio movimentado. Porém, em pleno início de frio no estado, a rotina é típica de uma semana de janeiro ou fevereiro. O motivo: os gaúchos viram no Litoral Norte um refúgio para escapar das enchentes.
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“Estamos na casa dos nossos compadres porque lá em Canoas não tinha onde ficar. Os abrigos estão lotados e tem muita confusão, briga. Aí optamos por vir para cá”, conta Carmem de Souza, 30 anos, que perdeu tudo que tinha na enchente. Ela faz parte das 2 mil pessoas que a prefeitura afirma que passaram por acolhimento, bem como outras 5 mil que estão na casa de familiares e amigos. Além disso, há a estimativa de que 150 mil pessoas que possuem residência litorânea também tenham se transferido. No total, mais de 200 mil pessoas estão concentradas em Capão da Canoa — contingente quase quatro vezes maior do que a população fixa da cidade. E esse número aumenta todos os dias.
Entre os desabrigados, há muitas histórias dramáticas. “Perdemos tudo. Minha casa estava tampada pela água. Saímos antes porque a gente mora perto do Rio do Sinos, a água estava vindo por todos os lados. Mas, a minha irmã foi resgatada de cima do telhado da casa de dois pisos do meu pai, com outras seis pessoas e o bebê dela de um mês”, relembra Carmem. Ela reclama muito da demora para que os entes fossem resgatados.
Junto ao marido e as duas filhas pequenas, Carmem esperava no ginásio de uma escola de Capão da Canoa a retirada das doações de roupas, alimentos, produtos de higiene e limpeza. Ela lembra dos momentos críticos por que passou em Canoas. “Não tinha água lá, ficamos cinco dias sem banho até chegar aqui. Eu emagreci um monte e desidratei”, conta.
A secretária de Cidadania, Trabalho e Ação Comunitária do município, Renata Klein, explica o atendimento local. “As pessoas chegam, passam por uma triagem para pegarmos informações básicas, em especial a idade, para montar os kits de roupa que sejam confortáveis para as faixas etárias. Se precisar de atendimento médico, tem um Centro de Saúde ao lado, que eles passam, consultam com o médico, vê se precisa de medicação e lá também têm uma farmácia com alguns medicamentos, além de psicólogos, dentistas, o que for necessário”, descreve.
Segundo a secretária, toda a estrutura de acolhimento foi construída às pressas, conforme iam chegando pessoas resgatadas das enchentes, por volta de 4 de maio. Em dez dias, o local virou exemplo de organização, com setorização de doações, atendimento das pessoas que buscavam auxílio e até equipe do cartório para refazer a documentação, de forma gratuita, de quem a perdeu durante as chuvas.
Ao lado do centro de distribuição de doações, uma tenda da Secretaria de Saúde oferece atendimento com enfermeiros, consultório médico, espaço kids e uma farmácia. Lá estava Raquel Nunes, 25, brincando com os sobrinhos Maria Isabelly, 8, e Evandro Micael, 14. Eles chegaram há cerca de uma semana, após serem resgatados em Eldorado do Sul.
“Agora, a água deu uma baixada lá, mas começou a subir de novo. A gente ainda não sabe quando vai voltar para casa...Foi um filme de terror, eu nunca tinha visto aquilo lá. Eu me criei lá e é a primeira vez que eu vi isso”, relembrou triste a gaúcha.
Segundo ela, todos foram para a casa da irmã, que era de dois andares, onde ficaram do dia 3 até 5 de maio para serem resgatados.
“Eu fui a primeira a ser salva de jet-ski, mas eu chorei bastante, falei que amava minha mãe e não queria ir sem ela. Eram dois estranhos que eu não conhecia, mas eu fui, fiquei molhada até o joelho e esperei eles. O Davi foi na mochila, nas costas, meu irmão de um mês. Depois, ele andou com a gente de trator e caminhonete”, relembra a pequena Isabelly, que considerou uma “grande aventura” o que viveu.
A tia dela, aguardava com os pequenos, um atendimento médico para infecção urinária, que foi um dos reflexos do tempo que passou molhada.
Secretário vê situação crítica: “Eu já implorei para o estado”
Com a população quase quadruplicada, todas as áreas públicas estão sendo aproveitadas para acolher as vítimas das enchentes. Mas há grandes desafios.
“O litoral está abraçando tudo. Estamos tentando nos organizar para receber essas pessoas. Não é o nosso público de veraneio, são pessoas diferentes. Mas a gente está preocupado porque temos um hospital na cidade que já sinalizou que talvez vai colapsar por falta de insumos. A nossa UPA está fazendo contagem o tempo todo. Se a gente não conseguir que venha medicação e insumos necessários, hospitalar mesmo, a gente vai ficar sem”, afirma preocupado o secretário de Saúde do município, Tiarlin Abling.
Para ele, há falta de reconhecimento do governo estadual do alto fluxo de pessoas no Litoral Norte. “Eu entendo que neste momento está mais preocupante lá (em Porto Alegre). Mas eu já implorei para o estado que pelo menos 1% desses 100% seja olhado para nós que estamos acolhendo”, lamenta. Nesses primeiros dias, o funcionamento da tenda de saúde está sendo garantido por voluntários e doações de medicamentos de farmácias e de vaquinhas dos próprios profissionais de saúde.
“A movimentação de agora está beirando a população de 300 mil pessoas em Capão da Canoa. Isso é semana de verão. Temos uma população estimada de 90 mil que possuem cartão SUS daqui. A cidade está preparada para acolher essas pessoas, evidentemente que não o público fixo, a gente precisaria fazer algumas coisas. Mas, transitório, podemos dar toda a assistência necessária”, explica Marcelo Ramos, secretário de Turismo e Desenvolvimento Econômico da cidade.
A grande movimentação, no entanto, tende a permanecer. “Muitas pessoas que a gente atende já falam em ficar. A gente já ouviu falar de pessoas que voltaram quando baixou a água e não sabem mais nem onde era o terreno porque só ficou lama. As pessoas têm até receio de passar por tudo isso de novo. Então, vão procurar outras cidades, e Capão da Canoa já é muito procurada, como foi durante a pandemia. As pessoas vieram trabalhar em home office e acabaram ficando. Alguns falam que já conseguiram emprego e já tem solicitação de vaga nas escolas”, conta a secretária da Cidadania.
Os secretários ouvidos pelo Correio estão receosos com o que chamam de transição “árdua”. Não será fácil a adaptação para uma população que ainda pode aumentar muito. Principalmente pela limitação de recursos. Eles ressaltaram que a preocupação, no momento é, acolher a todos que chegam.
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