Cordisburgo – Nas profundezas escuras e úmidas, o único som é o gotejar da água filtrada por dezenas de metros de rocha calcária ecoando nos túneis de pedra. Nesse ambiente remoto, um ser único vaga silenciosamente se esgueirando pelas frestas rochosas, entre fendas e câmaras de um labirinto intrincado. As oito patas impulsionam o animal blindado por uma dura carapaça albina.
Faminto, procura alimento pelas galerias profundas entre colônias de fungos, algas e micro-organismos. Sem olhos, a sobrevivência depende de cerdas especializadas em sentir o ambiente. Da sua cauda se prolonga um flagelo com cerdas serpenteando enquanto se movimenta, aparentando ser um ferrão de um escorpião, mas que é inofensivo e de função ainda investigada. Os domínios desse animal são os microambientes da Gruta do Maquiné, em Cordisburgo, na Região Central de Minas Gerais, único habitat onde o palpigradi Eukoenenia maquinensis já foi encontrado.
Tão raro quanto encontrar esse aracnídeo – parente distante das aranhas – é fotografá-lo, uma vez que não passa de três milímetros de comprimento, tendo sido descrito pela primeira vez em 2004. A reportagem do Estado de Minas acompanhou essa que é uma das missões do Opilião – Grupo de Estudos Espeleológicos (OGrEE) na Gruta do Maquiné, tema de série iniciada na edição de domingo.
O Opilião reuniu espeleólogos especialistas em várias áreas e analisou aspectos biológicos históricos, arqueológicos, paleontológicos, geológicos, culturais, turísticos e outros da gruta, relacionados à saga de quase 50 anos de trabalho do naturalista dinamarquês Peter Lund (1801-1880) em Minas Gerais. A pesquisa tem como objetivo a produção do livro “Gruta Maquiné, 190 anos: um ícone do Patrimônio Espeleológico Brasileiro”, com financiamento e apoio da Plataforma Semente do Ministério Público de Minas Gerais/Centro de Apoio às Promotorias de Meio Ambiente (Caoma).
O palpigradi até hoje só foi encontrado na sexta câmara da Gruta do Maquiné, no chamado Salão das Fadas. O nome se deve a uma das mais belas formações calcárias da caverna, que o pai da arqueologia e paleontologia do Brasil, Peter Lund, batizou de Castelo das Fadas. Por se tratar de um local turístico em uma das cavernas mais visitadas do Brasil, a procura pelo aracnídeo raro precisou ocorrer horas antes da abertura da gruta e sem o acionamento da iluminação turística.
Os oito exploradores se dividiram em pequenos grupos, com lanternas de cabeça e de mãos orientando seus movimentos e vasculhando o terreno. O diminuto palpigradi é um alvo difícil para os olhos, por se camuflar muito bem no solo arenoso e entre as sombras nas ranhuras das rochas. Agachados, revolvendo com as mãos ou pedaços de pau os pequenos sedimentos e restos de matéria orgânica, eles foram revelando pequenos besouros, grilos, tatus-bolinhas que dividem espaço com o aracnídeo único. “Uma das formas de procurá-lo é dividir a área de busca em quadrantes e estipular um tempo para concentrar os trabalhos em cada um desses espaços”, explicou a bioespeleóloga do OGrEE Cristina Machado Borges, que coordenou o dia de buscas.
Outra aposta é deixar completamente a área turística e concentrar as buscas no prolongamento do Salão das Fadas, uma área acima conhecida como Salão 6B e que é interditada ao turismo. Sem a iluminação, os exploradores se dividiram na escuridão, salpicando pontos esparsos de luzes no salão remoto enquanto o vasculhavam com as lanternas voltadas para o solo.
Uma corrida contra o tempo, uma vez que em poucas horas as luzes da Gruta do Maquiné se acenderiam e os ônibus despejariam turistas e excursões de escolas para visitações e atividades didáticas. Assim, o grupo com a bioespeleóloga Cristina Borges, o engenheiro ambiental Nathan Vinícius Martins da Silva e o geólogo e fotógrafo de natureza Adriano Gabarini apostou no ponto mais profundo da câmara, um corredor de acesso difícil, com pedras protuberantes.
E foi naquele espaço confinado que uma comemoração abafada movimentou as lanternas e abriu sorrisos debaixo dos capacetes, uma vez que até a respiração pode deslocar o minúsculo ser. Na tela da câmera de Gambarini, o aracnídeo sem pigmentos e desprovido de olhos aparece como uma pequena aranha albina, com seu flagelo comprido recheado de cerdas.
Uma cadeia viva
A localização e registro do palpigradi Eukoenenia maquinensis na Gruta do Maquiné empolgou o grupo, que ainda procura mais animais, uma vez que espécies de outros quatro invertebrados só existem naquela caverna histórica em Cordisburgo. “Uma delas é a Tricongius ybyguara, uma aranha que foi descrita com um único encontro e nunca maisfoi achada. É importante atentar para os cuidados para minimizar os impactos da visitação. E preservar para que a caverna continue sendo o habitat desses organismos que só existem aqui”, afirma Cristina.
“A caverna tem uma vida no seu interior com mais de 60 espécies e muitas vezes não se vê tudo isso. Mas temos a preocupação de preservar essa vida, um trabalho que nos dá muito orgulho. Além de Maquiné, na área do Monumento Natural Estadual Peter Lund (MNEPE) são mais 33 cavernas, em 72 hectares”, informa Mário Lúcio de Oliveira, gerente da unidade de conservação.
“As pessoas às vezes não veem os animais das cavernas, pois essa é uma observação que pede um pouco mais de calma. Um caminhar mais apressado não permite notar os animais, que muitas vezes são pequenos. Grande parte da fauna cavernícola é composta por invertebrados. Muitos deles bem pequenos (poucos centímetros ou até milímetros) e vivendo em lugares específicos, como dentro de fendas e sob rochas”, observa Cristina Borges.
“Maquiné é uma gruta viva. Vemos um fluxo constante de andorinhas, maritacas e até corujas. No fim da tarde e noite, vem um fluxo grande de morcegos. As trocas que esses animais fazem do ambiente externo com o interno propiciam toda essa vida. Os grilos que pulam pela caverna se alimentam de resíduos como as fezes dos morcegos. O próprio grilo é a base alimentar das aranhas. E assim se segue essa cadeia viva, exemplifica o integrante do OGrEE e doutor em História da Ciência, Luciano Faria.
Ícone vira livro
O trabalho do Opilião – Grupo de Estudos Espeleológicos (OGrEE) na Gruta do Maquiné, sobre os diversos aspectos dos 50 anos de trabalho de Peter Lund em Minas Gerais a partir da caverna que o encantou, será publicado na forma do livro “Gruta Maquiné, 190 anos: Um ícone do Patrimônio Espeleológico Brasileiro”.
“Nosso objetivo é apresentar um pouco dessa história que começou há 190 anos com Peter Lund em Minas Gerais e o ponto de mudança que foi a sua visita à Gruta do Maquiné. Temos um time de biólogos, geólogos, geógrafos e outros profissionais para descrever a vida na caverna, as formações das rochas, o mapeamento, os causos da gruta: tudo aquilo que envolve a população e o imaginário sobre Maquiné. Um livro a que a comunidade e muitos outros poderão ter acesso com todo esse conhecimento reunido”, afirma Luciano Faria, um dos integrantes do Opilião.
O projeto do livro recebeu recursos convertidos de multas ambientais de empresas por meio da Plataforma Semente do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG)/Centro de Apoio às Promotorias de Meio Ambiente (Caoma). Uma iniciativa que existe desde 2014 e só em 2023 aprovou 127 projetos, nos quais foram investidos R$ 150 milhões para trabalhos diretamente ligados ao meio ambiente, ao patrimônio histórico, cultura, tradições e as comunidades. “O trabalho sobre a Gruta do Maquiné é histórico, cultural e paleontológico, sobre um bem que é de valor considerável. O custo do projeto é considerado pequeno (R$ 275 mil), mas o resultado tem muita expressividade. Leva informação, leva mobilização, vai trazer novos projetos”, afirma o coordenador do Caoma, promotor de Justiça Carlos Eduardo Ferreira Pinto.
A plataforma do MPMG já alcança tanto destaque pela sua abrangência e rapidez no desenvolvimento de projetos de valor social e ambiental que serviu de modelo nacional, após recebimento de selo de destaque pela Corregedoria Nacional do Ministério Público (CNMP) e com o Conselho Nacional do Ministério Público referendando o projeto. “A plataforma só recebe os projetos da sociedade civil, ligados a várias áreas. Ao estarem aptos, podem ser selecionados por promotores pela sua repercussão. É enviado um ofício para a empresa que estava obrigada a ressarcir o dano que causou para que o valor seja remetido para o projeto. É rápido, efetivo, eficaz e com prestação de contas”, afirma o coordenador do Caoma.
Na Gruta do Maquiné, a reportagem constatou a presença de biólogas do Semente fiscalizando os trabalhos do Opilião.
Atrações para todos
Principal foco do trabalho, a Gruta do Maquiné impressiona estudiosos e turistas. Visitar a caverna, topografada quatro vezes e estudada constantemente em trabalhos científicos, é conhecer a história e presenciar esse processo em andamento. São 650 metros, dos quais 440 lineares podem ser seguidos nos passeios guiados a turistas, com um desnível de 18 metros. Corredores, escadas, rampas e iluminação permitem que a visita seja feita sem muito esforço e com mais segurança.
O primeiro salão, do Vestíbulo, compreende a boca da caverna e é o único que recebe iluminação natural. Ali também se encontram as únicas pinturas rupestres da tradição planalto, que podem ter cerca de 7 mil anos. Um piso foi assentado décadas atrás para permitir a passagem dos turistas, há iluminação paisagística e instrutiva.
A caverna confinada propriamente dita segue com o Salão das Colunas. As passagens dali em diante são delimitadas por cordames fluorescentes, para evitar que as pessoas se aproximem demais dos espeleotemas, bem como da fauna. Microalgas aderidas à rocha dão um tom esverdeado a partes dessas formações, devido à iluminação.
Pelo menos três grandes colunas mexem com a imaginação e se destacam, dando nome a essa galeria. Uma delas, mais arredondada e em tom pastel, com a parte central mais clara, parece um pão francês com o seu miolo. Outra lembra a cortina de um teatro se abrindo, enquanto a terceira dá a impressão de ser uma cortina retalhada na qual das bordas sobraram as pontas cortadas.
Desse ponto se desce por escadas na rocha e se entra nos primeiros corredores mais estreitos até a terceira galeria, o Salão do Trono ou do Altar. É o segundo maior e o nome se deve a um nicho que lembra um oratório, com uma estalagmite representando a imagem de Nossa Senhora. Ao lado, outra formação de estalactites brancas descendo pontiagudas na direção do solo sugere uma geleira, com um urso polar em cima. É o local de gravação de duas novelas e de um filme.
O quarto salão é o do Carneiro, assim chamado devido à formação rochosa que lembra um caprino. Outra, ali próxima, parece um elefante de costas. Foi o último salão onde os exploradores de salitre mineraram a gruta e a partir de onde Peter Lund foi o primeiro a explorar, usando tochas, cordas e descendo na água até o quinto salão, chamado das Piscinas devido à inundação de formações naturais de calcário chamadas travertinos. Estalagmite gigante e arredondada de tom laranja divide o caminho para os dois salões adiante, o sexto, das Fadas, e o sétimo, do Cemitério.
O sexto salão, o das Fadas, goteja o ano todo e é o mais úmido. Nele, o gotejar de milhares de anos dos cristais de calcário formou estalactites e colunas que lembram uma maquete de um palácio. Sua alvura e brilho inspiraram Lund a chamar a formação de Castelo das Fadas.
A visitação se encerra na sétima galeria, o Salão Doutor Lund ou do Cemitério, o maior de todos e que levou esses nomes pela grande quantidade de ossos escavados pelo naturalista e, depois, por ser o local onde ele mais trabalhou.
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