Para o diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Joel Goldenfum, Porto Alegre está sofrendo com essa enchente histórica pela combinação de fatores, como as mudanças climáticas, a ocupação inadequada do solo e as falhas na manutenção do sistema de proteção contras as cheias. Nesta entrevista ao Correio, o engenheiro, doutor em Hidrologia, explica que o sistema de diques, feito para prevenir as cheias, é bem mais complexo que um simples muro.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Como explicar essa enchente recorde?
A cheia se explica por uma precipitação de até 500mm em um período muito curto, isso já aconteceu em 1941, com volumes similares, mas hoje Porto Alegre tem mais de 1 milhão de habitantes. Diferente do século passado, temos mais população, com boa parte das pessoas em áreas com risco para as cheias. Além disso, temos as mudanças climáticas e o El Niño. Acreditamos que, naquele ano de 1941, tivemos esse fenômeno. Então estamos vendo a combinação de três fatores, o El Niño, as mudanças climáticas e um uso inadequado do solo.
Fazem comparações com a cheia de 41 para questionar as mudanças climáticas, tem sentido?
Não. Em 1941, foi um evento extremo único, mas com as mudanças climáticas o que vemos é um aumento na ocorrência desses tipos de eventos extremos. Em 1941, tivemos 4,74 m. Antes, tivemos eventos apenas em 1936, com 3,25 m e 1928, com 3,2 m. Depois, só em 1967, com 3,13m. Agora é cada vez mais frequente. Aconteceu em setembro e, em novembro do ano passado, tivemos, em seis meses, três eventos extremos, isso só se explica pelas mudanças climáticas. Nas últimas três vezes, tivemos a elevação da água do Guaíba em Porto Alegre para além do nível de inundação.
Nessa última enchente, o sistema de proteção não falhou?
Ele funcionou, mas teve vazamentos, aí foi necessário utilizar sacos de areia porque as comportas não vedaram corretamente. Mas, ainda em 2023, se observou que as partes móveis do sistema estavam com dificuldades.
Esse sistema não deveria ter evitado uma enchente de até seis metros?
Na verdade, a cota seria menor que seis pois, imaginamos algumas ondas, seria um pouco menos. Dessa vez, ele deveria ter resistido, foi menos de seis, mas não resistiu por causa dos mesmos problemas. Mesmo antes dos quatro metros, o sistema já começou a vazar. A água passou de novo pelas comportas e, de novo, foram colocados sacos de areia, que também não resistiram.
O poder público podia ter resolvido?
Parece que foi uma falta de manutenção, sendo falta de manutenção é falha do serviço público. Mas se teve manutenção, como disse o prefeito, é estranho, todos os indícios apontam o contrário. Como o sistema não vedou a cheia? A comporta que deu problema no ano passado foi a mesma que rompeu nessa enchente, eu lembro, inclusive, da cena deles colocando os sacos de areia na comporta, em 2023.
Qual a solução para não passar por isso mais uma vez?
Tem mais de uma solução, a mais simples seria recuperar o sistema que existe. O muro da Mauá é um pedacinho, mas são 68 quilômetros de diques na cidade de Porto Alegre, incluindo diques internos e externos. A avenida Ipiranga faz parte do sistema de proteção, assim como algumas das principais avenidas e estradas da cidade foram construídas também como diques.
O prefeito falou em R$ 4 bilhões em drenagem, isso resolve?
Talvez precise até mais, vai ter que repor todo o sistema que existe, colocar de novo todas essas comportas, as que apresentaram problema precisam ser recuperadas. Tem várias comportas, são 14. O sistema falhou, na minha percepção, por falta de manutenção, mas isso nós temos que estudar depois e avaliar, só depois do sistema voltar ao normal, já a nossa vida, essa nunca mais deve voltar ao normal.
Como é que funciona esse sistema?
Basicamente todo o sistema de muro e diques está na altura de seis metros, todos no mesmo nível, e você tem as casas de bombas, que são em torno de 20, que mandam a água que está dentro da cidade para fora. Nós temos também o que chamamos de condutos forçados, que é aquilo que está acima dos sete metros e tem energia para passar a água para fora, sem bombas.
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Qual a expectativa das águas baixarem?
A expectativa otimista é de 10 dias a duas semanas, e a pessimista, eu nem sei, pois depende de quanto vai chover. Mesmo que o vento ajude, não chova mais. Ainda assim, vai ser um processo lento. Em 1941, que foi menor, levou 32 dias.
O IPH falou em evacuação, ainda há essa necessidade?
A gente não falou em evacuação da cidade, a gente falou na preparação para a evacuação das áreas que poderiam ser inundadas. No final acabou tendo que fazer a evacuação no centro da cidade e agora o pedido de evacuação em outros bairros. As pessoas não podem ficar dentro das casas ilhadas, mas é preciso fazer uma evacuação ordenada, sem as pessoas apavoradas. Nossa recomendação foi de fazer uma preparação.
Nesta segunda-feira (06) outro bairro começou a inundar e o prefeito recomendou apenas aos moradores de andares térreos a saírem pois a água não deve passar de 1,5 metro, é seguro?
Acho uma recomendação perigosa, se fosse um parente meu eu diria para sair. Se a caixa de luz estiver no térreo e a água chegar a 1,5 metro a energia precisa ser desligada. A cidade está inundando mais, pois a água que deveria ter ficado do lado de fora das comportas está entrando para dentro da cidade.
Sair da cidade é uma alternativa?
Nós estamos em um cenário de calamidade total, quando o prefeito recomendou que as pessoas fossem para o litoral foi uma demonstração que o sistema está em processo de ruptura. Mas o litoral não pode abrigar toda a população da capital. Cada vez mais as pessoas precisam ser realocadas, a recomendação é sair das áreas de risco.
O rio está estável em 5,3m há 24 horas, por que isso?
Principalmente porque está equilibrado o volume de água que está chegando dos afluentes e o que está saindo pra lagoa dos Patos. O sistema tem uma capacidade vazão, mas a água que está chegando ainda é a mesma que está saindo.
Como morador da cidade, qual é a sensação?
Parece que eu estou vivendo em um cenário de filme distópico. É uma sensação de impotência, não tem nada que a gente possa fazer mais. O que conseguimos fazer é apenas tentar ajudar as pessoas para que menos gente sofra. A gente está rodando modelos (das projeções hidrológicas) para tentar fazer que menos gente seja atingida.
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