Ponto a ponto

O Estatuto do Desarmamento já nasceu ameaçado, diz diretora do Instituto Sou da Paz

Carolina Ricardo pondera que o número de armas de fogo no Brasil é muito maior do que a média mundial e que "a arma de fogo aqui (no Brasil) tem um papel muito relevante na violência"

"A arma de fogo, aqui, tem um papel muito relevante na violência", afirmou a diretora executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, ao Podcast do Correio. A diretora pondera que o número de armas de fogo no Brasil é muito maior do que a média mundial e que "identificou um sequestro da pauta de segurança pública por determinados perfis parlamentares". Em sua visão, a bancada que age no Congresso no debate relacionado ao tema não está desempenhando um bom papel. A violência contra a mulher, por exemplo, está fortemente ligada à questão das armas de fogo. Confira os principais pontos da conversa que ela teve com os jornalistas Evandro Éboli e Sibele Negromonte:

Desarmamento

A média de percentual de mortes por arma de fogo no Brasil gira entre 70% e 75%, enquanto a média mundial é 45%. É uma média muito mais alta. A arma de fogo, aqui, tem um papel muito relevante na violência. Desde o primeiro dia em que o Estatuto do Desarmamento foi aprovado, já nasceu em risco, porque sempre teve um lobby parlamentar e de ativistas que apoia o armamento da população. Em 2005, o Brasil teve o primeiro referendo sobre proibir ou não a venda de armas de fogo no Brasil, e (o eleitor) optou por não proibir. O referendo perguntou apenas se a venda de armas deveria ser proibida, mais nada. Em 2019, quando a gestão Bolsonaro assume, houve uma outra lógica de tentar flexibilizar o acesso às armas não via Legislativo, mas via Executivo, por decretos e portarias. O Brasil se armou muito, a gente chegou a quase 3 milhões de armas nas mãos de civis no fim de 2022.

Papel do Congresso

Não existe solução milagrosa, e nenhum projeto de lei é capaz de resolver o problema da insegurança do Brasil. É uma bancada (pró-armas) que joga para sua torcida. Não é que os parlamentares pró-armas sejam necessariamente maioria ou que a população defenda armas de fogo em sua maioria, mas é um grupo muito barulhento, com perfil de redes sociais. A gente tem projetos de lei para autorizar que estados legislem sobre armas de fogo, para autorizar o uso de fuzil em segurança privada, em áreas rurais. É um pecado, sob pretexto de assegurar um direito individual de legítima defesa, acaba-se criando canais para as armas entrarem no mercado ilegal.

Polícia na política

O Sou da Paz tem mapeado o crescimento da participação de parlamentares e políticos eleitos oriundos de forças de segurança. Isso não precisa ser um problema por si. Eu acho que todas as categorias têm que ter o direito de participar da vida política eleitoral, mas, com que contornos? Se eu estou, hoje, em uma operação policial, pegando em arma, correndo risco de trocar tiros com bandido, eu posso, amanhã, estar num palanque fazendo discurso e, depois, voltar se eu não for eleito, para fazer segurança? Não vai dar bom. A gente deveria ter políticos oriundos das forças de segurança preocupados com política de segurança e não em aprovar na CCJ um projeto de lei que é claramente inconstitucional, como é o caso do projeto que autoriza os estados a legislar sobre armas, mas tem um monte de vídeo nas redes sociais como se essa fosse a grande vitória.

CACs

Nós temos um desafio enorme de rastrear armas no Brasil. É difícil a gente conseguir ter dados 100% confiáveis, por isso, a importância de migrar todo o sistema de registro de fiscalização de armas dos Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs) da cultura do Exército para a Polícia Federal. Ao longo dos anos, a gente foi vendo que a PF tem um critério mais difícil, discricionário, na hora de conceder ou não (licença), porque tem que comprovar os requisitos. A gente viu na auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) que o exército não tem nada, não tem estrutura, não consegue dizer quantas armas existem, de que tipo, em quais municípios. Isso é muito grave. Não estamos falando da criminalização dos CACs, até porque há muita gente séria que está praticando tiro, mas muita gente que queria ter o porte de arma, tirando o CAC, conseguia andar com a arma, pois passou a ser permitido andar em qualquer perímetro com a arma municiada.

Feminicídio

A gente fez uma pesquisa que mostra que cresceu, especialmente nos últimos cinco anos, o percentual de mulheres mortas nas suas casas por arma de fogo. A arma é um fator de risco, pode potencializar a violência em muitos casos e levar a uma violência letal. Teve uma pesquisa recente aqui no DF que, pela quantidade pequena do número absoluto, conseguiu fazer o rastreamento e identificou que mais da metade das armas usadas nos feminicídios, em 2023, eram armas registradas para CACs, armas legais. Isso mostra quem é um cidadão de bem até deixar de sê-lo, até praticar violência doméstica, até perder a cabeça e querer dar um tiro no vizinho porque estava com som alto. A arma potencializa isso.

Armas ilegais

É difícil fazer essa estimativa porque a gente não consegue contar as armas ilegais. Nas análises das armas apreendidas, que a gente fez pontualmente em São Paulo e nas Regiões Norte e Nordeste, é possível dizer que um percentual importante são armas nacionais — em geral, de 60% a 70% das armas são produzidas aqui. Em geral, são armas pequenas, revólveres, pistolas, o que indica que é uma arma que foi produzida e vendida legalmente, mas que, em algum momento, foi desviada para o mercado ilegal. Em um estudo recente que a gente fez olhando para as armas apreendidas no Rio de Janeiro e em São Paulo, percebeu-se uma mudança no perfil dessas armas apreendidas pela polícia. Aumentou (a apreensão de) pistola 9mm e fuzil. Quando você facilita o acesso a armas muito diferentes e potentes, elas acabam indo parar na mão do crime, o que dificulta muito o trabalho da polícia.

Legislação

Eu acho que estamos em um momento difícil, mas se a gente parar para olhar, foram pouquíssimas leis, ao longo desses 20 anos de Estatuto do Desarmamento, que de fato foram aprovadas, como o porte rural. O estatuto está em risco desde seu primeiro dia. O governo precisa entrar em cena e fazer uma discussão para dizer que a proposta no controle de armas não é nada radical, é uma política que volta aos parâmetros de 2018. O porte civil não é autorizado no Brasil, é importante ressaltar isso porque parece que queremos banir as armas. Não. O governo precisa bancar com força essa agenda do controle, que é muito razoável e foi construída a muitas mãos.

 

*Estagiária sob supervisão de Vinicius Doria

 

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