Ainda está viva na memória de muita gente a agonia dos médicos do Amazonas, na virada de 2020 para 2021, diante do enorme afluxo de pacientes aos hospitais com quadro grave de covid-19. O estado entrava na segunda onda da pandemia, ainda traumatizado pelas imagens de enterros em massa em covas rasas e corpos empilhados na entrada de unidades de saúde por falta de geladeiras, que marcaram a primeira onda, sete meses antes. A rede de saúde do Amazonas foi a primeira do país a entrar em colapso na pandemia.
Depoimentos dos médicos, à época, revelaram a angústia dos profissionais de saúde que tinham de "escolher" quem iria para uma unidade intensiva e quem ficaria de fora. Reportagem do Correio de 21 de janeiro de 2021 mostrou as "regras" que a Secretaria de Saúde do Amazonas determinou para disciplinar essa escolha de Sofia: "Pacientes que chegarem às unidades de saúde em estado terminal ou com situação considerada irreversível não serão mais enviados à Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A regra vale tanto para pessoas acometidas por covid-19 quanto para outras doenças, como câncer e problemas cardíacos".
Três anos depois, o país enfrenta mais um momento agudo de emergência sanitária, com o avanço do número de contaminações por dengue em praticamente todos os estados. Mas o que foi feito lá atrás, no auge da pandemia, está ajudando a rede hospitalar a não entrar em colapso — com exceção do Distrito Federal, cujo governador, Ibaneis Rocha (MDB), admitiu, na semana passada, que a situação na capital do país havia fugido do controle.
A ampliação da oferta de leitos de UTI — tanto na rede pública quanto na privada — para fazer frente à pandemia está assegurando, agora, atendimento para todos os casos graves de dengue, que exigem monitoramento intensivo. Em resumo: ao contrário da pandemia de covid-19, na epidemia de dengue ainda não faltam leitos de UTI.
Quando o Brasil sequer havia registrado seu primeiro caso confirmado de infecção por corona vírus, que já se espalhava pela Ásia e pela Europa, o Sistema Único de Saúde (SUS) administrava, em dezembro de 2019, 22.719 leitos de UTI, segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CES). O esforço emergencial para contratação de novos leitos de terapia intensiva acrescentou à rede mais 26 mil leitos até o início de 2022.
Avanço
Mesmo com o arrefecimento da pandemia, após a chegada da vacina e a desmontagem das estruturas temporárias (hospitais de campanha e leitos comuns adaptados para unidades intensivas, por exemplo), os investimentos na ampliação de vagas em UTI continuaram, com aumento de 1,3 mil leitos em 2023. Em dezembro do ano passado, a oferta do SUS somava 30.801 mil leitos em todo o país, cerca de 8 mil a mais do que em 2020 — muitos leitos montados ao longo dos anos eram provisórios, e foram desativados com o fim da emergência sanitária.
"O aumento no número de leitos de forma permanente e estrutural tem sido e continua sendo relevante para atender às demandas relacionadas aos cuidados intensivos e aos agravos à saúde. É importante destacar que as emergências em saúde pública exigem do sistema uma resposta que ultrapasse a capacidade já instalada", informou o Ministério da Saúde ao Correio.
Apesar do reforço dessa capacidade instalada, os médicos lembram que os protocolos de tratamento de covid e de dengue são muito diferentes. "Precisamos, sim, dessa ampliação de leitos de retaguarda, mas quando falamos de dengue, é fundamental falar do papel da atenção primária. Hoje, a maior concentração de óbitos é entre idosos, com mais de 60 anos. Esse idoso precisa ser monitorado, receber um atendimento diferenciado. A velocidade no primeiro atendimento é fundamental, porque a dengue tem a capacidade de causar casos graves. É preciso evitar a peregrinação do paciente por unidades de saúde. Isso reduz a necessidade de internação", disse o diretor do Departamento de Emergência em Saúde Pública do Ministério da Saúde, Márcio Garcia.
Agilidade
Por isso, o diretor reforça a importância da Central de Regulação de Leitos, que tem sido ágil na oferta de vagas. "Essa retaguarda da Central de Regulação é fundamental quando a gente identifica um caso grave em uma UBS (Unidade Básica de Saúde) ou em uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) que precisa de internação. Para internar, é preciso ter o leito disponível. Realmente, temos um legado em todo o Brasil com essa expansão de leitos", avaliou o diretor.
O ex-presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira e atual coordenador do Centro de Terapia Intensiva do Hospital Anchieta, em Taguatinga, Marcelo Maia, revelou que está com praticamente 100% das vagas de UTI da unidade em que trabalha ocupados por pacientes com dengue. "Já estamos ampliando a unidade em mais 10 leitos", disse ele. "Houve uma grande abertura de leitos no país, de forma rápida, na pandemia. Esse é um legado deixado pela covid. Populações que não tinham acesso a esse serviço passaram a ter."
Marcelo Maia ressalva, porém, que o Brasil vive uma nova emergência sanitária por causa da dengue, com mais de 1 milhão de casos. "Esses casos todos chegam aos hospitais, onde há avaliação dos sintomas, reposição hídrica. Não existem antivirais para tratar a dengue, a hidratação é fundamental. Mas, em determinadas situações, principalmente nos subgrupos C e D (de um total de quatro subgrupos conhecidos do vírus da dengue), os pacientes precisarão de internação hospitalar se apresentarem queda das plaquetas (elemento do sangue responsável pela coagulação), sangramentos na cavidade oral, na urina ou nas fezes", explicou ele.
Cruzamento viral
Os casos graves de dengue estão relacionados, principalmente, "à presença de outras doenças e condições de saúde, bem como ao manejo e atendimento oportuno do paciente", como informou o ministério em nota.
Como o pico da epidemia de dengue ainda deverá ser alcançado nos próximos dois meses, especialistas apostam que haverá aumento exponencial de casos de outras doenças, inclusive covid, em um momento em que mais de 80% das vagas de UTI em todo o país estão ocupadas com infectados pela dengue.
"Está aumentando em vários estados o número de contaminados pela covid-19, por exemplo. Por isso, é preciso que a população se vacine contra covid, complete o ciclo vacinal. A grande maioria dos pacientes com covid não se vacinou ou não tomou todas as doses necessárias. Nós precisamos ter cuidado, podemos ter coinfecção. Arboviroses como zika, chikungunya e dengue podem conviver com a covid-19. Agora que teremos a entrada do período de frio, vamos ter cruzamento viral. Com o frio vêm mais doenças respiratórias, como a bronquiolite viral, que atinge, principalmente, crianças", alertou Maia.