Moradores de Ouro Preto, na Região Central de Minas Gerais, se assustam a cada nuvem escura no céu. Todos os anos, durante o período chuvoso, o drama de deslizamentos de encostas se repete na cidade, classificada pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB) como o município com maior número de áreas de risco geológico do país.
São 313, sendo que pelo menos 97% delas estão no patamar de risco geológico alto e 2,8%, muito alto. Um ano depois de noticiar a chegada do município ao topo do ranking do SGB, a reportagem do Estado de Minas voltou à cidade histórica para ver o que mudou de lá para cá.
Considerado um trecho crítico durante os períodos chuvosos em Ouro Preto, o Morro da Forca, local conhecido pelo deslizamento de terra que há dois anos soterrou a primeira construção neocolonial da cidade – o Casarão Baeta Neves–, no Centro Histórico, segue sem solução à vista. A administração municipal afirma ter feito uma obra “mínima” para reduzir os riscos e aguarda a liberação de R$ 36 milhões para drenagem e contenção do relevo pelo “PAC das Encostas”, programa do governo federal. O recurso, concedido ao Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DER-MG), começou a ser negociado em 2012, mas está parado desde então.
Até lá, moradores e funcionários de estabelecimentos nas proximidades da encosta vivem sob o medo e tensão constante pela possibilidade de novos deslizamentos. Mostrando a casa atingida, Bárbara Maria de Souza, de 68 anos, se emociona. “Foi um susto. Minha cozinha foi destruída. Medo? Temos muito, mas o que a gente pode fazer?”, declara. Quatro gerações da família já moraram no terreno, a menos de 200 metros da Estação Ferroviária de Ouro Preto. Hoje, ela, a irmã, os filhos, netos e bisnetos vivem em duas casas no local.
Com um filho autista e epilético, a irmã de Bárbara, Eliane, de 64, acumula, com a chegada do período chuvoso, mais uma preocupação diária, que, inclusive, tira seu sono à noite. Desesperançosa, ela diz que a cidade é ‘feita’ para turistas. “Eu não sou geóloga, mas eu observo. Eu vejo cada dia descendo mais um pouco, é só observar as árvores”, disse apontando para o Morro da Forca. O desabamento da encosta traz um risco adicional para as famílias que moram ali: a inundação do Rio Funil, que corre à vista da janela de Bárbara. Mesmo assim, as irmãs voltaram para a casa sem o parecer da Defesa Civil, que não retornou à residência depois do deslizamento em 2022. “Ficamos na casa de um amigo em Saramenha. Mas não tinha como ficar muito tempo na casa dos outros. Tenho meu filho, ele é especial. Todas as nossas coisas, nossa vida, está aqui”, diz Eliane.
Depois de anos assistindo de camarote à novela de deslizamentos no Morro da Forca, que, segundo Eliane, tem picos mais intensos a cada 10 anos, a família se sente desamparada. “Caiu em cima de um supermercado uma vez, 10 anos depois cai de novo, passados 10 anos, de novo. E por aí vai até hoje. É sempre um medo, uma incerteza. Estamos abandonados. Aqui é só para turista ver”, critica. Apesar do risco, a família não pretende se mudar e a menção dessa possibilidade chega a arrancar lágrimas de Bárbara. “Meu pai trabalhou tantos anos para dar esta casa para nós. Toda nossa história está aqui”, diz, emocionada.
Quem vive em áreas de risco já conhece os perigos, aprende a “vigiar” o tempo e reúne todas as forças para lutar. Caminhando pelo Bairro Taquaral, área devastada pelas chuvas de 2022/2023, a reportagem viu ares de cidade-fantasma. Após deslizamento de uma encosta, alguns moradores tiveram que abandonar suas casas, deixando para trás até mesmo pertences pessoais, como um quadro da Nossa Senhora das Graças, flagrado pela reportagem ainda pendurado na parede de um dos imóveis. A característica do solo na região é um agravante. A área tem o que especialistas chamam de movimento de rastejo ou de massa, que, potencializado pela ação da chuva, contribui para a instabilidade da encosta.
Antônio Carlos, de 36, está entre os moradores que saíram às pressas de sua casa na época. Depois de quase dois anos morando na residência da sogra e sem perspectiva de uma solução definitiva para o problema, ele pensa em voltar para o imóvel, que hoje está cheio de rachaduras. “Se até maio não tiver nada, a nossa intenção é reformar e voltar. Com medo, sim, mas não tem como ficar morando de favor”, afirma. Nascido e criado na casa, o apego emocional também é mais forte. “Ter que sair é difícil demais. Se ao menos tivesse uma resposta se vamos ter indenização ou aluguel social, mas não houve nenhum retorno”, disse à reportagem do Estado de Minas.
A funcionária pública, Mônica Dias, de 42, ficou um tempo na casa de parentes em Mariana, porém acabou retornando. “Não consegui manter isso por muito tempo, porque trabalho aqui, meus filhos estudam aqui e tínhamos que fazer esse trajeto todos os dias. Era muito gasto. Até então, o suporte que tenho é o que eu mesma me dou. Não tem ninguém que olhe por nós”, disse. A ela foi oferecido o aluguel social, pago pela prefeitura, o que, no entanto, não resolveu o problema. “Olha a estrutura da minha casa. Como eu vou arrumar uma casa de R$ 700 em Ouro Preto? O mínimo que eu estava olhando era R$ 1.600. Rodei a cidade inteira e não existe imóvel nesse valor. Tenho a minha mãe que mora comigo também, é uma idosa”, aponta.
HERANÇA PERIGOSA
Quem se aventura por Ouro Preto já conhece o sobe e desce de ladeiras. Essa característica montanhosa coloca o município em um cenário geológico complexo, que culminou na classificação da cidade como a de maior número de áreas de risco do país, conforme levantamento do Serviço Geológico do Brasil (SGB). Localizada em uma região marcada por relevo montanhoso e solos sensíveis ao deslizamento de terra, o município soma essa peculiaridade geológica a construções frágeis em um relevo de morros, fatores que contribuem para que tragédias se tornem recorrentes.
A peculiaridade geológica da região traz desafios intrínsecos para garantir a segurança dos moradores e a proteção do patrimônio da cidade, que já foi capital de Minas Gerais, quando ainda era chamada de Vila Rica. “Ouro Preto foi construída em uma região de encostas muito acidentadas. Hoje, um projetista não construiria uma cidade em um local como esse. Aqui só foi construído em função das minas de ouro descobertas na serra”, explica o engenheiro de minas e professor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) Hernani Mota de Lima.
Na cidade histórica, a população ocupa os espaços entre as montanhas e o Parque do Itacolomi desde o Ciclo do Ouro. Muitas construções são irregulares, erguidas nas encostas. Somadas à falta de políticas públicas de moradia e urbanização, essas áreas colocam em risco também o patrimônio histórico e cultural do município. “O crescimento urbano foi empurrado para áreas de instabilidade. Em locais que eles escolheram como mais seguros ou menos inseguros. Infelizmente, é a população de baixa renda que está mais suscetível, mas isso é um caso de todo o Brasil”, destaca o professor.
A herança histórica da mineração também potencializa o risco e torna o município mais suscetível a escorregamentos de terra. “Ao longo de mais de 100 anos, a serra foi toda revirada, foram construídas inúmeras minas subterrâneas. Depois que acabou o Ciclo do Ouro, a região começou a ser ocupada por moradias em uma encosta que já tinha tendência ao escorregamento por causa da sua formação geológica”, explica o engenheiro civil Eduardo Evangelista Ferreira, morador do Bairro São Cristóvão, que se especializou em geologia para entender as demandas de sua cidade.
Não é raro as fortes chuvas provocarem desmoronamento de casas, e os moradores acabarem descobrindo que o imóvel estava em cima de mina de ouro. Até hoje, no entanto, o município não mapeou esses pontos de minas subterrâneas, herança do período colonial. “São aberturas pequenas, mas, por outro lado, são muito próximas à superfície. Na maioria dos casos, menos de 10 metros. Com isso, o terreno acaba colapsando, o que chega a afetar as estruturas da superfície”, explica Hernani Mota. Agora, uma iniciativa da Ufop pretende fazer esse trabalho. Só na área do Bairro São Cristóvão, segundo Eduardo, já foram identificadas 43 escavações. A Defesa Civil do município reconhece o risco e diz estar trabalhando junto à universidade para o mapeamento dessas áreas.
O secretário municipal de Defesa Social de Ouro Preto, Juscelino Gonçalves, avalia o risco deste período chuvoso como baixo. “Em relação aos anos anteriores, estamos ‘confortáveis’ no que diz respeito aos estragos que as chuvas provocam”, disse em conversa com a reportagem do Estado de Minas. Isso se deve ao baixo volume de chuvas. “Não estamos nem no alerta laranja”, afirma.
PLANO MUNICIPAL
Depois do estudo publicado pelo SGB, que identificou 313 áreas de risco geológico na cidade, Gonçalves diz que a administração municipal aperfeiçoou ponto a ponto as áreas classificadas como de risco, e criou um plano municipal de redução de risco. A administração municipal especificou 182 pontos de atenção. No Bairro Taquaral, por exemplo, que era considerado uma área “perdida”, a delimitação exigiu a desocupação apenas de 34 casas. “Tivemos uma grande remoção no ano passado, acreditando que o risco alcançava todo o bairro, mas as análises mostraram que só essas estavam sob esse efeito”, diz o secretário. As famílias em áreas de alto risco foram desabrigadas e encaminhadas para o aluguel social ou indenização.
Moradores e especialistas cobram maior efetividade nas ações de prevenção, antes do início do período chuvoso. “Não há investimento em prevenção, só em tapar buraco. Quando chega o período chuvoso fica todo mundo sobrecarregado lá, os colegas da Defesa Civil, mas não há um plano de obras para poder reestruturar a cidade”, afirma Eduardo Evangelista.