Usar um símbolo de sua própria religião e ser ofendido por isso tem se tornado cada vez mais comum no Brasil. É o que mostram dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Na semana passada, um caso como esse viralizou nas redes. Uma mulher foi insultada enquanto voltava para casa, de metrô, na Bahia, por usar um fio de conta, um colar que faz parte do ritual do candomblé.
Apesar de ser um país laico, ou seja, que aceita todos os credos, e de que intolerância religiosa é crime, só em 2023 foram 1.478 denúncias no Disque 100 sobre o assunto no Brasil. O número representa um aumento de 60% em relação a 2022, quando foram registrados 898 casos e segue tendência de crescimento dos últimos anos. No Distrito Federal, em 2023 foram registradas 42 ocorrências de discriminação religiosa pela Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), um aumento de 55% em relação a 2022, quando foram registrados 27 ocorrências do tipo, segundo levantamento obtido pelo Correio.
Para se ter uma ideia, em 2018, foram registrados 615 registros do tipo pelo Disque 100. Entre as denúncias, as de violação à liberdade de crença ocupam o primeiro lugar, seguidas das de violação à liberdade de culto e, por fim, as de violação à liberdade de não crença. Os estados com mais casos são Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia.
Neste domingo (21/1) foi lembrado o Dia de Combate à Intolerância Religiosa. A data foi instituída em lembrança à morte da Iyalorixá baiana e fundadora do Ilê Asé Abassá, Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda. Apesar do aumento, o crime agora é punido com mais severidade. Em 2023, a pena para quem pratica intolerância religiosa foi aumentada. Desde o ano passado, quem comete esse crime pode pegar de dois a cinco anos de prisão. É a mesma pena prevista para o crime de racismo.
Além disso, o artigo 5º da Constituição Federal prevê que a liberdade de consciência e de crença não pode ser violada, que é assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e que deve ser garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
Em 2022, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também criou a Política Nacional de Promoção à Liberdade Religiosa e Combate à Intolerância no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. Na norma, o CNJ define, para os órgãos de Justiça, os conceitos de liberdade religiosa, discriminação, tolerância, cultura, religião/doutrina. Dessa forma, desde o ano passado, o CNJ consegue fazer levantamento de quantos processos foram iniciados na Justiça envolvendo o tema, no caso 26.
Mas, segundo o SaferNet Brasil, que oferece um serviço de recebimento de denúncias anônimas de crimes e violações contra os Direitos Humanos na Internet, o número de casos é muito maior. Só em 2022 foram processados 4.220 denúncias anônimas de Intolerância Religiosa, envolvendo 764 páginas na internet distintas. Em 17 anos de projeto, foram 276.784 denúncias anônimas do crime.
Segundo a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), em relatório de 2022, de 255 comunidades tradicionais de terreiros escutadas, 78% relataram que membros de suas comunidades já sofreram algum tipo de violência por racismo religioso.
De acordo com Eurico Antônio Gonzalez Cursino dos Santos, professor de sociologia da religião do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), essa tendência de aumento foi influenciada por uma maior presença de discursos religiosos nas políticas nos últimos anos. “Existe um aquecimento no mercado religioso. Se está mais perto do Estado, tem vantagens”, destaca. “Todo fiel que não está na religião que está se expandindo é potencialmente um alvo”, avalia. De acordo com pesquisa do Datafolha de 2020, no Brasil, os católicos são maioria, com 50% de praticantes. Mas os evangélicos são os que mais crescem, hoje são 33% da população. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a religião cresceu 61,5 por cento em dez anos.
Neste ano, a pauta da liberdade religiosa também está no debate do Supremo Tribunal Federal (STF). Isso porque a Corte julgará um caso que pode mudar o entendimento sobre a presença de símbolos religiosos em fotos de documentos. O processo analisado discute se as pessoas podem ser fotografadas para documento de identificação usando adereços religiosos. O professor Eurico avalia que não há problema na presença de símbolos religiosos nessas fotos, só não poderiam aqueles que não permitissem a identificação da pessoa, como véus, por exemplo.
Combater é preciso
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania informou ao Correio que o aumento das denúncias no Disque 100 “se deve a retomada da confiança neste importante serviço por parte da sociedade”, já que a gestão tem acolhido todas as denúncias de violação de direitos humanos de forma humanizada e dado o devido encaminhamento junto às autoridades competentes.
Sobre a intolerância religiosa, a pasta disse que criou a inédita Coordenação de Promoção da Liberdade Religiosa (CGPLR), que compõe o Grupo de Trabalho Interministerial para o desenvolvimento do Programa de Enfrentamento ao Racismo Religioso e Redução da Violência e Discriminação contra Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Povos de Terreiros no Brasil.
Segundo o professor Eurico, sempre existirá a intolerância religiosa, mas é possível diminuir os casos enfatizando a lei. “Sumir completamente nunca vai acontecer, mas uma só religião nunca vai nos unir. A sociedade é religiosamente diversa e o que une é a própria ideia política da tolerância. Ninguém vai impedir você de praticar a sua religião e você não pode impedir o outro”, frisa.
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