ENTREVISTA

'Nossa sociedade está doente', diz Renan Vinicius Sotto Mayo, defensor público

Ao Correio, Renan Vinicius Sotto Mayo, defensor público, integrante do Grupo de Trabalho de Pessoas em Situação de Rua da DPU comenta qual a expectativa para a Política Nacional para Pessoas de Rua

O Plano Nacional para a População de Rua que será lançado hoje pelo governo federal atende determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. Em uma ação que corre na corte, ele decidiu, em julho, que o Estado tinha 120 dias para propor a política pública. A ADPF 976 também proibiu a remoção forçada dessa população das ruas.

Desde então, o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para População em Situação de Rua (Ciamp-Rua) está trabalhando na construção dessa política pública. O grupo conta com a presença de representantes do Ministério dos Direitos Humanos e outros órgãos federais, e também de movimentos sociais e organizações civis, como a Defensoria Pública da União (DPU).

Renan Vinicius Sotto Mayor é defensor público federal e atua diretamente com as pessoas em situação de rua há 10 anos. Integrante do Grupo de Trabalho de Pessoas em Situação de Rua (GT-Rua) da DPU, ele já atuou como Secretário-Geral de Articulação Institucional na DPU (2015-2018) e foi presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

Em dezembro do ano passado, o especialista representou o CNDH durante audiência na Suprema Corte, que discutiu a população em situação de rua. Neste ano, ele acompanhou o processo que culminou no projeto que será lançado. Ao Correio, ele comenta o que observou ao longo dos anos acompanhando essas pessoas e qual a expectativa para a Política Nacional para Pessoas de Rua.

Como está a realidade da população que está em situação de rua hoje no Brasil?

Eu hoje conheço, na prática, um pouco da realidade da população em situação de rua de vários estados do Brasil. Aí você vê assim, por exemplo, esse calor infernal, a pessoa não poder tomar banho. Às vezes tem o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) num local muito distante ou ela vai e está lotado, às vezes, tem só um banheiro para todo mundo.

Como você avalia o plano que será lançado pelo Ministério de Direitos Humanos e Cidadania?

É um momento histórico para a população em situação de rua no Brasil, pela primeira vez temos um plano dessa magnitude, todavia, para superar o estado de coisas inconstitucional, ou seja, violação sistemática de direitos humanos que vivenciam as pessoas em situação de rua, ainda precisamos avançar com mais orçamento para moradia para a população em situação de rua, por exemplo.

Qual a importância de ter uma política nacional para a população em situação de rua no Brasil?

A gente está muito esperançoso de conseguir pela primeira vez, em séculos, enfrentar a situação de rua. Ela precisa ser enfrentada como uma violação de direitos humanos. Porque é isso.

Como você avalia a ADPF do ministro Alexandre de Moraes que instituiu 120 dias para a construção dessa política voltada à população de rua?

A ADPF 976 entra no bojo do que a gente chama de estado de coisas inconstitucional - que é uma violação massiva de direitos humanos. Enquanto Defensoria Pública da União, enquanto alguém que trabalha e vê a situação de rua, eu não tenho dúvida que é um estado de coisas inconstitucional. Para quem não é do direito: entender o estado de coisas inconstitucionais é fácil, é só você ler a Constituição e ver a realidade das pessoas em situação de rua. Você lê o artigo 6º da Constituição, está lá o direito à moradia e, na realidade, as pessoas não têm políticas efetivas de moradia para a população em situação de rua.

A resolução imediata dessa ADPF foi proibir a remoção compulsória da população de rua. Isso está funcionando?

A decisão do ministro Alexandre de Moraes [de proibir a remoção forçada das ruas] foi muito importante, mas não mudou a realidade. A gente teve recentemente, em Santa Catarina, policiais tirando as pessoas em situação de rua e as fazendo caminhar de uma cidade para outra, mesmo que já exista uma decisão no STF expressando que esse tipo de comportamento não é permitido. O que a gente está fazendo é uma recomendação para os Estados cumprirem a decisão do STF. Vamos começar a juntar essas violações e denunciar na própria Corte.

E como está a questão dos abrigos para pessoas em situação de rua?

Cada vez mais a gente fala que abrigo não é solução. Temos essa política desde 2009 e de lá para cá só aumentou a população em situação de rua. A gente tem o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de que, em 2016, eram 101 mil pessoas e, em 2022, eram mais de 288 mil pessoas. E é tão surreal a situação de rua, que ela sequer é computada pelo Censo do IBGE, que só computa pessoas domiciliadas.

Você comentou sobre esse aumento da população em situação de rua. Por que você acredita que isso ocorreu?

Houve um empobrecimento da população durante a pandemia. Às vezes, a pessoa está em situação de rua simplesmente porque ficou desempregada.

E são muitas pessoas nessa situação...

A gente pensar que tem cerca de 300 mil pessoas em situação de rua é surreal. Uma vez, quando eu era secretário de articulação da DPU, um indígena foi falar comigo e disse assim: "Doutor, como vocês conseguem ficar aqui no ar condicionado, sabendo que tem essas pessoas em situação de rua? Lá na minha aldeia se tem alguém passando fome, a gente vai na roça do outro e dá a comida".

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