Lisboa — A chegada de 2024 tem um misto de preocupação e de esperança para os brasileiros que vivem, trabalham e estudam em Portugal. Há entre eles a percepção de que o novo ano será de muitas oportunidades, mas, também, de possíveis turbulências, por conta das eleições marcadas para 10 de março.
O maior temor é de que a extrema direita chegue ao poder, o que não é impossível, endurecendo as leis contra os estrangeiros, como ocorre em várias partes da Europa. Representantes desse grupo radical fazem questão de entoar um discurso xenófobo, alimentando ataques cada vez mais frequentes a cidadãos que vêm de fora. No meio dessas preocupações, está a falta de moradias dignas. Nunca foi tão caro ter um teto no país.
Há 20 anos em território luso, a baiana Adélia Pauferro, 44 anos, é grata por tudo o que conquistou nesse período. Produtora de eventos, palestrante e ativista, ela teme por uma guinada do país à direita. "Como mãe e imigrante, espero que as eleições de 2024 não nos surpreendam para pior. Torço para que o povo português tenha consciência — assim como os brasileiros que vivem e votam no país — na hora de depositar os votos nas urnas. Precisamos ter cuidado com o que faremos com Portugal", afirma.
Filha de Adélia, Victoria, de oito anos, está certa de que o país onde nasceu tem tudo para lhe oferecer o melhor. "Não sou imigrante, mas minha mãe é. Então, espero que tudo corra bem em 2024", diz.
Ao longo dos últimos seis anos, Portugal recebeu um fluxo intenso de imigrantes, a maioria brasileiros. Foi o próprio governo luso que incentivou esse movimento, devido ao envelhecimento da população local. As estatísticas mais recentes apontam que o país tem, hoje, mais de 1 milhão de imigrantes legalizados — o correspondente a 10% dos habitantes. Desse total, 400 mil são brasileiros.
Estima-se que mais de 150 mil estão esperando pela regularização dos documentos e cerca de 200 mil têm dupla nacionalidade. O grosso desses cidadãos tem um desejo em comum: uma vida melhor.
"Como qualquer ser humano, queremos um bom trabalho e dinheiro para pagar nossas contas", ressalta Alex Resende, 52, que morou em Portugal por 10 anos e, hoje, vive na Suíça. "Todos querem uma vida confortável", reforça.
Do ponto de vista do mercado de trabalho, não faltará oportunidades para aqueles que não se intimidam em pegar no pesado. Levantamento realizado pela consultoria Manpower aponta que 42% das empresas portuguesas pretendem contratar nos primeiros três meses de 2024. A mesma pesquisa mostra que 81% das companhias têm dificuldades para contratar, por falta de mão de obra.
Chave está na tolerância
O músico Jardelton Silva, de 39 anos, respira mais aliviado. Depois do sufoco enfrentado na pandemia de covid-19, com a suspensão de todas as atividades artísticas, ele espera que 2024 seja de fartura. "Torço para que haja trabalho para todos", frisa. Ele está em Portugal desde 2008, quando cruzou o Atlântico para tocar em uma banda de baile e nunca mais parou.
Natural do Ceará, Renata Ribeiro, 40, mãe de Esaú, como gosta de ressaltar, acredita que o momento exige uma reflexão para que se construa um mundo mais tolerante. O ano que terminou foi um dos mais letais desde 1945, quando houve o fim da II Guerra Mundial. Pelo menos 263 mil pessoas perderam a vida em conflitos armados.
Um dos casos mais assustadores de xenofobia e misoginia ocorreu em novembro. A jornalista Grazielle Tavares, 49, levou um soco da boca e um chute na barriga de um português dentro da Universidade do Minho, no norte de Portugal. O motivo: desentendimentos em um trabalho para o curso de pós-graduação em Comunicação Social. Um processo foi aberto pela Justiça, mas nada ocorreu até agora.
Ainda muito abalada pela violência da qual foi vítima, Grazielle espera que 2024 seja um estímulo para um mundo mais acolhedor. "É preciso respeitar as diferenças e que todos tenham mais empatia", diz.
Para ela, as pessoas devem se encorajar e enfrentar o desconhecido. Foi o que fez Cléo Barral, 45, desenvolvedora de empresas, quando decidiu encarar um mundo novo. Primeiro, trocou o Brasil pela Irlanda, onde construiu uma bela carreira. Agora, em Portugal, vê a importância de se ter uma sociedade mais tolerante, engajada na construção da paz.
Do olhar para as crianças à troca cultural
A educadora e artista visual Paula Erber, de 52 anos, lida diariamente com o futuro. Trabalha com crianças imigrantes no Centro de Apoio às Famílias, onde realiza atividades de educação formal e informal. Inserir esse grupo na sociedade local não é tarefa fácil.
“Por isso, meu grande desejo em 2024 é aprofundar esse trabalho”, assinala Paula, que vê com grande preocupação o forte aumento de custos em Portugal. “Paralelamente, quero continuar a desenvolver meus trabalhos de artes visuais e joalheria, se possível com uma exposição em Lisboa, cidade que me acolheu muito bem”, acrescenta.
Confiança não falta à fotógrafa e artista gráfica Pat Cividanes, 44. Ela tem certeza de que 2024 será de boas batalhas, daquelas que podem ser fáceis ou difíceis, mas que valem a luta. “Acredito que será um ano produtivo, pois, em 2023, semeamos muito. A hora é de colher”, destaca.
Contudo, ela faz uma ressalva: “O que mais me preocupa em Portugal, sem dúvida, é a ascensão da extrema direita. Não apenas como imigrante, mas pela sociedade em si. Conhecemos de perto o tamanho que pode ser o estrago. Que a novela brasileira não se repita em Portugal”, reforça.
O marido de Pat, Ruy Filho, 50 anos, crítico de teatro e curador, diz ter encontrado em Portugal muita receptividade no diálogo com academia, artistas, festivais e o público português e estrangeiro. “Isso tem sido ótimo, pois, com parcerias mais duradouras, tenho compreendido melhor alguns aspectos da cultura local e apresentado outras perspectivas para pensarmos juntos as artes e o contemporâneo, inclusive sobre eles mesmos e quem sou, agora, no papel de estrangeiro”, afirma.
Para Ruy, a percepção do outro requer disponibilidade e aceitação. “Olho as notícias e vejo essa dificuldade não ser enfrentada totalmente. A relação com os imigrantes e refugiados é complexa nesse momento de descontrole econômico, quando não há oportunidade para todos, e, quando existe, é assimétrica”, enfatiza.
Esse estado de tensionamento também ocorre nas manifestações da cultura, até mesmo em seus aspectos mais simples, como, por exemplo, alguma recusa em compreender costumes e comportamentos de ambos os lados, não pela sociedade inteira, mas por parte dela.
“É essa parte que tem ganhado os noticiários ao ser mais barulhenta. Sem que as diferenças sejam equilibradas, as culturas específicas se tornam uma espécie de agressão por aquilo que querem impor aos demais. Espero que o português perceba existir, na diferença, uma possibilidade de encontrar ainda mais o mundo. E, ao brasileiro, que não se trata de abrasileirar o português por sermos uma imensa presença no país”, complementa Ruy.
Nina Martins, 42, também deseja um ano novo de mais tolerância, sobretudo com os imigrantes. A agente de viagens, que nasceu no Amapá e faz parte do Coletivo Macumba Literária, lembra os recentes e assustadores ataques sofridos por brasileiros em Portugal. Estudo do Observatório das Migrações indica que apenas o fato de ser cidadão oriundo do Brasil é motivo para discriminação no país luso. Das denúncias feitas à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial no último ano, 34,2% partiram de brasileiros.
Pesquisadora e produtora de eventos, Luíza Gonçalves Cunha, 28, se emociona ao falar sobre o ano novo que está batendo à porta. “Pensar no futuro sem estar perto da minha família e dos meus amigos dá uma certa agonia”, afirma.
Com a voz embargada, reconhece, porém, que os quase três anos de Portugal lhe deixaram muito mais forte para encarar o desconhecido e aproveitar as oportunidades que estão escancaradas. “Para mim, se tem uma palavra que vai guiar 2024, ela é ‘abraço’. Quero abraçar as diferenças e até os portugueses que não nos querem no país deles. Quero abraçar o que fui, o que sou e o que está por vir”, salienta.
Dependência do estrangeiro
A empresária Evones Santos, de 42 anos, 21 dos quais em Portugal, reconhece não ser fácil a vida de imigrante. O que mais a assusta no momento é o aumento da rejeição a esse grupo. Sem a mão de obra vinda de fora, boa parte das empresas portuguesas para, mas, mesmo assim, parte da população se sente agredida pelos “invasores”.
Com forte atuação política, especialmente na defesa das mulheres, Evones lembra que parte dos imigrantes que estão vivendo em Portugal foi deslocada de seus países por causa das guerras. Ela não esconde a preocupação com os rumos que podem ser tomados por Portugal após as eleições de 10 de março. “O risco de a hostilidade aumentar é real”, enfatiza.
A mesma avaliação é feita por Nilzete Pacheco, 57, fundadora da Associação Empresarial dos Imigrantes em Portugal e da Associação Lusofonia, Cultura e Cidadania. “Portugal tem um histórico de emigração. Parcela importante de sua população foi tentar uma vida melhor em outros países, como o Brasil. Portanto, que compreenda quem está vindo em direção ao território luso”, observa.
Para a antropóloga Manuela Martins, 64, o melhor que 2024 pode lhe oferecer em sua jornada por Portugal é uma moradia de qualidade. Desde que chegou ao país, há pouco mais de três anos, ela, que é cidadã portuguesa, ainda não conseguiu alugar um imóvel em que possa viver sozinha.
Não se trata de um problema só dos imigrantes — a população lusitana também pena para ter onde morar. A crise habitacional decorre da valorização dos imóveis, muitos adquiridos por estrangeiros ricos e por grupos de investidores, que os destinam ao turismo.
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