IGUALDADE RACIAL

Advogados refletem sobre racismo e relatam discriminação no Judiciário

Apesar de avanços na sociedade, como a indicação de uma mulher negra ao TSE, juristas contam suas experiências e histórias de discriminação no Judiciário. Com 1,5 milhão de advogados, país possui baixo percentual de pessoas negras na profissão

Advogado Nauê Bernardo ressalta a baixa representatividade de pessoas negras no mercado de trabalho e universidades -  (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
Advogado Nauê Bernardo ressalta a baixa representatividade de pessoas negras no mercado de trabalho e universidades - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
postado em 24/12/2023 19:01

O ano de 2023 contou com importantes avanços na representatividade de pessoas negras no Judiciário. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou a lei que torna feriado o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, em 20 de novembro, além de indicar a advogada Vera Lúcia, uma mulher negra, para compor o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). No entanto, as ações ainda estão longe do que é considerado ideal para promover avanços significativos. Neste momento crucial da democracia brasileira, o Correio reuniu histórias e reflexões de profissionais da área — que é conhecida pela predominância de brancos.

Segundo dados do sistema da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), apenas 6,02% das advogadas do país são negras. No caso dos homens, o percentual passa para 7,45%. As informações se referem ao ingresso nos últimos dez anos na instituição. Na magistratura, é ainda mais alarmante. De acordo com o mais recente Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e divulgado em setembro deste ano, identificam-se como pessoas pretas apenas 1,7% dos magistrados e magistradas no país.

A advogada Sílvia Souza, presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB Nacional, faz parte das mulheres negras que compõem a advocacia brasileira. Filha de uma empregada doméstica aposentada e de um marceneiro, ela ingressou no movimento negro durante a adolescência na luta pelo direito às cotas raciais nas universidades.

Na profissão, a jurista conta que sofreu discriminações durante a carreira e destaca a baixa representatividade de negros ainda na universidade. "Na faculdade, havia, sim, a menor presença de pessoas negras no meu curso. Eu acho que o direito não é mais um curso tão elitista quanto a medicina por conta da proliferação dos cursos. O Brasil é o país que tem mais faculdades de direito e o país com mais advogados no mundo. Hoje, somos 1,5 milhão de advogados", observa.

Sílvia Souza aponta que, apesar dos avanços nos últimos anos, o país ainda engatinha no que se refere à igualdade racial no mercado de trabalho. "A minha avaliação é que, embora haja um esforço de vários escritórios para inserir pessoas negras, esses programas não produzem mudanças estruturais no termo de aumentar a presença de pessoas negras nos seus quadros acima de 30% a 40%. Acredito que a mudança vai acontecer quando esses escritórios elevarem os programas para os cargos de comando", diz.

Ela conta que já vivenciou situações de racismo em todos os níveis. "Desde comentários inapropriados sobre o cabelo trançado a situações em que o racismo se manifesta de forma mais veemente e explícita. Eu acho que não tem nenhuma pessoa negra que está no direito ocupando espaços importantes que não tenha vivenciado situações de racismo", lamenta a conselheira da OAB.

O advogado Beethoven Andrade, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-DF, ressalta o mesmo sentimento em relação à baixa representatividade de negros na universidade.

"Sobretudo quanto ao corpo docente, ainda é difícil encontrar um número expressivo de professores negros ministrando aulas no nível superior, especialmente em faculdades particulares. Não quero ser injusto quanto a isso, é preciso reconhecer um avanço por parte de diversas instituições de ensino superior que implementaram programa de contratação de professores negros, por isso sei que esse cenário poderá mudar, ainda que em médio ou longo prazo", afirma.

Andrade fez faculdade graças ao Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES). "Eu tinha ciência de que essa seria a realidade, uma vez que estudava no período noturno e sabia que nós, negros, em muitos casos, iniciavámos a vida de trabalho mais cedo, até mesmo para contribuir com o sustento da família, assim não sobrava tempo para 'pensar em estudar'. É triste, mas essa é a realidade, e me sentia cada vez mais forte para prosseguir em meus objetivos por conta disso, não queria ser mais um que iniciou e parou", relata.

Constrangimentos

O advogado e cientista político Nauê Bernardo de Azevedo conta que não teve nenhum professor negro na universidade. Ele também lecionou e afirma que, durante um período de quatro anos, era o único profissional negro entre os educadores da instituição em que trabalhava. O jurista, que tem um escritório no Lago Sul, área nobre de Brasília, avalia que é preciso quebrar a barreira do estranhamento.

"No geral, o sistema de Justiça não está acostumado com pessoas negras. E isso fica expresso quando se olha para os quadros da Defensoria Pública, do Ministério Público e da magistratura. Temos pouquíssimas pessoas negras. Mesmo com a política de cotas, ainda não conseguimos chegar àquele mínimo de 20% ou 30%. Não ter uma parcela muito representativa da população negra nesses locais significa muito", ressalta.

Azevedo relata que passou por diversas situações de racismo no contexto da profissão. Em uma delas, em março de 2022, ele foi confundido, por um segurança do STF, com um motorista. "A questão do constrangimento pesa. Eu aprendi e criei meus artifícios, mas essa pressão psicológica pesa. Esse senso generalizado de que a gente não pode errar. Isso adoece. Eu sou um dos poucos advogados negros donos de escritório no Lago Sul", desabafa.

"Cansa ser o único nos ambientes que você está. Eu brigo para que, no futuro, que seja em breve, mais pessoas negras tenham a possibilidade de conseguir alcançar as coisas que elas almejam. Não há liberdade para as pessoas negras porque elas estão submissas a um sistema que as oprime. A gente precisa que a sociedade olhe para esse fenômeno sistêmico do racismo, enfrente esse bicho, assuma que ele existe, entenda que é um processo dolorido", completa.

Apesar do baixo percentual, o advogado é positivo em relação às mudanças na área. "Hoje, pelo menos o CNJ me parece que começou a olhar com mais carinho para isso. Na gestão da ministra Rosa Weber, principalmente. O STF, por exemplo, manteve a lei de cotas, depois, novamente, a lei de cotas no serviço público. Já há, realmente, a percepção de que nós devemos lidar com o problema, mas é importante que nós, enquanto sociedade, entendemos que esse é um problema nosso, da sociedade. Não é um problema só do outro", afirma.

Para Beethoven Andrade, a baixa representatividade pode afastar as pessoas negras de seus projetos. "Assim como muitos negros, não fiz estágio em escritórios, eu precisava trabalhar e não podia me afastar disso para ganhar apenas a bolsa ofertada, todavia, vi muitos negros buscarem escritórios e não encontrarem oportunidade nesses espaços, cujo motivo claro disso era apenas a seleção baseada na cor da pele, e isso era um fator que também me desmotivava. Se pensarmos o quão seletivo em termos de contratação, pode ser o direito, a ausência de representatividade reflete tão somente a formatação do racismo estrutural brasileiro", diz.

Poucas mulheres

A luta para corrigir retrocessos em pautas históricas da sociedade passa pela inclusão racial e equidade de gênero. Vera Lúcia será a segunda mulher negra a integrar o TSE. Em junho, o presidente Lula indicou Edilene Lobo para compor a Corte. Apesar da pressão para indicar alguém com os mesmos critérios para a vaga da ministra aposentada Rosa Weber, no Supremo Tribunal Federal (STF), o petista escolheu o atual ministro da Justiça, Flávio Dino — que se identifica como pardo.

A advogada Patrícia Guimarães deixou o curso de letras para estudar e se tornar advogada. Atualmente, ela comanda um escritório em Santa Maria, região administrativa do Distrito Federal, e reflete sobre o peso de ser uma mulher negra na sociedade brasileira. "A gente sabe que isso faz diferença, sim. É uma coisa que machuca. A gente sempre tem que estar ali estudando 20 vezes mais, se colocando 20 vezes mais dentro do mercado para ter local de fala e ainda algumas pessoas dizerem que racismo não existe. Não é um mal entendido, não é uma brincadeira", afirma.

Guimarães começou a carreira atuando na área criminal, mas a maternidade a levou para outras especialidades. "Logo tive filhos e eu decidi pela maternidade. Porque quando você é criminalista, você tem uma certa dificuldade. É uma área que é um pouco voltada para os homens justamente pela questão do tempo. Como o meu tempo ficou mais escasso, eu optei pela maternidade e aí fui para a área cível e me especializei. Durante a pandemia de covid-19, fiz outra especialização na área de família", conta.

Sílvia Souza, da OAB-SP, aponta como o machismo impacta. "Por ser mulher, eu acabo experienciando aquilo que a literatura contemporânea convencionou de chamar de interseccionalidade de discriminação de raça e de gênero. Então, soma-se ao fato de eu ser negra o fato de eu ser mulher e as discriminações emergem com muito mais força. A gente conhece isso através dos dados. Os salários são menores, mais baixos. Há uma descredibilidade que é naturalizada daquilo que a gente faz e fala. Como se o nosso conhecimento não fosse fidedigno", diz.

A advogada critica a falta de negros no Judiciário brasileiro. "A ausência de pessoas negras nesse lugar transmite para nós que o sistema ainda mantém em relação ao negro a imagem de subserviencia de ausência de intelectualidade, de descrédito, e fazendo persistir essa ideia de que nós não somos intelectualmente, moralmente, capazes de ocupar esse lugar. Isso causa um impacto social muito negativo e penso que as instituições de sistema de justiça devem se implicar de forma essencial e central no processo de inclusão de pessoas negras nesses espaços", conclui a jurista.

 


  •  17/11/2023  Crédito: Carlos Vieira/CB/DA Press. Brasília, DF. Mês da consciência negra. Dra. Patrícia Guimarães, advogada.
    17/11/2023 Crédito: Carlos Vieira/CB/DA Press. Brasília, DF. Mês da consciência negra. Dra. Patrícia Guimarães, advogada. Foto: Carlos Vieira/CB/D.A.Press
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