Lisboa — Não fosse um país avesso a arroubos na política, Portugal estaria de joelhos neste momento. Na noite da última quinta-feira, António Costa deixou, efetivamente, o cargo de primeiro-ministro, depois de ter o nome envolvido em denúncias de corrupção. A demissão do socialista abriu um vácuo no poder, que só será preenchido depois de 10 de março de 2024, quando os portugueses irão novamente às urnas. Agora, quem está no centro do furacão é o presidente da República, Marcelo Rebelo de Souza, investigado por um suposto favorecimento a duas gêmeas brasileiras, Lorena e Maitê, em um tratamento que custou mais de 4 milhões de euros (R$ 22 milhões) aos cofres públicos. Rebelo de Souza está fragilizadíssimo.
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A pressão sobre o presidente português está tão forte, que, na segunda-feira passada, ele foi obrigado a convocar uma entrevista coletiva para se posicionar sobre o caso, do qual tentava manter uma distância regulamentar. Rebelo de Souza admitiu pela primeira vez, publicamente, que recebeu um e-mail do filho, Nuno, que mora no Brasil, onde é diretor de Comunicação e Marketing da EDP, pedindo ajuda para as duas meninas brasileiras, portadoras de uma doença rara, atrofia muscular espinhal (AME). A mensagem, disse o chefe de Estado, foi apagada. Mas, antes, ele a encaminhou para o chefe da Casa Civil, Fernando Frutuoso de Melo, que designou a subordinada, Maria João Ruela, para levar o assunto adiante. E comunicou ao então primeiro-ministro.
"Como é que foi? O que se passou a seguir? Por que a tramitação (do assunto) saiu? Não tenho a mínima ideia", afirmou Rebelo de Souza. "Não acompanho o que se passa a seguir, nem é possível acompanhar, nem é desejável", acrescentou. O certo é que, 10 dias depois de o e-mail do filho do presidente ter chegado à Casa Civil, o pedido para atendimento das gêmeas pousou no Ministério da Saúde e, dias depois, elas fizeram uma consulta no Hospital de Santa Maria e receberam, em tempo recorde, o medicamento zolgensma, de dose única, cada uma no valor de 2 milhões de euros (R$ 11 milhões). O fármaco é o mais caro do mundo. A aplicação do remédio contrariou parecer dos médicos do hospital, que alegaram falta de orçamento para comprá-lo e porque as meninas já faziam tratamento no Brasil. Além disso, o uso do medicamento ainda não havia sido liberado em Portugal pelo órgão regulador.
Há três frentes de investigações, todas com o objetivo de comprovar se o presidente português favoreceu ou não as gêmeas brasileiras. Um dos processos está sendo conduzido pelo Ministério Público e outro, pela Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (Igas). Há, também, uma auditoria interna em andamento no Hospital Santa Maria. O que se sabe até agora aponta para um envolvimento direto de Rebelo de Souza no caso, ainda que ele insista que jamais misturou o fato de ser chefe de Estado com questões familiares. A mensagem de Nuno Rebelo de Souza entrou na caixa postal do pai em 21 de outubro de 2019. A mãe das meninas, Daniela Martins, reconheceu, em entrevista à TVI, que tinha recorrido a um "pistolão" — cunha, em Portugal — para ver as filhas medicadas.
Cidadania expressa
As gêmeas brasileiras desembarcaram em Lisboa em dezembro de 2019, dois meses depois de o e-mail do filho do presidente ser enviado. Antes de serem atendidas no Hospital de Santa Maria, os pais de Lorena e Maitê procuram o Hospital Dona Estefânia, que negou o tratamento. "Foi aí que usamos nossos contatos. Foi aí que entrou o pistolão. Eu conhecia a nora do presidente, que conhecia a ministra da Saúde (Marta Temido)", admitiu a mãe das meninas à TVI. Todo o processo para que as crianças tomassem o remédio foi tocado, de acordo com as investigações, pelo então secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales. Hoje deputado pelo Partido Socialista, ele sustenta que só falará aos órgãos competentes.
Antes mesmo de os auxiliares do presidente da República e integrantes do governo de António Costa se movimentarem nos bastidores para liberar o tratamento de saúde às gêmeas brasileiras, um outro grupo tratou de acelerar o pedido para a concessão de cidadania portuguesa às meninas. Normalmente, esse processo leva até dois anos. No caso delas, a nacionalidade foi concedida em apenas 14 dias — começou em 2 de setembro e se encerrou em 16 de setembro de 2019. O Ministério de Negócios Estrangeiros contesta essa informação e diz que a requisição foi feita em 16 de abril daquele ano, portanto, seis meses antes da aprovação.
Além de bancar o remédio mais caro do mundo, só liberado oficialmente em Portugal em 2021, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) comprou quatro cadeiras de rodas elétricas para as gêmeas, sendo que duas delas jamais foram retiradas. Mais: nenhuma criança portuguesa, nas mesmas condições, teve acesso a esse tipo de equipamento. Por isso, a polêmica em torno do atendimento às meninas brasileiras só aumenta.
Os médicos do Hospital de Santa Maria acusam o então diretor na unidade, Luís Pinho, de passar por cima de todas as regras para atender a um pedido político. À época da aplicação do fármaco às gêmeas, os médicos escreveram uma carta a Pinho elencando uma série de razões para que o tratamento não fosse realizado. O documento sumiu e o então diretor alegava desconhecê-lo. Milagrosamente, a carta reapareceu e já está em poder dos investigadores.
As gêmeas brasileiras ficaram em Portugal até fevereiro deste ano. Mas o estrago que elas provocaram do outro lado do Atlântico está longe de ser contido. Marcelo Rebelo de Souza tem noção exata do quanto a sua imagem está arranhada e que a renúncia dele só não é cogitada devido à frágil situação política do país. Com a demissão de António Costa do cargo de primeiro-ministro, o presidente decidiu dissolver o Parlamento e convocar novas eleições.
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