Por Larissa Guimarães — Especial para o Correio — Morando na periferia de São Paulo e com uma rotina puxada, a assistente de enfermagem Lilia Guerra chegou longe: tornou-se uma escritora prestigiada, com reconhecimento na 21ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Seu livro, O céu para os bastardos, foi muito elogiado pela crítica, pois retrata o cotidiano na periferia com todas as suas dificuldades e singularidades.
Boa parte do rico universo de personagens criados por Lilia surgiu no seu caminho de casa para o trabalho, ou seja, dentro do ônibus. “Eu comecei assim. Às vezes, as pessoas falam: ‘olha lá, a escritora do ônibus’’, explicou a autora e servidora pública, de 47 anos. “Gosto muito de falar sobre o livro, sobre os personagens”, complementou.
Lilia foi a convidada especial desta quinta-feira (23/11) da Casa República.org, que participa pelo segundo ano consecutivo da Flip. Para uma plateia que lotou um dos casarões do centro histórico de Paraty, a autora contou que também aproveitava os intervalos dos plantões na unidade de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) em que trabalha para escrever.
“Tinha muitas brincadeiras sobre isso. Às vezes, eu estava no meu horário de jantar, pegava meu notebook, e algum colega falava: ‘lá vai a escritora’. Eu retrucava: ‘vou colocar você no meu livro’”, lembrou, sorridente.
Segundo ela, escrever “nos intervalos” da vida não foi uma escolha, mas uma forma que conseguiu de levar suas histórias para o público. “Queria ter uma semana, um mês para escrever. Mas eu olhava e via que não dava. Queria ter mais tempo, ter me dedicado mais”, lamentou. “Se eu ficasse esperando o dia que eu pudesse, talvez eu nunca tivesse começado”, revelou, mais adiante.
Origens
Na condução, Lilia sempre levava material para escrever, além de crochê, um livro para ler, fone de ouvido e até material de estudo, na época que iria concorrer à vaga do concurso público. “Pegava o trem, abria o livro nas costas do mais alto e falava: ‘licença, moço, vou colocar meu livro nas suas costas’. E ali eu ia fazendo as coisas, a gente se habitua a fazer, né”, explicou.
De origem humilde, a técnica de enfermagem viu várias mulheres de sua família inseridas no trabalho doméstico: mãe, avó e tia. Mesmo não tendo sido alfabetizada, a avó de Lilia foi uma referência importante para o seu despertar para o mundo das letras. “Ela botava os discos de Clara Nunes em casa, ficávamos ouvindo aquelas palavras bonitas”, lembrou a escritora.
Na infância, leu muitos clássicos, como a A bolsa Amarela, de Lygia Bojunga, na biblioteca da escola pública. “A minha ‘tia’ lá da biblioteca não ficava falando para mim: lê isso, lê aquilo. Ela falava: ô, menina, pode ler tudo que estiver aqui, leia o que quiser.”
Como servidora pública, Lilia contou à plateia, na Flip, que o funcionalismo a ajudou durante a sua trajetória. “Acho que o serviço público funciona. Defendo o SUS com todo o meu coração, e sou SUS-dependente também. Nós todos somos educadores em saúde”, concluiu.
Além de O céu para os bastardos (editora Todavia), Lilia Guerra escreveu o livro de crônicas Perifobia e os romances Rua do Larguinho e Amor Avenida, todos publicados pela editora Patuá.
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