A onda de calor que atinge as regiões Sudeste e Centro-Oeste — a segunda em menos de dois meses — e a seca histórica na Região Norte são resultado de dois fatores comuns: o fenômeno El Niño, que surge quando há o aquecimento das águas do Oceano Pacífico, que mexe com o clima de todo o planeta, e o aquecimento global, decorrente da emissão de gases do efeito estufa.
O resultado são eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes e fatais, como as enchentes no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, com mais de 50 mortos, e a severa estiagem na Floresta Amazônica, com graves danos à saúde dos moradores e à biodiversidade.
E há mais consequências: a previsão dos meteorologistas é de seca severa na Região Nordeste a partir de janeiro do ano que vem, que se estenderá até maio, quando o El Niño deve acabar.
Para um dos cientistas mais respeitados em todo o mundo, o climatologista Carlos Nobre — que integrou o grupo de pesquisadores vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 2007 com o quarto relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC) —, não há mais tempo a perder. O clima está mudando e é preciso aumentar a resiliência das pessoas para que possam suportar essas alterações.
"Temos que ter atitudes de adaptação a esses extremos climáticos", alerta o cientista, em entrevista ao Correio. "Um adulto que nasceu em 1960 e vive 80 anos vai enfrentar cinco ou seis ondas de calor ao longo da vida inteira. Já um bebê que nasceu em 2020 vai conviver com mais de 30. É só um exemplo de como as novas gerações vão ter que enfrentar eventos climáticos extremos muito mais freqüentes", diz o cientista.
Para Nobre, o Brasil está atrasado na implementação de políticas para mitigar os efeitos do aquecimento global, que colocou o planeta em estado de emergência climática. O preço a pagar se medidas adequadas não forem tomadas é alto. A Floresta Amazônica, por exemplo, caminharia para se tornar uma enorme savana, que cobriria mais de 50% da atual área de mata. Ele recomenda que o país avance na implementação do mercado de créditos de carbono para que possa financiar a transição energética.
Vivemos a segunda onda de calor com recorde de temperatura em menos de dois meses. Consideramos isso um evento extremo do aquecimento global ou é um efeito do El Niño, um fenômeno recorrente, conhecido e bastante estudado?
Climaticamente falando, é um efeito do El Niño. Esses eventos naturais, ondas de calor, sempre existiram, o El Niño sempre existiu, mas, agora, o aquecimento global faz com que fenômenos climáticos, como ondas de calor, chuvas, secas, surjam de forma cada vez mais frequente. Essa onda de calor está batendo recordes de temperatura em várias partes do Centro-Oeste e do Sudeste. Lógico que um pouco dessa onda de calor tem a ver com o El Niño forte, que segura as frentes frias do sul do Brasil. Mas o aquecimento global é o responsável por esses fenômenos estarem ficando cada vez mais extremos e frequentes.
Nós passamos muitos anos discutindo até mesmo se o aquecimento global era um fenômeno real ou imaginário. Isso já está superado?
Totalmente superado. Desde o quarto relatório do IPCC, de 2007, que ganhou o prêmio Nobel — e eu sou um dos autores —, não há nenhuma dúvida de que o aumento desses fenômenos extremos é devido a uma grande quantidade de gases de efeito estufa jogada na atmosfera. Isso tudo é uma resposta às nossas ações antrópicas. Por exemplo, já há dados mostrando que este ano é o mais quente do registro histórico. Essa temperatura de 2023 só foi atingida 125 mil anos atrás, quando nós tínhamos o último período interglacial.
Como o senhor vê a ação do poder público diante dos alertas que os cientistas e a academia vêm fazendo?
Em termos de implementação de políticas de adaptação de toda a sociedade aos eventos extremos, nós estamos muito atrasados, globalmente falando. Muitas pessoas pensam que são as chuvas severas, com inundações e deslizamentos, que levam ao maior número de mortes. Chuvas muito intensas como em São Sebastião matam 50, 60 pessoas. No ano passado, em Petrópolis, mataram 240. Mas o maior impacto na saúde humana é a onda de calor. Ondas de calor estão matando milhões e milhões de pessoas por ano. Na Europa, no verão de 2022, mataram 61 mil pessoas, a maioria idosos, principalmente mulheres acima de 80 anos. O impacto é enorme também em bebês. Essas ondas de calor têm um enorme impacto na saúde humana.
E os sistemas públicos de saúde, como o SUS?
O sistema de saúde global — e, em particular, o brasileiro — está preparado? As pessoas estão preparadas para aumentar a sua resiliência a essas ondas de calor? As pessoas se protegem? Bebem muita água? Os mais pobres têm ar-condicionado para não ter o risco de doença e de morte? Nós temos que acelerar muito as adaptações. Mesmo que a gente atinja os objetivos do Acordo de Paris, que é não deixar que a temperatura suba acima de 1,5ºC, o que parece muito difícil, esses fenômenos extremos estariam ainda mais frequentes do que hoje. Os pobres precisam de ter ajuda para ter ar-condicionado, subsídio para pagar energia, temos que ter espaços amplos para as pessoas idosas se protegerem nos extremos de calor. O sistema educacional tem que fazer com que as pessoas aprendam a se proteger. Esse problema é global, mas, no Brasil, estamos muito atrasados.
E nem falamos de quem mora em áreas de risco, locais insalubres…
Nós temos mais de 2 milhões de brasileiros vivendo em áreas de risco de deslizamentos e inundações. Ali, não tem jeito de construir residências sustentáveis, nada, as pessoas precisam sair. Nós estamos criando políticas para essas pessoas, em que 95% delas são muito pobres? São pouquíssimas as políticas para tirar esses moradores de áreas de risco. Estamos atrasados na implementação dessas políticas de adaptação.
O senhor fala muito sobre resiliência, porque parece não ser possível reverter o processo de mudanças climáticas. As pessoas têm que se adaptar a um mundo diferente?
Exatamente. Para reverter esse aquecimento seria preciso fazer a concentração de gás carbônico cair para um nível muito mais baixo do que hoje. Mesmo que nós conseguíssemos ficar com esse equilíbrio de 1,5ºC mais quente, para fazer a temperatura voltar 1ºC, 0,5ºC, levaria alguns séculos. Então, serão muitas gerações que irão viver com esse clima muito mais extremo. Portanto, teremos 10 ou 20 gerações que, de fato, precisam ser muito habilitadas para a adaptação.
Estamos falando do mundo que vamos deixar para nossos filhos, netos e bisnetos, não é?
Isso. Um adulto que nasceu em 1960 e vive 80 anos vai enfrentar cinco ou seis ondas de calor ao longo da vida inteira. Já um bebê que nasceu em 2020 vai conviver com mais de 30. É só um exemplo de como as novas gerações vão ter que enfrentar eventos climáticos extremos muito mais frequentes.
Tivemos mais de 10 ciclones extratropicais e chuvas intensas na Região Sul. Na Região Norte, a seca ganhou contornos extremos. As novas combinações dos eventos extremos também serão mais frequentes?
Essas chuvas muito intensas no Sul são um fator muito importante para a seca na Amazônia. O El Niño é um fenômeno natural que ocorre há milhões de anos no Oceano Pacífico equatorial. A água do oceano mais quente vai fazendo com que os El Niños sejam mais fortes, como o de 2015/2016, que também foi recorde. O deste ano também é forte, está induzindo as frentes frias a ficarem estacionadas no Sul, gerando os ciclones extratropicais que estão ficando mais fortes também, porque o Oceano Atlântico, na costa brasileira, está mais quente. Quando o oceano está mais quente, evapora muito mais água. Essa água é o combustível para baixar a pressão e, aí, os ciclones ficam mais fortes, tanto por conta da força do El Niño como das águas mais quentes do Atlântico.
O El Niño deve ir até o fim do primeiro semestre do ano que vem. O que esperar até lá?
E o El Niño sempre induziu secas na Amazônia, como a atual. Quando o oceano Atlântico está muito quente, também induz secas na Amazônia. No Semiárido do Nordeste, a estação chuvosa de fevereiro, março, abril e maio de 2024 já está prevista como uma estação de seca preocupante.
Um ciclone extratropical pode virar furacão? Já tivemos algum exemplo disso?
Em março de 2004, foi a primeira vez que houve registro de um ciclone que virou furacão no Atlântico Sul. Os ventos passaram de 150km/h na costa de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Foi batizado de Furacão Catarina. Depois, em 2019, teve um no meio do Atlântico na direção do Espírito Santo. Esses são os únicos dois registros de furacões no Atlântico Sul.
Seguindo essa tendência, vamos ter furacões, como no Caribe?
Quando a temperatura do oceano fica mais quente, o risco aumenta. Mas, para ter furacão, o processo é mais complexo. A temperatura do oceano tem que estar acima de 26ºC e o vento não pode ser muito forte na alta troposfera (até 12km de altitude). Quando o oceano começa a ficar muito quente, aumenta a chance de ter furacão, mas não estamos dizendo que o Atlântico Sul vai ficar igual ao Caribe, que gera vários furacões a cada verão.
O Ministério da Agricultura publicou no Diário Oficial o Plano Floresta Sustentável, que reúne as diretrizes para a recuperação e uso sustentável das matas do país. Qual a importância da restauração florestal e de projetos de conservação para o combate às mudanças climáticas?
É muito importante. Inclusive, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) vai lançar na COP28, em Dubai, em 2 de dezembro, o projeto Arco da Restauração Florestal da Amazônia, um grande projeto de restauração para todo o sul da Amazônia, cujo desmatamento está muito perto de um ponto de não retorno. É importante buscar a recuperação de todos os biomas, não só a Amazônia. O governo tem que ter políticas para apoiar os milhões de agricultores brasileiros e, principalmente, os pecuaristas, para que façam a transição ao que se chama agricultura regenerativa, pecuária regenerativa. Agora, começa a se expandir o mercado de carbono. Essa regeneração florestal absorve muito gás carbônico da atmosfera e isso tem um valor econômico muito grande.
A ciência desenha um cenário preocupante: nesse ritmo de destruição, a Floresta Amazônica ficaria circunscrita ao pé da Cordilheira dos Andes, enquanto a metade leste, até o litoral, se transformaria numa grande savana. É assustador…
Esse é o cenário do ponto de não retorno para a Amazônia. Desde o Atlântico até a Bolívia, no centro-sul do Pará, norte do Mato Grosso, sul do Amazonas, Rondônia, Acre e Amazônia Boliviana, toda essa região, 2,3 milhões de km2, é o lugar que está em risco hoje. Mas, se passar do ponto de não retorno, mais de 50% da floresta vai se degradar para esse sistema que a gente chama savânico. Não ficará exatamente como o Cerrado. A savana se parece com o Cerrado, mas absorve e armazena muito pouco carbono e perde a imensa biodiversidade. O risco é enorme. Estamos à beira desse ponto de não retorno se não zerarmos o desmatamento e a degradação.
Quais são os desafios do governo Lula para lidar com as mudanças climáticas?
Um governo (federal) e vários governos estaduais são pró-ciência e estão muito preocupados com os extremos climáticos e sabem que precisam tomar medidas nos dois sentidos. É preciso reduzir as emissões e zerar o desmatamento, passar para uma agricultura regenerativa que baixa muito as emissões, fazer uma rápida transição energética para energias renováveis. Ao mesmo tempo, temos um enorme desafio, que é aumentar a adaptação de toda a população brasileira. Mais de dois milhões de brasileiros vivem em áreas de risco de deslizamentos e inundações. Tem que ter uma nova infraestrutura de habitação para milhões de brasileiros.
Como cientista, qual o recado que o senhor dá ao poder público e às pessoas neste momento de preocupação com o clima?
As populações não podem só esperar medidas de governos ou do setor privado, têm que se autoeducar para se tornarem muito mais resilientes a todos esses extremos climáticos. Por exemplo, em ondas de calor, é preciso ingerir uma quantidade enorme de água, não ficar exposto ao sol, é preciso se proteger. Pessoas que vivem em áreas de risco precisam cobrar dos governos soluções de infraestrutura sustentável. A ciência tem dito, os médicos têm dado nos jornais inúmeros conselhos de como se proteger nessas ondas de calor. Temos que ter atitudes de adaptação a esses extremos climáticos.
E para os políticos, qual é o recado?
Não dá mais para aceitar políticos negacionistas. Tivemos quatro anos no Brasil de um governo federal negacionista e um monte de políticos no Congresso, principalmente da bancada ruralista, que eram negacionistas. Em todo o mundo, o maior percentual de negacionistas está no agronegócio, seja nos Estados Unidos, no Brasil, seja na Alemanha, ou na Austrália. Temos que acabar com o negacionismo, que não é desprezível entre os políticos brasileiros.
*Estagiária sob a supervisão de Vinicius Doria
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