Quando criança, José Maurício Moreira morava em uma rua próxima ao hospital Santo Antônio, na Cidade Baixa de Salvador. O hospital era um antigo galinheiro onde a irmã Dulce começou a erguer aquele que hoje é o maior hospital SUS do Brasil. Nas décadas de 1970 e 1980, quando via a já idosa freirinha passar em frente à sua casa trazendo os doentes que recolhia na rua, o garoto oferecia água para ela beber.
Perto dali, o pai de Maurício trabalhava como gerente em uma loja de material de construção, visitada com frequência pela freira, em busca de doações para as obras do hospital. "Bom dia, 'seu' Ernesto. Tem uma coisinha para mim hoje?", perguntava a irmã, que nunca saia de mãos vazias. Antes de fechar a porta, ela se despedia: "Deus abençoe o senhor e sua família", dizia, como costumava fazer com todos aqueles que colaboravam com a realização de sua obra.
"Meu pai nunca imaginou que aquela bênção viria muitos anos depois, em forma de milagre", revelou José Maurício, neste domingo (8/10), em encontro com crianças que se preparam para a primeira comunhão na capela dos Jesuítas, no Centro Cultural de Brasília (CCB). Com olhos fixos no palestrante, quase todos marejados, crianças e adultos ouviram a história de como aquele garoto cresceu e foi acometido por um glaucoma que o deixou cego por 14 anos. "Fiquei cego na virada do milênio, no réveillon de 1999. A notícia que recebi dos médicos foi a de que nunca mais voltaria a enxergar. Foi um pesadelo para a família inteira. Por muitos anos sofri, ouvindo o choro dos meus pais escondidos no banheiro ou no quarto. A minha decisão foi não me deixar abater. Ser forte, para fortalecê-los também."
Assim, conformado com a sua nova condição, ele resolveu abandonar o emprego no setor de informática do Correios, que exigia a utilização da visão. Apostou na música, uma antiga paixão. Formou-se em música pela Universidade Federal da Bahia e tornou-se "o maestro cego de Salvador". Ganhou a vida fazendo o que gosta, montando corais em diversos tipos de instituições e empresas.
Novos rumos
"Em dezembro de 2014, com várias apresentações de Natal marcadas, contrai uma conjuntivite muito violenta, que provocava uma dor intensa e não me deixava fazer nada. Fiquei sem dormir por três dias seguidos", narra. Numa madrugada de dezembro, por volta das 4h, o maestro tateou, na mesinha de cabeceira, a imagem da irmã Dulce, que àquela altura já havia morrido e estava beatificada por um primeiro milagre. A imagem pertenceu à mãe. Sentindo fortes dores, ele levou a imagem aos olhos e sussurrou algumas palavras, implorando para que aquelas fortes dores cessassem e ele pudesse dormir e descansar um pouco. "Eu só queria parar de sentir dor e dormir", recorda.
Assim que depositou a imagem de volta na mesinha, José Maurício deu um longo bocejo e dormiu profundamente. "No dia seguinte, a nuvem branca que cobria minha visão começou a dissipar. Quando coloquei uma compressa de gelo nos meus olhos, ainda na cama, eu enxerguei a minha mão. Depois, consegui enxergar o teclado do telefone e liguei para minha mulher, que já tinha saído, contando o ocorrido. Corremos ao meu oftalmologista e nenhum de nós conseguia entender o que aconteceu."
Somente no fim do dia, José Maurício se lembrou da conversa que teve de madrugada com a freira. Alguém contou para o casal que no site das Obras Sociais da Irmã Dulce havia espaço para relatos sobre possíveis milagres envolvendo a religiosa.
A partir daí, seguiu-se um longo e sigiloso processo, envolvendo laudos científicos e cruzamentos de informações para se confirmar se de fato houve o milagre. "Um laudo elaborado por sete médicos, inclusive um ateu, comprovou que fisiologicamente eu sou cego. Não tenho o nervo ótico, mas enxergo". O resultado dizia que aquela série de exames apresentados tratava de alguém que não pode enxergar.
Em maio de 2019, o papa Francisco anunciou que o Vaticano reconhecia o fato como milagre. A freirinha que por décadas corria as ruas pobres da cidade de Salvador para abrigar pessoas entrou para os cânones da igreja como santa em 13 de outubro de 2019.
Como é a canonização
As Obras Sociais de Irmã Dulce (Osid) registram em seu acervo mais de 10 mil milagres atribuídos à santa. Dois deles foram usados no processo de canonização. Antes do milagre de José Maurício, que possibilitou a santificação, houve o de Claudia Cristina dos Santos, salva de uma forte hemorragia quando o padre chamado para administrar a Unção dos Enfermos colocou no soro um santinho da freira.
"O processo de canonização não é algo simples. Exige muitos documentos, muitas informações. Pode levar anos e até séculos, como ocorreu com José Anchieta", conta o padre Nilson Marostica, que foi o postulador no processo de canonização do santo espanhol que viveu no Brasil no século XVI e só teve a sua causa reconhecida em 2014. O papel do postulador é, por parte do Vaticano, recolher todas as informações relacionadas à pessoa em vida e após a morte e preparar uma espécie de dossiê. Quando surge o milagre, todos esses documentos são submetidos à Comissão de Inquérito de Canonização, que faz uma “investigação muito profunda”, exigindo inúmeras comprovações. E ela contrata um grupo de especialistas na área relacionada ao milagre para averiguar a veracidade e a cientificidade do assunto. “Essa junta precisa preparar um laudo com a verdade nua e crua relacionada ao caso. Não pode haver nenhum indicativo que algo está sendo feito para favorecer a causa”, detalha. Para que o fenômeno seja considerado milagre, exige-se que o fato tenha sido inexplicado, instantâneo e permanente.
O termo canonização indica que a pessoa investigada entrou para o cânon, ou seja, a lista oficial de santos da Igreja Católica. “Isso nada mais é o reconhecimento de que ela estava, de fato, totalmente a serviço de Jesus Cristo enquanto viveu”, afirma o padre, observando, no entanto, que a pessoa pode ter cometido pecados.
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