Era uma quinta-feira comum quando um homem revoltado com o governo resolveu sequestrar um avião com a intenção de matar o presidente da República. O caso, que poderia ter sido um 11 de setembro no Brasil, aconteceu em 29 de setembro de 1988, há exatos 35 anos. O episódio, no entanto, terminou sem o sequestrador alcançar seu objetivo graças à ação corajosa e inteligente de um comandante. Este ano, o feito heroico do piloto irá virar filme, com estreia marcada para dezembro.
Naquela quinta-feira, Fernando Murilo de Lima e Silva, comandante do voo Vasp 375, tinha mais um dia normal de trabalho a bordo de um Boeing 737-317. No entanto, o maranhense Raimundo Nonato Alves, então com 28 anos, resolveu sequestrar o avião no Aeroporto de Confins, em Minas Gerais, quando ele seguia a rota para o Rio de Janeiro. A intenção dele era derrubar o avião no Palácio do Planalto e matar o então presidente José Sarney. Raimundo estava desempregado e acreditava que a culpa era do chefe do Executivo.
Armado com um revólver calibre 32, Raimundo anunciou o sequestro do avião que tinha 110 pessoas a bordo. Para entrar na cabine de comando, o sequestrador baleou um comissário de bordo. Naquela época, o cockpit não era blindado, como é hoje. Mas, o piloto Fernando Murilo de Lima e Silva conseguiu acionar o no painel o código de “sequestro” e avisar a ao Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (Cindacta) que tinha algo errado com o voo.
No entanto, quando o copiloto Salvador Evangelista tentou se comunicar com o Cindacta pelo rádio, ele acabou baleado na nuca por Raimundo e não resistiu ao ferimento. Sob ameaças, o piloto mudou a rota do voo para Brasília. Enquanto isso, o presidente José Sarney já tinha sido avisado do sequestro e cancelado toda a agenda do dia. A mídia também já acompanhava de perto o desenrolar da ação.
A Força Aérea Brasileira (FAB) também imediatamente mandou aeronaves para acompanhar o voo. Com isso, Murilo conseguiu convencer Raimundo a mudar a rota, já que eles poderiam ser abatidos. Foi então que Raimundo decidiu que o avião deveria seguir para Goiânia. O piloto, no entanto, alertava que a aeronave não tinha combustível suficiente, mas tentou mesmo assim. Chegando à capital de Goiás, Raimundo mudou de ideia mais uma vez e decidiu que o voo deveria seguir para São Paulo. Fernando sabia que não teria condições de dar mais essa volta. Foi então que ele tomou uma decisão corajosa e que salvou todos a bordo.
Momentos decisivos
O piloto fez um tonneau (giro completo sobre o eixo da aeronave) e um parafuso (trajetória vertical descendente e em espiral) com avião. As manobras são típicas de caça e nunca tinham sido feitas em um Boeing. Até hoje, esses são os únicos registros das manobras feitas no modelo. As manobras ousadas desequilibraram o sequestrador. Como o avião já estava em baixa altitude e próximo ao aeroporto, o piloto conseguiu fazer o pouso. “Fiz as manobras porque o combustível do avião já havia acabado e o motor esquerdo parou primeiro. Resolvi brigar antes de morrer. As únicas chances que tinha seriam com manobras com o avião, pois eu estava amarrado no assento da cabine”, contou o piloto em entrevista ao portal Terra em 2011.
De acordo com Joana Henning, CEO do Estúdio Escarlate e produtora do filme sobre o caso, a Boeing nunca reconheceu a manobra do Tonneau seguida de Parafuso nesta aeronave. “Não porque não tenha acontecido, temos relatos de passageiros e do próprio piloto do caça sobre a veracidade dessa execução, mas pelo fato de que tecnicamente essas manobras seriam praticamente impossíveis em uma aeronave desse porte”, explica.
Além disso, o pesquisador do filme, Constâncio Viana Coutinho, ressalta a importância da tranquilidade que o piloto teve em lidar com a situação. “Fora isso, devemos lembrar de sua incrível capacidade de manter a calma, apesar de tudo, principalmente após ver seu amigo levar um tiro na nuca e morrer instantaneamente”, afirma.
Sequestro chega ao fim
Após mais de três horas de sequestro, Raimundo desceu usando o piloto como escudo, mas acabou sendo alvejado por dois tiros. Ele foi internado, passou por cirurgia e estava sem risco de morte. No entanto, dias depois ele morreu de anemia falciforme. O piloto Fernando morreu em 2020. Em 2001, ele foi condecorado com as medalhas Mérito Santos-Dumont e da Ordem do Mérito Aeronáutico.
Ele, no entanto, disse em entrevista em 2011 que nunca tinha recebido um agradecimento de José Sarney. "O ex-presidente Sarney, sem comentários, nunca me dirigiu a palavra", afirmou o piloto ao portal Terra.
Quase um 11 de setembro
De acordo com Constâncio, quase nada mudou na aviação brasileira após o acidente e nem na mundial. “Infelizmente, apesar de tudo que aconteceu, quase nada mudou. Os aeroportos continuaram com as mesmas falhas apresentadas e por sorte, esse tipo de crime não voltou a acontecer”, diz. Quase exatos 13 anos depois, um sequestro de aeronaves iria mudar drasticamente a aviação mundial. O atentado de 11 de setembro de 2001 terminou com mais de 2900 pessoas mortas.
Segundo Constâncio, se a aviação tivesse dado atenção ao que aconteceu no Brasil, muito provavelmente o atentado poderia ter sido evitado. “Só depois dos atentados às torres gêmeas, é que a segurança de aeroportos e aeronaves passou a ser o que é hoje, com pórticos de detecção de metais, esteiras com raio-X em todos os aeroportos, portas blindadas das cabines de avião e até mesmo, cofres para transporte de armas que são utilizadas por passageiros, muitas vezes policiais, que possuem porte de arma e que não podem mais viajar armados”, explica.
História vai virar filme
A história é tão surpreendente que virou enredo de filme. O longa tem data de lançamento para 7 de dezembro. Dirigido por Marcus Baldini, O Sequestro do Voo 375 tem Danilo Grangheia e Jorge Paz nos papéis principais do comandante Murilo e Raimundo Nonato.
Para Joana Henning, produtora do filme, foram muitas as falhas de segurança que permitiram que o caso acontecesse. “Nem todos os aeroportos da época possuíam raio-x para embarque, esse para mim é a principal falha. Raimundo Nonato estudou, da sua forma precária e amadora, os aeroportos para o sequestro. Foram encontradas na mochila dele e na pensão que ele estava hospedado outras passagens de voos que serviram de “ensaios” para o crime. A possibilidade de entrar em um avião armado com 1000 munições em uma mochila, sem dúvida facilitou muito o ato dele, visto que pelo seu histórico ele não possuía nenhuma experiência em sequestros ou atos terroristas. Outras falhas podem ser apontadas, como o fato de as portas dos cockpits da época não serem blindadas”, diz.
A ideia do longa surgiu após Constâncio Viana, que coproduz o filme, passar por por uma experiência de quase acidente aéreo. "Eu estava em um voo que saía de Tete (região norte) em direção a Maputo, capital de Moçambique situada ao sul. O voo que deveria durar uma hora e trinta minutos, pareceu durar mais de quatro horas. Primeiro um raio e em seguida ouvi uma explosão. O bico do avião apontou para baixo e o desespero foi geral. Quinze segundos alucinantes de muita gritaria. Todos naquele avião acharam de fato que ele cairia", relembra.
Com isso, ele resolveu pesquisar mais sobre o assunto. Joana explica que apesar de ser uma ficção, o longo se mantém bastante fiel a história real. “O filme, por se tratar de uma ficção, possui adaptações dramaturgias para que as curvas de ação e emoção prendam o espectador na sua experiência. Mas posso dizer que fomos muito fiéis à história real, até os passageiros são fiéis aos da época. Pesquisamos com minúcia os aspectos psicológicos de cada pessoa envolvida no caso, desde os principais, piloto e sequestrador (através de fatos narrados), passando pela tripulação, passageiros e toda parte institucional do caso. Obviamente que se buscarem dissonâncias com a realidade , vão encontrar, até porque esse é o papel da ficção. Acredito que conseguiremos a partir de uma potente história real, entregar uma potente obra de dramaturgia do gênero de thriller de ação”, destaca.
De acordo com Constâncio foram pelo menos 11 anos de pesquisa para o filme e o processo ainda continua. “Algumas pessoas que encontrei ao longo desses anos, ainda sentem arrepios ao relatar os fatos. Alguns passageiros deste voo não viajam mais de avião. Outros ainda precisam de muita coragem para enfrentar essas máquinas”, relata.
Veja o trailer
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