A cena é desoladora. Onde havia vegetação de Cerrado nativo — com históricos pequizeiros, cagaiteiras e outras espécies — agora, máquinas avançam deixando a terra nua em poucas horas, desconstruindo eras de serviços ambientais. Desmatamento seguido por queimadas, que reduzem a cinzas troncos seculares. Em São João d'Aliança, município goiano conhecido como Portal da Chapada dos Veadeiros, essa devastação em uma área de cerca de 500 hectares deixou uma comunidade rural apreensiva. Moradores do Condomínio Habitat, que conta com 168 unidades basicamente dedicadas a atividades de agroecologia e agricultura familiar, temem que a ação na fazenda vizinha possa prejudicar as fontes de água que os abastecem. Denúncias foram encaminhadas para o órgão estadual de fiscalização ambiental e também ao Ministério Público, que instaurou Notícia de Fato Criminal para apurar o caso.
"Nossa comunidade existe há mais de 20 anos. Nesse tempo, temos investido em projetos sustentáveis, com bioconstruções, cultivos orgânicos, plantio de árvores nativas e frutíferas exóticas, valorização do ecoturismo e manutenção de uma reserva de quase 200 hectares de Cerrado nativo. Não existe nenhum Estudo de Impacto Ambiental sobre o empreendimento que está sendo implantado na fazenda vizinha. Essa atividade tem potencial de prejudicar os recursos hídricos que nos abastecem, com contaminação da água por agrotóxicos ou mesmo a redução da disponibilidade, devido à irrigação extensiva da futura lavoura", argumenta a associação de moradores.
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Outra queixa da comunidade diz respeito à perda do acesso ao complexo de cachoeiras conhecido como Vale do São Pedro, historicamente visitado por turistas e pela população local. Com a nova atividade na fazenda, o banho de rio na área fica inviabilizado. "Tentamos contato com o proprietário, dono de uma conhecida empresa de café. Ele comprou a terra há cerca de um ano. Queríamos apresentar uma proposta de preservação de um corredor ecológico até as cachoeiras, um modelo de negócio que poderia ser aproveitado pela fazenda. Chegamos a marcar uma reunião, em julho de 2022, mas o fazendeiro recuou de última hora e não mais retornou os contatos. Há duas semanas, fomos surpreendidos com o início do desmatamento", explica um morador.
O conflito de interesses caminha para um litígio. Enquanto as máquinas avançam no desmatamento na fazenda, a comunidade rural vizinha aguarda posicionamento dos órgãos oficiais sobre a legalidade da atividade. A Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), órgão estadual goiano responsável pelo licenciamento, emite a autorização para a retirada da vegetação nativa, mas não exige Estudo de Impacto Ambiental para áreas de até 500 hectares. A fiscalização foi acionada pela associação de moradores do Condomínio Habitat. Quase duas semanas depois, no entanto, não houve nenhum retorno conclusivo. "A superintendência de fiscalização está monitorando a situação, mas provavelmente em razão de nuvens, o satélite ainda não forneceu imagens conclusivas a respeito dessa ocorrência. De qualquer maneira, tem uma equipe de monitoramento trabalhando nesse alerta", respondeu a assessoria de imprensa do órgão, após questionamento da reportagem.
A Promotoria de Justiça de Alto Paraíso, braço do Ministério Público de Goiás que atua na região, também foi acionada pela denúncia. O órgão instaurou uma Notícia de Fato Criminal para apurar o caso e, na quarta-feira (30/8), fez diligência presencial no local dos fatos para visualizar a situação. Uma manifestação do promotor responsável é esperada para os próximos dias. Se alguma suspeita de irregularidade se confirmar, um pedido para suspensão da licença de desmatamento será protocolado.
"É uma pena que a situação tenha chegado a este ponto. Se houvesse respeito a um fórum adequado para tratar de questões dessa natureza, como audiências públicas ou consultas às comunidades afetadas, evitaríamos danos ao patrimônio socioambiental e preservaríamos esforços de recuperação. Prejudicar fontes de água, com contaminação química ou esgotamento de disponibilidade, não é justo nem inteligente. Os benefícios de planejar e executar o uso sustentável são sempre infinitamente maiores", comenta um denunciante.
Fiscalização e leis frágeis
Considerado o "berço das águas", pois abriga as nascentes de oito das 12 principais bacias hidrográficas do país, o Cerrado sofre, ano após ano, significativa perda de cobertura vegetal nativa, especialmente para a expansão do tradicional agronegócio, baseado em monoculturas de soja e milho, por exemplo, além de pastagens para o gado. Os dados mais recentes do Sistema Deter, divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), informam que o bioma bateu recorde negativo no período compreendido entre agosto do ano passado e julho de 2023. A devastação alcançou 6.359 km², a maior área desde o biênio 2016-2017, o mais antigo da série histórica. Em relação ao período anterior (2021-2022), a alta foi de 16,5%.
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Especificamente em Goiás, a situação coloca ambientalistas em alerta. Em junho passado, o governador Ronaldo Caiado (UB), que exerce o segundo mandato consecutivo, sancionou a Lei estadual nº 22.017/2023, que alterou trechos de quatro normas anteriores relacionadas à política ambiental. Aprovada após um mês desde a apresentação, a proposta teve tramitação relâmpago na Assembleia Legislativa de Goiás (Alego), amplamente alinhada ao Palácio das Esmeraldas.
"Por meio do partido Rede Sustentabilidade, foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra essa nova legislação, que flexibiliza o desmatamento no Cerrado goiano. Temos feito os alertas e o debate, pois a perda de biodiversidade é crescente em todos os anos. A Chapada dos Veadeiros é uma rara área remanescente e carece de atenção. Precisamos incentivar modelos de negócios sustentáveis e avançar em políticas públicas de compensação financeira para regiões preservadas, mas falta fiscalização. São oito fiscais para todo o Estado. Mais de 80% do desmatamento é irregular. As comunidades tradicionais são especialmente prejudicadas nesse processo, pois dependem diretamente do ambiente natural para o sustento", critica o deputado estadual Antônio Gomide (PT), uma das poucas vozes ativas na Alego sobre a defesa ambiental. Atualmente, dos 41 parlamentares, apenas seis fazem oposição ao governo.
Números da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Goiás (Semad/GO) rebatem as críticas. Em nota, o órgão afirma que fiscalizou 46% da área com alerta de desmatamento no primeiro semestre deste ano — a meta seria atuar em 80% dos casos. "O Deter, sistema desenvolvido pelo Inpe para dar suporte à fiscalização, mostra sensível queda nos alertas de desmatamento emitidos para Goiás nos últimos seis anos. Foram mais de 58 mil alertas em 2018. Esse número foi caindo em 2019 (52 mil), em 2020 (33 mil), em 2021 (32 mil) e em 2022 (25 mil). Em paralelo, a quantidade de autos de infração emitidos pela Semad por desmatamento aumentou. Partiu de 6,2 mil hectares fiscalizados em 2018 para alcançar 16 mil hectares em 2019 — primeiro ano do atual governo; 18 mil hectares em 2020; 32 mil hectares em 2021; e 64 mil hectares em 2022. Até maio deste ano, as autuações passavam de 18 mil hectares", argumenta a pasta.
Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), divulgado pelo Mapbioamas, Goiás ocupa a quinta posição no ranking de maiores desmatadores do Cerrado, atrás de Maranhão, Tocantins, Bahia e Piauí. De acordo com o levantamento, no primeiro semestre de 2023, o estado vizinho ao Distrito Federal teve 36,8 mil hectares de área degradada, o equivalente a 34 mil campos de futebol. Niquelândia (2,5 mil hectares) e São João d'Aliança (1,6 mil hectares) são os municípios mais afetados. A organização ambientalista WWF estima que, no total histórico, o bioma perdeu cerca de 50% da cobertura original.
No emaranhado de estatísticas e narrativas, quem viaja pelas estradas que cortam o bioma percebe a transformação na paisagem e o impacto nas vidas das populações locais. O governo federal promete entrar na questão de forma mais pró-ativa a partir do lançamento para consulta pública do Plano de Preservação do Cerrado (PPCerrado), agendado para o próximo 13 de setembro. "O PPCerrado, como os demais planos de controle do desmatamento, é organizado em quatro eixos: 1º produção sustentável; 2º monitoramento e controle; 3º ordenamento territorial; e 4º normas e instrumentos econômicos. É importante ir além da questão do comando e controle, ainda mais urgente no caso do Cerrado, visto que as Áreas de Preservação Permanente (APP) e a reserva legal são somente de 20% a 35% do imóvel, enquanto na Amazônia são 80%. Então, naturalmente, é mais fácil conseguir autorização de desmatamento legal de áreas maiores, o que limita o alcance dos instrumentos de comando e controle", explica Raoni Rajão, diretor do Departamento de Políticas de Controle do Desmatamento e Queimadas do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
Ainda sem data definida para apresentação de texto final, a proposta será elaborada de forma colegiada, respeitando a participação dos diversos entes interessados. "O plano é construído no âmbito do comitê interministerial, que envolve 17 ministérios, além dos convidados, com a coordenação política da Casa Civil e a coordenação executiva do Ministério do Meio Ambiente. Trabalhamos no processo de intenso diálogo com a sociedade civil, com destaque, por exemplo, para a Rede Cerrado, que inclusive nos entregou uma proposta que está sendo levada em consideração, além de diálogos com os Estados, mediados pela Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente (Abema), que também trouxe uma proposta relevante. Mas também diálogos bilaterais e multilaterais com as diversas secretarias de meio ambiente dos Estados, com foco no chamado Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), que concentra o maior volume de vegetação nativa do bioma, mas também as maiores taxas de desmatamento", completa Rajão.
ENTREVISTA: Guilherme Eidt, coordenador jurídico do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN)
O estado de Goiás concede licença de desmatamento para até 500 hectares sem exigência de Estudo de Impacto Ambiental. Isso é adequado?
Essa dispensa de licenciamento para supressão de vegetação nativa de até 500 hectares é ruim, mas não sei se tem solução, porque vai da disposição política da Secretaria Estadual de Meio Ambiente em facilitar o processo. Poderia ser 1.000 hectares ou 200 hectares. Ecologicamente, não faz sentido autorizar desmatamento algum nas áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade, recarga de aquíferos e mananciais de água destinados ao abastecimento público, Áreas de Preservação Permanente (APP), por exemplo. O fracionamento dos pedidos de autorização para suprimir vegetação tem servido para mascarar e eximir a observância desses critérios socioambientais na hora de autorizar desmatamentos sucessivos com alto impacto cumulativo nas paisagens e bacias hidrográficas. As populações tradicionais convivem com o Cerrado há anos, manejando e conservando por meio do uso sustentável. São esses grandes desmatamentos que impactam os serviços ecossistêmicos do bioma e contribuem para aumentar a perda de biodiversidade, as mudanças do clima e a crise hídrica.
Qual avaliação pode ser feita sobre as ações do governo goiano acerca da conservação do Cerrado?
O governo de Goiás tem adotado uma narrativa de "modernização" dos procedimentos de licenciamento ambiental e regularização de passivos ambientais de imóveis rurais e urbanos, bem como a compensação florestal e a compensação por danos para regularizar a supressão da vegetação nativa realizada sem a prévia autorização do órgão ambiental competente. O que justifica essa suposta modernização é uma visão de desenvolvimento que não está em sintonia com as evidências científicas que apontam para a diminuição da capacidade do bioma Cerrado prover a água, ligada ao desmatamento e às mudanças do clima. O bioma pode perder 34% da vazão de água nos próximos 28 anos, segundo pesquisa recente apoiada pelo ISPN. Com base na conjuntura dos recursos hídricos no Brasil, de 2018, a Agência Nacional de Águas diz que 68% do consumo de água é feito pela agricultura. Incluindo a pecuária, 80% da água está comprometida ao agronegócio, que por si só, de acordo com o Mapbiomas, é responsável por 97% do desmatamento no Cerrado, principal emissor de carbono no país.
O que pode ser feito para melhorar a situação?
Temos um desafio de conter o desmatamento do bioma em patamares condizentes com a manutenção dos principais benefícios que a natureza é capaz de proporcionar para o bem-estar e qualidade de vida da população. E esse patamar não é o que estabelece o Código Florestal brasileiro de proteger apenas 20% ou 35% do Cerrado. Em vez de criar licenças ambientais autodeclaratórias e corretivas para aqueles que descumpriram a lei e facilidades para quem desmatou sem a devida autorização, o ideal é instituir critérios que consigam avaliar o impacto hídrico e o dano climático dos desmatamentos que estão sendo autorizados no Cerrado. É preciso que este uso do solo seja consequente com a Política Nacional de Mudanças do Clima e as metas e compromissos internacionais do país em redução de emissões e conservação da biodiversidade. É preciso reconhecer os direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais, que comprovadamente ocupam as áreas com menores taxas de desmatamento e maior conservação ambiental no Cerrado. É preciso rever as outorgas de irrigação, realizar estudo específico de avaliação de impacto, monitoramento e fiscalização constante do uso da água pela agropecuária. É preciso inverter a relação custo e benefício que hoje favorece o desmatamento ilegal e irregular frente uma fraca política de compensação e restauração da vegetação nativa. É preciso e é possível, mas temos de ter coragem para olhar o futuro e reconhecer que vivemos um quadro de emergência climática que está demandando ações políticas concretas já, para que possamos ainda ter condições de adaptação favoráveis frente às projeções de mudanças e eventos extremos que se apresentam.
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