Prêmio Nobel da Paz, o indiano Kailash Satyarthi resgatou mais de 12 mil meninos e meninas do trabalho infantil em seu país, promoveu acesso à educação a 90 mil crianças e reformou 800 escolas, além de ter evitado cerca de 400 casamentos precoces (forçados) e influenciado políticas de proteção à infância em quase todo o mundo. Ele fará, hoje, a palestra de abertura do Seminário Internacional Trabalho Decente, promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Satyarthi, que atualmente conversa com empresas e políticos e organizações sociais criando o Movimento pela Globalização da Compaixão, foi laureado com o Nobel em 2014 por sua luta mundial contra a exploração do trabalho infantil e pelo direito de toda criança e adolescente à educação. Em 1998, muitas centenas de organizações da sociedade civil de 103 países, entre eles o Brasil, atenderam a seu chamado para uma Marcha Global pela adoção da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) contra as piores formas de trabalho infantil.
Na Índia, o programa Vilas Amigas da Criança, da Kailash Satyarthi Children's Foundation, tem apoio do artista e DJ brasileiro Alok. O projeto atua diretamente em 20 comunidades, favorecendo cerca de 3 mil crianças, além de formar agentes do sistema oficial de proteção, bem-estar e justiça em outras 110 vilas. Alok tem milhares de fãs naquele país, em função da música e, sobretudo, por ser um avatar do game Free Fire, dos mais populares do mundo. Uma narrativa emocionante da jornada de Kailash pode ser vista no documentário The Price of Free, disponível no YouTube.
O congresso do TST, presidido pelo ministro Lélio Bentes, amigo pessoal do Prêmio Nobel, reunirá juízes e juízas de todo o país para um alinhamento sobre temas prioritários da Convenção sobre o Trabalho Decente (OIT), entre eles o combate ao trabalho escravo, a equidade de gênero e raça, segurança, saúde e a não tolerância ao trabalho infantil.
De sua casa, em Nova Délhi, Satyarthi concedeu esta entrevista. Leia a seguir.
O que lhe impulsionou a iniciar essa jornada em defesa da criança, quase sempre enfrentando poderes e colocando em risco sua vida e de sua família?
Quando resgatei, pela primeira vez uma criança, era uma menina de 15 anos, Sabo. Era um caso de escravidão intergeracional, pois seu pai e sua mãe eram escravizados, e ela nasceu e cresceu nessas condições. Conseguimos libertar aquela menina e muitas outras crianças, mulheres e homens, com a ajuda da alta corte de Delhi. Isso foi em 1981. Eu obviamente havia lido sobre a luta pela independência da Índia e também gostava muito dos livros espirituais, dos textos, não apenas do hinduísmo, mas também do cristianismo, da religião muçulmana, do budismo, então, eu sabia um pouco sobre salvação, emancipação, etc. Esse foi o momento da verdade para mim: quando eu vi essas crianças pulando de alegria na rua, rindo e chorando. Elas não conseguiam compreender a liberdade. Nunca imaginaram estar em um lugar com tantos carros, ruas e prédios. Elas nasceram e cresceram em um lugar muito pequeno e fechado. Essas crianças estavam abraçando suas mães, chorando de alegria. Eu nunca havia vivenciado aquilo. Eu não estava libertando ninguém. Eles é que estavam me libertando. Eu estava sendo libertado por dentro e me senti totalmente submerso nisso, nunca mais olhei para trás. Cada vez que eu libertava uma criança, eu libertava uma parte de mim, algo dentro de mim: um impulso mais espiritual.
Em direção distante da sua, que é de conexão com a dor dos outros seres, a humanidade em geral vive a partir de um sentimento de “separação”, uma indiferença que é o que gera a exploração de crianças, por exemplo
Acho que isso é a manifestação de sofrimentos internos de um grande número de pessoas que alcançam o poder, uma manifestação da violência. Todos temos bondade dentro de nós, e também temos escuridão. Então, todo ser humano é uma mistura de luz brilhante e escuridão. Mas a escuridão nada mais é do que a ausência de luz. Então, às vezes, perdemos o caminho da luz e seguimos em frente, daí ficamos famintos por poder, por dinheiro e por todo tipo de títulos, fama, conhecimento... E depois de algum tempo começamos a fazer isso às custas de outras pessoas. Se a Europa ou a América são pujantes, é a custo de muitos países pobres, das pessoas marginalizadas em países pobres.
O mundo social, “exterior” – as relações entre os países, a lógica das empresas – é um reflexo dessa condição “interior”?
Por trás de tudo isso está a ganância de poder e consumo, ganância da riqueza, materialismo, e isso está crescendo, infelizmente. Empresas cumprem certas regras em seus países (a não exploração de crianças na cadeia de fornecedores, por exemplo), mas em suas operações nos países pobres não praticam as mesmas regras. Hoje, o conhecimento pressiona a rapidez das pesquisas científicas e com elas a criação vertiginosa de novas tecnologias. Existe pressão dos consumidores, da indústria e do mundo da publicidade para que novas invenções cheguem mais rápido, mas, quem está se beneficiando com isso? O crescimento do consumo crescente é feito às custas do desequilíbrio ecológico: estamos destruindo a natureza e estamos deixando muitas pessoas para trás para que algumas possam correr mais rápido.
Este estado de “desconexão” na relação com os demais seres é uma certa enfermidade nos tecidos social e emocional?
Exato, eu chamo isso de “violência econômica”. Toda injustiça tem um elemento de violência. Por isso, existe essa lacuna crescente entre a África e os países ricos; ou internamente em países como a Índia ou o Brasil, Peru, México, Nigéria, África do Sul. Esse é um desafio sério, porque como se não bastasse a pobreza, essa situação está criando distúrbios sociais e emocionais. E esses distúrbios se refletem nas mentes das pessoas e geram violência interpessoal e desequilíbrio social. Na política, por exemplo, o populismo se estabelece atualmente numa expressão de ódio.
Alguma esperança?
O espírito humano não pode ser comprometido para sempre. A humanidade prevalecerá. A luz prevalecerá. A ausência de luz se manifesta como ausência de amor e compaixão, em razão desse sentimento de separação. A humanidade vive com muito medo nos corações e nas mentes: respondemos à crise global, particularmente à crise ecológica, impulsionados pelo medo de que um dia morreremos, de que seremos destruídos. Isso não é natural, é uma reação movida pelo medo e não por amor à vida, e assim não vai resolver, No passado, na Índia por exemplo, e também nas antigas tradições da América Latina, da África, nossos ancestrais amavam a natureza, eram amigos da natureza, não tinham medo dela, eles a amavam. Eles amavam as árvores, podiam falar com as florestas, podiam falar com os rios. Os rios falavam com eles, mas perderam-se os ouvidos que podiam escutar o canto dos rios, das árvores e montanhas. Esse relacionamento foi perdido.
Se há “separação”, egoísmo, o que pode nos devolver a um estado de “unidade”?
A compaixão. Compaixão é o sentimento de sofrer pelos outros como se fosse nosso próprio sofrimento, e com um forte impulso de acabar com aquele sofrimento, com a dor dos outros (e você resolve o seu próprio problema). Quando uma mãe, por exemplo, vê a criança cair na rua ou se machucar, quando a mãe ouve o choro de seu filho à distância, a resposta da mãe não é sistemática, planejada ou bem pensada, vem do coração, sem esforço. Esforço não é o guia, mas sim o que é espontâneo, natural. Assim é a resposta da compaixão, ela não é movida por medo ou interesses próprios ou por qualquer tipo de cálculo do que vamos ganhar com isso.
Na esfera da busca de soluções sociais, qual o lugar da compaixão?
Existe uma diferença entre empatia e compaixão. Quando você sente o sofrimento dos outros como seu próprio sofrimento, como um bom ser humano você sente empatia, mas não necessariamente você tenta agir para acabar com esse sofrimento como se fosse seu. Às vezes, pessoas empáticas se sentem cansadas ou deprimidas, se fecham na impotência sob o risco de tornarem-se insensíveis. Elas não são insensíveis, mas sua empatia criou uma barreira porque podem sentir-se deprimidas. Numa camada há empatia, noutra camada mais profunda há compaixão. Estou falando de uma compaixão ativa, de uma globalização da compaixão. Quando fiz meu discurso de aceitação do Nobel, falei que temos globalização econômica, de mercado, de dados, de informação, de produção e de consumo, e de que já vimos o lado bom e ruim disso. Este é o momento para uma compaixão globalizada, para uma “compaixão em ação”.
Você tem falado em conferências das Nações Unidas, para CEOs de empresas, jornalistas, políticos. Como eles recebem sua fala sobre compaixão?
Para eles, às vezes é um choque, porque antes eles pensavam que a compaixão era um valor, uma virtude ou algo moral, um “chamado”, algo assim. Eu digo que não, que é uma coisa muito prática. Se você é movido pela compaixão, não estou dizendo que você se torne um santo. Eu não sou contra o seu lucro. Não sou contra seu nome, fama ou posição. Essas coisas são necessárias para uma ordem social, política ou econômicas. Tudo é necessário, mas não devemos perder o caminho da compaixão, e a compaixão é muito prática. Mas para você obter essa paz de espírito, sensação de realização e alegria mais profundas, precisa seguir um caminho diferente. Se você quer chegar ao lugar onde você realmente sentirá felicidade, a mente/razão e o coração devem estar em harmonia, e isso gera compaixão. Isso é consciência, e a resposta da consciência é a moralidade, a ética, a responsabilidade.
Estamos tecendo um movimento social para a compaixão global. A centelha da “compaixão em ação” trará igualdade e justiça, responsabilidade política, responsabilidade social e econômica. Quero dizer que é hora de as pessoas responderem aos desafios com o coração, que não reprimam este caminho.
Devam Bhaskar (também assina como Geraldinho Vieira) é jornalista, coordenou a Agência de Notícias dos Diretos da Infância (ANDI) e dirige o Instituto Alok
Saiba Mais