ENTREVISTA

Maria do Rosário: "É necessário criar rejeição à violência"

Após 17 anos, deputada comenta necessidade de "criar rejeição à violência" e sobre como a norma que combate o feminicídio e a violência doméstica é complementar ao texto

Maria do Rosário:
Maria do Rosário: "Nós temos que construir um conjunto de políticas públicas permanentes para a proteção da mulher, que vão desde o atendimento na delegacia até o acolhimento institucional, a autonomia financeira, a possibilidade do cuidado com seus filhos" - (crédito: Renato Araújo/Câmara dos Deputados)
Mayara Souto
postado em 13/08/2023 03:55 / atualizado em 29/08/2023 10:44

A deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) produziu ementa na Lei Maria da Penha em 2020, durante a pandemia - onde serviços de combate à violência doméstica foram considerados essenciais. A parlamentar acompanha pautas sociais no Congresso desde o primeiro mandato, em 2003, e comenta a lei que completa 17 anos em 2023 e é a principal ferramenta de enfrentamento da violência doméstica no Brasil. Em entrevista ao Correio, a parlamentar comenta os próximos avanços na aplicação da norma, como a sociedade vem encarando o tema e também como a Lei de Feminicídio é complementar ao texto. Além disso, a parlamentar também fala quais são as mudanças previstas na revisão da Lei de Cotas, aprovada na Câmara dos Deputados, na quarta-feira, e que segue para votação no Senado. 

A Lei Maria da Penha completou 17 anos. Como a senhora avalia a aplicação dela nos últimos anos?

Cada momento tem sido um desafio garantir que os mecanismos que ela prevê, para prevenção e enfrentamento à violência, sejam efetivamente realizados. Mas eu não tenho nenhuma dúvida que, se hoje nós temos um conhecimento maior sobre a violência que atinge as mulheres, e temos alguma possibilidade, mesmo com dificuldades, de salvar a vida das mulheres, é porque existe a Lei Maria da Penha. Ela se tornou um instrumento essencial para defesa da vida das mulheres do Brasil.

Quais são os desafios dos próximos anos para que a lei seja ainda mais efetiva e que tire mais mulheres de perigo?

Nós temos que construir um conjunto de políticas públicas permanentes para a proteção da mulher, que vão desde o atendimento na delegacia até o acolhimento institucional, a autonomia financeira, a possibilidade do cuidado com seus filhos. Há muitas ações necessárias, que não estão ainda acontecendo, para serem colocadas em prática e que também as mulheres possam acessá-las desde o momento em que percebem a escalada de violência que está iniciando na sua vida. Mas, nós também precisamos mudar a cultura do país, que naturaliza e condena a própria mulher. É difícil para uma mulher fazer a denúncia e livrar-se dessa condição se as estruturas da sociedade do Estado acabam sempre condenando ela própria. Então, eu diria que isso, essa condenação que a mulher sofre quando ela leva a denúncia adiante é parte de uma cultura muito perversa que precisa ser superada.

Como que a Lei Maria da Penha e a Lei de Feminicídio conversam?

Eu fui relatora da Lei do Feminicídio, acredito que ela complementa, de uma forma muito adequada, a Lei Maria da Penha. Até a Lei do Feminicídio nós não tínhamos registro, em estatística, da violência e da morte das mulheres por razão de serem mulheres. Por não existirem esses dados, também não tínhamos o conhecimento devido e os instrumentos maiores para o enfrentamento. Então, a Lei do Feminicídio complementa a Lei Maria da Penha atuando naquilo que é mais triste e o desfecho mais perverso das violências previstas na Lei Maria da Penha. São quatro formas de violência contra a mulher: psicológica, física, patrimonial e moral. Nós entendemos que essas violências não acontecem em separado uma da outra, mas o feminicídio, sem dúvida alguma, é o ápice de um processo onde todas essas violências aconteceram. É o resultado do cúmulo do sentimento de posse e da condição de poder contra a mulher — onde ela não tem qualquer poder de defender-se disso e quem promove a violência tem o poder absoluto de destruir com ela.

Os dados que a gente teve do Anuário de Segurança Pública mostraram aumento nos feminicídios e na violência doméstica no ano passado. A senhora acredita que pode estar ligado com o contexto político que a gente estava vivendo?

Com certeza. O governo que o Brasil teve foi um governo de incentivo à violência. Toda vez que discriminam, oprimem e desvalorizam a figura da mulher, amplia também a violência contra ela, mas não é só isso. Aquele governo liberou o uso de armas de uma forma irresponsável e, muitas dessas armas, foram apontadas para o rosto, para o corpo, para a cabeça das mulheres no ambiente familiar. Então, é impossível o Brasil não afirmar, não se dar conta, que toda aquela política implementada no governo anterior era contra a vida das mulheres.

O que a gente pode fazer para que esse ódio às mulheres seja trabalhado na nossa sociedade, diminuindo os números de casos tanto da Lei Maria da Penha, quanto de feminicídios?

Precisamos criar uma rejeição pública, em todos os sentidos, a qualquer forma de violência, sobretudo, a violência contra as mulheres. Nós precisamos fazer uma mudança cultural, onde desde as escolas até os meios de comunicação, tratemos essas questões relacionadas à violência contra mulher mostrando e definindo a possibilidade de uma outra vida. Uma vida sem violência. Imagine uma vida sem violência...Como será? Melhor para todas as mulheres e para todas as pessoas. Afinal, se nós libertarmos a mulher da condição de violência estaremos também libertando os homens, ou todos aqueles são violadores, da condição de serem destruidores da vida da mulher, o que também acaba sendo algo fundamental para uma sociedade sem violência.

Sobre a Lei de Cotas, semana passada tivemos a aprovação de uma revisão na Câmara dos Deputados. Quais são as mudanças e por que elas foram pensadas?

A lei concluiu o seu período de 10 anos. Quando ela foi aprovada, inicialmente, ela tinha previsto uma reavaliação no ano de 2022. No entanto, as universidades e os institutos federais continuaram com uma garantia de cotas pela decisão dos seus conselhos. Uma nova lei de cotas é necessária para confirmar a manutenção dessa política e também, diante da sua avaliação e da forma positiva com que ela foi implementada no Brasil, assegurar que ela seja aprimorada. E aí vieram as mudanças que estão aqui previstas. A primeira mudança é que nos próximos 10 anos, depois de aprovada a lei, nós não teremos mais a possibilidade de uma revogação. O objetivo será justamente avaliar, ajustar, verificar a melhor forma de seguirmos enfrentando este racismo estrutural que existe no Brasil. A segunda mudança é que nós temos aqui uma redução do valor per capita da renda do estudante. Para 50% dos estudantes que entrarem pela cota, a renda máxima será de um salário mínimo per capita. O que significa que nós estamos aqui procurando que ingresse na universidade aquele jovem que realmente cumpre os critérios. É negro, negra, é indígena, oriundo de escola pública e das famílias mais pobres. Dessa forma a lei vai se adaptando para atender justamente àqueles que mais precisam.

A senhora avalia que nos últimos anos tivemos uma maior abertura na sociedade quanto ao assunto cotas?

Eu avalio que sim. Aqueles argumentos falaciosos que estavam colocados foram desmontados. Quando as cotas foram implementadas, elas não vieram apenas para o número de estudantes cotistas, elas contribuíram no geral. Houve uma preocupação de crescer no número de universidades e de vagas em todos os cursos. A existência das cotas não foi feita em uma universidade com número de vagas congelado, mas com o crescimento geral do número de vagas. Alguns também diziam: "Os estudantes vindos das escolas públicas, os estudantes mais pobres, os estudantes negros, indígenas vão comprometer a qualidade das universidades". Muito pelo contrário, as universidades mostraram que o trabalho desses estudantes, a vida acadêmica deles é igual ou superior às dos demais alunos em vários cursos. O que significa que também a qualidade teve um acréscimo e é importante dizer isso para enfrentar o racismo. A atualização da lei que está sendo construída, já vem com outra novidade que eu considero importante. O estudante que ingressar na universidade pelas cotas também deverá ter prioridade para assistência estudantil: onde morar, a passagem do ônibus, a tarifa do restaurante universitário.

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