O comércio de madeira no Brasil passa por uma linha tênue entre a legalidade e a ilegalidade. Boa parte da mercadoria contrabandeada que transita pelas rodovias do país começa, no início da cadeia de extração, como um carregamento aparentemente legal. Isso porque os predadores da Amazônia trabalham de forma organizada para forjar documentos, abrir empresas fantasmas, burlar o sistema e, assim, obter o maior lucro possível.
Uma madeira legal precisa de algumas documentações para ser comercializada, conforme estabelece a Lei nº 12.651 de 25 de maio de 2012. A primeira é o Plano de Manejo Florestal Sustentável (PMFS). Nele, a empresa que pretende explorar uma região da floresta apresenta uma proposta de como será feita a retirada da árvore sem danificar o meio ambiente, e fornece informações sobre a propriedade, os responsáveis técnicos pela extração e o estoque de árvores com valor comercial existente naquela região.
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Além desses detalhes, o Plano deve conter um Inventário Florestal, no qual o madeireiro indica a quantidade estimada de volume de madeira existente na terra a ser explorada. Quando o PMFS passa pela aprovação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), é gerado um crédito florestal. Esse crédito é a quantidade, em metros cúbicos, que o madeireiro poderá extrair da área apontada no Plano de Manejo; o número é emitido de acordo com o constante no inventário. Com essa liberação em mãos, o próximo passo do madeireiro é conseguir, com um órgão ambiental estadual, um Documento de Origem Florestal (DOF), no qual deve constar o volume de madeira, a origem, o destino e, principalmente, a rota que será utilizada para transportar esse carregamento.
Os principais estados de origem, segundo dados disponíveis acerca do desmatamento, são Pará, Amazonas, Mato Grosso e Rondônia. Nesses locais, de acordo com o Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), em 2022, foram registrados 4.162km² de área desmatada no Pará; 2.594km² no Amazonas; 1.927km² no Mato Grosso; e 1.480km² em Rondônia. Os dados batem com as informações da PRF, que apontam esses mesmos locais como os que mais tiveram madeira apreendida nos últimos cinco anos.
Estados consumidores
Apesar de a exportação chamar mais atenção, o mercado interno é o maior consumidor da madeira amazônica. A compra da mercadoria depende da espécie. Por exemplo, uma cidade pode consumir mais maçaranduba; outra, ipê. Mas, de modo geral, as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste são as principais compradoras dessa mercadoria.
"Os mercados consumidores variam pelo tipo de madeira. Um exemplo: o Rio de Janeiro compra predominantemente maçaranduba; alguns estados como Goiás compram outros tipos de madeira que têm mais no norte do estado do Mato Grosso e no sul do Pará. As madeiras que existem em Rondônia já alimentam outro tipo de mercado consumidor. Então varia pelo perfil do produto também", revela o agente da Polícia Rodoviária Federal (PRF) Antônio Barbosa.
Mercado ilegal
Os contrabandistas de madeira integram organizações criminosas que atuam na Amazônia Legal e afrontam a legislação ambiental. Existem, no comércio de madeira ilegal, duas vertentes: o carregamento que começa desde o início da extração de forma ilegal; e aquele que, à primeira vista, é legal, mas, em uma análise mais detalhada, revela-se de natureza ilícita.
Parte dos criminosos da madeira nem sequer se preocupa com documentações. Eles simplesmente entram na floresta, extraem as espécies nativas, devastando tudo em volta, e transportam a mercadoria sem qualquer papel. Entretanto, esses são minoria. "Quando eu comecei a trabalhar nessa área, em 2009, a gente flagrava transporte sem documento nenhum. Hoje praticamente todo mundo tem documento na mão, porém, esse documento, quando a gente aprofunda a fiscalização, visualizamos a configuração de falsidade ideológica", detalha Antônio Barbosa.
Corrupção de agentes públicos
A exploração ilegal de madeira é um tipo de crime ambiental que funciona de forma muito sofisticada, conforme fontes ouvidas pelo Correio. A maioria dos criminosos se organiza para forjar os Planos de Manejo, os Inventários Florestais e os DOFs, ou ainda corrompem agentes públicos, que passam a contribuir com o contrabando e facilitam a emissão desses papéis.
"Existem diferentes modalidades de fraude no transporte rodoviário: falta de documentação, documentação irregular ou inválida, documentação falsa. Hoje a gente já mapeou os diferentes modus operandi de transporte de madeira com documentação ideologicamente falsa", explica o agente da PRF. "Essas documentações falsas vêm de empresas de fachada que emitem e esquentam essas cargas, que foram processadas de forma ilegal. Então hoje esse é um crime mais sofisticado", completa Barbosa.
Alexandre Saraiva, delegado da Polícia Federal, confirma essa informação. De acordo com ele, quase toda a madeira extraída da Amazônia apresenta uma documentação forjada. "Os Planos de Manejo são falsos, com isso, eles conseguem os DOFs igualmente falsos e utilizam esse mesmo DOF, incontáveis vezes, para transportar diferentes cargas de madeira ilegal", acrescenta o delegado, que trabalhou por 10 anos em estados explorados da Floresta Amazônica.
Trajetos imaginários
Uma das fraudes constantemente encontradas pelos agentes da lei é a indicação de uma rota falsa no DOF. Muitas vezes, os contrabandistas apontam trajetos imaginários no documento e colocam um destinatário inexistente, somente para cumprir o requisito de ter esses campos preenchidos no sistema do órgão ambiental, mas não são dotados de qualquer veracidade. "Eu participei de uma apreensão em que o veículo foi abordado no Rio Grande do Norte, ele saiu do Mato Grosso e foi para o Rio Grande do Norte. Já era estranho por causa disso, porque cargas que vão para o Nordeste, geralmente saem do Pará. Chegando ao Nordeste, fizemos contato com a fiscalização na divisa entre os estados e o fisco apontou que, aquela empresa destinatária que constava no papel, ou seja, o destino, não existia fisicamente", exemplifica o policial rodoviário.
No início deste ano, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), fez uma varredura no sistema do órgão, onde são cadastradas informações como DOF e crédito florestal. Com auxílio de hackers, foram encontrados 77 mil caminhões transportando árvores ilegais e 1,2 milhão de metros cúbicos de crédito florestal, que estava sendo usado para esquentar a carga. Para se ter uma ideia, isso corresponde a 40 mil carretas lotadas de madeira. Além disso, 301 empresas apresentaram indícios de fraude.
Governo atento às estradas
As artimanhas utilizadas pelos madeireiros para fraudar os sistemas dos órgãos ambientais e policiais, e a consequente devastação da floresta estão sob o olhar do governo federal. A exploração ilegal de madeira é um dos principais vetores do desmatamento na Amazônia hoje e, uma vez que esse crime ambiental tem relação com as rodovias, a destruição da flora também é influenciada pela criação de estradas que cortam a floresta.
Por isso, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAM), lançado em junho deste ano pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), aqueceu, novamente, os debates acerca da pavimentação de rodovias que cortam a floresta. O plano detalha a contribuição das estradas para a ocupação da floresta.
"Nos últimos anos houve um avanço da fronteira conhecida como arco do desmatamento para o interior da Amazônia, adentrando os estados do Pará, do Acre e do Amazonas, em especial ao longo das rodovias federais que perpassam esses estados, como a BR-163, a BR-230, a BR-319 e a BR-364", observa o documento.
Essas rodovias são recordistas em apreensões de madeira ilegal feitas pela Polícia Rodoviária Federal nos últimos cinco anos, como mostrou, ontem, reportagem publicada pelo Correio. Em estudo conjunto, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) concluíram que, quanto maior a distância entre uma estrada e áreas preservadas, maior é a presença de vegetação nativa.
Infraestrutura
O impacto das rodovias na preservação da Amazônia é um dos pontos que impedem o avanço da pavimentação da BR-319 e BR-230. Outro estudo, feito por pesquisadores de Estados Unidos, Brasil, Colômbia e Suécia, em 2021, aponta que a construção de estradas na floresta pode causar o desmatamento de 2,4 milhões de hectares nos próximos 20 anos.
Por isso, o PPCDAM apresenta soluções para essa problemática. De acordo com Raoni Rajão, diretor do Departamento de Políticas de Controle do Desmatamento e Queimadas, do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima (MMA), o intuito é diminuir os índices de violência e desmatamento para, depois, pensar em infraestrutura.
"Com o avanço da política de controle do desmatamento, a destinação das terras públicas e a implementação de unidades de conservação, vamos chegar a uma situação ideal no Brasil. Então a gente vai poder melhorar a infraestrutura em qualquer lugar no país sem temer um efeito rebote no desmatamento", analisa o diretor.