Durante a campanha eleitoral, o então candidato e agora presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) visitou um quilombo no interior de Minas Gerais e postou foto em que ele e a agora primeira-dama aparecem sorridentes ao lado de integrantes da comunidade.
Em junho, Lula voltou a falar deste quilombo, quando lançou o Plano Safra para Agricultura Familiar, no Palácio do Planalto. O presidente mencionou visita durante mandato anterior.
"Quando era presidente, a gente reconheceu um quilombo na cidade de Contagem. Eu fui lá o ano passado. Esse quilombo não foi legalizado ainda. (...) passaram 15 anos e a gente não conseguiu legalizar", disse Lula.
Arturos, o quilombo que ficou na memória de Lula, foi criado há cerca de 133 anos.Ele é considerado uma das comunidades originais do país e reconhecido como Patrimônio Imaterial pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha).
Hoje, vivem naquela propriedade coletiva e no seu entorno 180 famílias, em um total de 700 pessoas, que têm uma cultura e folclore próprios, herdados de seus ancestrais de origem africana, passando seus costumes, músicas, danças e ritos de geração em geração.
Eles aguardam, há quase duas décadas, a regularização fundiária oficial — que os líderes argumentam que protegeria os quilombolas, por exemplo, de perder as terras para outros grupos e facilitaria aplicação de políticas públicas no local.
A comunidade foi certificada como quilombola pela Fundação Cultural Palmares em 2004 — o primeiro passo no processo de titulação.
A etapa seguinte geralmente é ter um processo aberto no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o principal órgão que gere esse processo, embora outros, como o Ministério Público Federal, possam estar envolvidos.
No Incra, os passos incluem a Elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTDI), publicação desse relatório, homologação pelo governo (reconhecimento do território como quilombola pelo poder federal), desapropriação (tirar outros grupos da terra quando necessário), e por fim, a chamada regularização fundiária.
Para os Arturos, o processo só começou de fato no ano seguinte da certificação pela Fundação Cultural Palmares, 2005. Hoje, 18 anos mais tarde, é considerada a principal reivindicação da comunidade, e, segundo o Incra não é possível saber quando e se esse processo será concluído.
O gestor da associação que administra o quilombo Arturos e um dos articuladores da campanha pela titulação, João Pio de Souza, de 59 anos, cobrou agilidade do presidente.
"Estamos sofrendo especulação imobiliária e queremos nosso direito de preservar a sobrevivência e tradições — algumas delas que só existem aqui. Mas o processo é burocrático, o que é correto, mas poderia ser mais rápido. Dissemos isso ao Lula", diz.
Defensores da regularização de terras apontam que ela é fundamental para a garantia de direitos às comunidades quilombolas já previstas na Constituição e que representam uma segurança para as comunidades. Críticos das demarcações dizem que elas podem violar direito à propriedade privada ou ter um suposto impacto negativo no desenvolvimento econômico e disputas territoriais com outros grupos.
1,3 milhão de quilombolas no Brasil
A situação dos Arturos não é incomum. De acordo com o IBGE, existem atualmente 494 territórios quilombolas oficialmente delimitados e 4.859 comunidades fora de terras oficialmente delimitadas. Este número, quase dez vezes maior, está em revisão, a partir de dados coletados recentemente.
Apesar desta contagem, uma dúvida persistia sobre essa população. Não havia até agora estimativas oficiais de quantos quilombolas vivem no Brasil.
Isso mudou com a divulgação pelo IBGE nesta quinta-feira (27/8) de parte dos resultados iniciais do Censo 2022, o primeiro a contar os quilombolas na história do país.
Há mais de 1,3 milhão de pessoas autodeclaradas quilombolas no Brasil, segundo esses dados.
Quase nove em cada dez quilombolas (87,4%) vivem em territórios ainda não oficialmente titulados, como o quilombo Arturos, enquanto só 12,6% estão em territórios delimitados.
Marta Antunes, responsável pelo Projeto de Povos e Comunidades Tradicionais do IBGE, diz que os resultados do Censo superaram as expectativas dos pesquisadores.
Eles antes baseavam seus conhecimentos apenas em registros administrativos do Cadastro Único e os dados de vacinação quilombola do DataSUS, explica Antunes.
"Agora é possível conhecer a distribuição da população quilombola no país", diz a pesquisadora.
As informações do IBGE mostram, por exemplo, que a região Nordeste concentra mais de dois terços desta população (veja mais detalhes abaixo).
Que ali estivesse boa parte dos quilombolas já era esperado pelos pesquisadores, porém o índice de mais de 60% chamou atenção dos especialistas ouvidos pela reportagem.
Surpreendeu, ainda, a existência de 55 municípios com mais de 5 mil quilombolas e a presença deles em 1.696 do total de 5.568 municípios do país, diz Antunes.
‘Não é esmola, é reparação histórica’
Os Arturos compõem um grupo familiar que descende de Camilo Silvério da Silva, que chegou ao Rio de Janeiro em um navio negreiro vindo de Angola em meados do século 19.
Logo após a chegada, Camilo foi enviado a Minas Gerais para trabalhar num povoado situado na Mata do Macuco, antigo município de Santa Quitéria, hoje Esmeraldas. Lá, trabalhou nas minas e como tropeiro nas lavouras. Casou-se com a escrava alforriada Felismiba Rita Cândida, com quem teve seis filhos.
Entre os irmãos, Artur Camilo Silvério foi o que mais prosperou. Nasceu em 1885, época da Lei do Ventre Livre, que determinou que os bebês de mulheres escravizadas não teriam o mesmo destino que elas, e casou-se com Carmelinda Maria da Silva.
O casal teve 10 filhos e se estabeleceu em Contagem, na localidade conhecida então conhecida como Domingos Pereira, onde adquiriram a propriedade na qual ainda vivem seus descendentes.
"Um pedaço de terra, para boa parte do Brasil, é para gerar riqueza, para pôr no mercado. Para nós, é sobrevivência e cultura. A titulação não é um pedido de esmola para o Estado — é nosso direito e uma reparação histórica por todos os anos de escravidão", diz João Pio, que além de articulador da comunidade, também é superintendente de Política para a Promoção da Igualdade Racial da Prefeitura Municipal de Contagem.
O Incra disse à BBC News Brasil que o processo de regularização da Comunidade Quilombola dos Arturos está em fase de elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID).
"Trata-se do levantamento de informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, socioeconômicas, ambientais, históricas, etnográficas e antropológicas, que são obtidas em campo, com a comunidade e com outras instituições públicas e privadas. O relatório tem como objetivo identificar os limites de cada território."
A autarquia afirmou, ainda, que não é possível definir o tempo médio para concluir processos desta natureza.
"A atividade é complexa, composta por várias etapas, e depende de informações de terceiros — particulares e públicos", disse em nota, reiterando que o processo de identificação e a regularização fundiária não é competência exclusiva do Incra, mas também envolve União, Distrito Federal, dos estados e dos municípios.
Um processo ‘tortuoso e longo’
A regularização de terras, avalia Milene Maia, coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), é fundamental para a garantia de direitos às comunidades quilombolas já previstas na Constituição Federal de 1988.
"A titulação permite uma segurança das comunidades em relação à proteção e ao uso do seu território. Uma vez que o seu território não está oficialmente reconhecido, isso possibilita conflito com terceiros que disputam essa área."
Outro fator importante, lembra João Pio, é que, com a titulação, a população passa a ter gerenciamento completo do seu território, podendo escolher, por exemplo, como deseja fazer o cultivo agrícola e como organizar as escolas dentro das comunidades.
O processo para conseguir a regularização das terras, no entanto, é caracterizado por Maia como "tortuoso e longo".
"A revisão da instrução normativa é urgente, inclusive é uma demanda do movimento quilombola, para que o executivo possa, em especial o Incra, revisar os passos e agilizar a parte burocrática. Temos mais de 1.800 processos abertos no Incra que também não avançam, o que mostra como é gritante a morosidade do processo de titulação."
No governo anterior, o ex-presidente Jair Bolsonaro se posicionava de forma abertamente contra a titulação de terras quilombolas.
Meses antes de ser eleito, Bolsonaro prometeu que não alocaria recursos financeiros à causa e se referiu a um integrante da comunidade com uma medida de peso usada para animais.
"Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Eles não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve (...) Pode ter certeza que, seu eu chegar lá, não vai ter dinheiro para ONG (…). Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola".
A promessa foi parcialmente levada em frente: seu governo emitiu apenas 12 títulos de terras quilombolas, a média histórica mais baixa de 1995, segundo divulgou o Jornal da Cultura, com dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação.
Até agora, com um semestre do novo governo Lula, foram contabilizadas três titulações parciais, 21 Portarias de Declaração (um passo inicial no processo) e três Relatórios de Identificação e Delimitação (RTID) de Terras Quilombolas. É o que aponta o levantamento realizado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP).A regularização de terras, avalia Milene Maia, coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), é fundamental para a garantia de direitos às comunidades quilombolas já previstas na Constituição Federal de 1988.
"A titulação permite uma segurança das comunidades em relação à proteção e ao uso do seu território. Uma vez que o seu território não está oficialmente reconhecido, isso possibilita conflito com terceiros que disputam essa área."
Outro fator importante, lembra João Pio, é que, com a titulação, a população passa a ter gerenciamento completo do seu território, podendo escolher, por exemplo, como deseja fazer o cultivo agrícola e como organizar as escolas dentro das comunidades.
O processo para conseguir a regularização das terras, no entanto, é caracterizado por Maia como "tortuoso e longo".
"A revisão da instrução normativa é urgente, inclusive é uma demanda do movimento quilombola, para que o executivo possa, em especial o Incra, revisar os passos e agilizar a parte burocrática. Temos mais de 1.800 processos abertos no Incra que também não avançam, o que mostra como é gritante a morosidade do processo de titulação."
No governo anterior, o ex-presidente Jair Bolsonaro se posicionava de forma abertamente contra a titulação de terras quilombolas.
Meses antes de ser eleito, Bolsonaro prometeu que não alocaria recursos financeiros à causa e se referiu a um integrante da comunidade com uma medida de peso usada para animais.
"Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Eles não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve (...) Pode ter certeza que, seu eu chegar lá, não vai ter dinheiro para ONG (…). Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola".
A promessa foi parcialmente levada em frente: seu governo emitiu apenas 12 títulos de terras quilombolas, a média histórica mais baixa de 1995, segundo divulgou o Jornal da Cultura, com dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação.
Os argumentos de pessoas que se posicionam contra a demarcação de terras quilombolas vão desde a violação do direito à propriedade privada até o suposto impacto negativo no desenvolvimento econômico e disputas territoriais com outros grupos. Alguns contestam a identidade quilombola e seus critérios de reconhecimento, além de apontarem interesse econômico nos recursos naturais presentes nas terras demarcadas.
Até agora, com um semestre do novo governo Lula, foram contabilizadas três titulações parciais, 21 Portarias de Declaração (um passo inicial no processo) e três Relatórios de Identificação e Delimitação (RTID) de Terras Quilombolas. É o que aponta o levantamento realizado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP).
Concentração no Nordeste
Na avaliação de Fernando Damasco, gerente de Territórios Tradicionais e Áreas Protegidas do IBGE, o conhecimento sobre a diversidade territorial pode ajudar na criação de políticas públicas que atendam as necessidades diversas das diferentes comunidades.
"Esse panorama certamente permitirá o aperfeiçoamento da atuação dos órgãos que executam políticas públicas destinadas aos quilombolas, aumentando a eficácia e a precisão das ações e o direcionamento de investimentos para melhorar as condições de vida dessa população."
Embora a primeira versão não conte com detalhes como renda e escolaridade desses grupos, há informações inéditas sobre seu recorte espacial.
O censo mostra que no Nordeste residem 68,19% dos quilombolas do país.
A Bahia concentra 29,90% desta população e o Maranhão vem a seguir, com 20,26%. Juntos, os dois estados abrigam 50,16% da população quilombola do país.
O Censo também afirma que há pelo menos um morador quilombola em 473.970 domicílios pelo Brasil.
Dos 5.568 municípios do país, 1.696 tinham moradores quilombolas, mas destes, apenas 326 tinham territórios delimitados.
"Mapeando as populações quilombolas no Brasil, trazemos visibilidade e reconhecimento do Estado para essas comunidades. Isso possibilitará a implementação de políticas públicas mais eficazes em níveis nacional, estadual e municipal", diz Maia.
De acordo com a especialista, a dificuldade no enfrentamento da covid-19 mostrou quão prejudicial a falta de informações pode ser na hora de criar planos específicos para comunidades originárias — algo que pode ser evitado com dados precisos.
Para João Pio, a expectativa é que políticas públicas alcancem os territórios das comunidades tradicionais.
"Em todos os campos: saúde, educação, a geração de renda, a pauta da agricultura familiar, que caracteriza muitas comunidades quilombolas, e da educação — inclusive com acesso ao ensino superior. E [o Censo] é importante sobretudo para nós, das comunidades, que com mais conhecimento sobre os quilombos poderemos revindicar a garantia e proteção dos nossos direitos."