Evoé é um grito festivo da Grécia antiga entoado nas bacantes, festas dedicadas a Dionísio. Na época, acreditava-se que, ao gritar essa palavra, o povo evocava a presença do Deus do vinho, das festas e do teatro. No Brasil, Zé Celso foi uma espécie de porta-voz de Dionísio, ou o próprio Dionísio. Seu evoé soou tão alto que deixou ecos eternos no teatro brasileiro e aproximou a divindade grega da complexidade humana por meio da dramaturgia. José Celso Martinez Corrêa morreu ontem, aos 86 anos, após um trágico acidente no qual ficou com 53% do corpo queimado em decorrência de um incêndio gerado por um curto circuito em um aquecedor em seu apartamento, no bairro do Paraíso, em São Paulo.
O diretor chegou a ficar internado no Hospital das Clínicas e passou por cirurgia, mas não resistiu. Segundo o ator Pascoal da Conceição, com quem fez o espetáculo Hamlet, Zé Celso havia trabalhado durante toda a noite na adaptação do livro A queda do céu, de Davi Kopenawa. Em entrevista à CBN, Pascoal disse que o dramaturgo foi se deitar por volta de 7h. O incêndio teria ocorrido logo depois. Segundo o ator Kael Studart, do Teatro Oficina, ainda é preciso esperar o resultado da perícia para saber como o acidente aconteceu.
O diretor Marcelo Drummond, com o qual o dramaturgo vivia desde 1986 e com quem se casou em junho deste ano, também estava no apartamento, junto com o ator Victor Rosa. Eles ajudaram a resgatar o dramaturgo, que será velado no Teatro Oficina e será enterrado com a roupa do casamento, de acordo com Kael. O fundador do Teatro Oficina e um dos inventores do teatro contemporâneo brasileiro deixa um legado de transgressão, provocação e luta contra a opressão e os preconceitos.
Voz da vanguarda
Dramaturgo, ator, encenador e diretor, Zé Celso nasceu em 30 de março de 1937, em Araraquara. Na década de 1950, quando estudava na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, juntou um grupo de interessados em teatro do Centro Acadêmico XI de Agosto e montou o Teatro Oficina, a primeira versão do que mais tarde se tornaria um dos grupos mais importantes do país, o Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona.
O pequeno grupo arregimentado no CA cresceu, criou público e ganhou fama ao apostar em peças afrontosas, nas quais o nu era frequente e a liberdade em cena, o maior valor. Era uma época na qual o Brasil começava a jornada nas vanguardas: a bossa nova mudava os rumos da música, o modernismo dava origem a Brasília e o Teatro de Arena, no Rio, apostava no nacionalismo. Mas a experimentação de Zé Celso era nova. Inspirado nas técnicas do alemão Bertold Brecht, que acreditava no poder transformador do teatro engajado, ele queria levar o público à reflexão crítica. Distanciamento dos personagens e não envolvimento emocional, comentários dos atores durante a encenação, quebra da quarta parede, muita provocação por meio de temas tabus como o sexo e a sexualidade e um entendimento do teatro como prática que transcende o entretenimento entravam para o cardápio do Dionísio brasileiro como forma de levar o público a desenvolver o pensamento crítico.
Os espetáculos eram festas — com um toque carnavalesco, porque ser brasileiro era uma marca de Zé Celso — regadas a críticas à realidade e ambientadas no contexto brasileiro. A postura de enfrentamento da repressão em todos os sentidos incomodou a ditadura e resultou em perseguição e tortura aplicada por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Os choques do Dops, aliás, foram fundamentais para a inovação da cena teatral: ao conversar com Lina Bo Bardi para dar forma ao projeto do Teatro Oficina construído no Bexiga e hoje tombado, o dramaturgo avisou que precisavam de duas saídas para poder fugir dos agentes da ditadura. Por isso a solução foi construir o prédio em forma de sambódromo, ou de avenida, o que também atendia à visão carnavalesca que Zé Celso levava para suas produções.
Os espetáculos são encenados ao longo de um comprido corredor e os atores convidam o público a participar da peça. No documentário Evoé, Zé Celso conta que, na época da ditadura, os agentes do DOPS esperavam nos fundos do teatro, o que impossibilitava a fuga dos atores, que acabavam sucumbindo aos choques e pancadas dos agentes.
A perseguição foi tanta que, em 1974, Zé Celso chegou a se exilar em Portugal, onde criou o grupo de teatro Samba Oficina. De volta ao Brasil, em 1978, rebatizou a trupe como Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. Ao longo dos quase 60 anos de carreira, trabalhou com nomes como Augusto Boal, Henriette Morineau, Fernanda Montenegro, Sérgio Britto, Raul Cortez, Bete Coelho e Chico Buarque. Dos grandes nomes da dramaturgia, Zé Celso levou ao palco obras de William Shakespeare, Nelson Rodrigues, Max Frisch, Bertolt Brecht e Máximo Gorki, sem contar os próprios textos e as adaptações do teatro clássico grego, caso de As bacantes, de Eurípedes, talvez uma de suas obras mais emblemáticas. E sempre de uma maneira original.
Amigo. mestre estrela-guia
Em um perfil de Zé Celso escrito para a revista Olympio, o escritor Ignácio de Loyola Brandão explica que, para entender o dramaturgo, é preciso passar pelo fascínio despertado na criança Zé Celso pelos mistérios da santíssima trindade. De fato, religião e sacralidade são dois componentes essenciais da linguagem do Teatro Oficina. Zé Celso e Loyola eram amigos de infância. As mães eram amigas e catequistas. Os dois são de Araraquara e, quando foram para São Paulo fazer faculdade, moraram juntos. "Estou desolado, mal. Uma amizade de 80 anos se foi", lamenta o autor de Não verás país nenhum. "Tudo que posso dizer é: um furacão no teatro por décadas foi devastado pelo fogo em minutos."
O diretor Guilherme Reis, criador do Cena Contemporânea, lembra que Hugo Rodas foi o irmão espiritual de Zé Celso. Os dois eram amigos e compartilhavam a mesma visão e missão dramatúrgica. "Ele nos ensinou o valor da liberdade. O país fica menor com a sua morte. Ele foi um dos mais importantes artistas latino-americanos e um dos grandes do teatro mundial. Zé Celso incomodava os acomodados, encorajava os acovardados", diz Reis. "Que as novas gerações sigam nos encorajando, incomodando, criando beleza e provocando a inteligência das pessoas. Acho que ele trabalhou muito nos últimos anos para que fosse assim."
Camila Guerra, uma das integrantes da Agremiação Teatral Amacaca (ATA), fundada por Hugo Rodas, faz parte dessa nova geração. Ela chegou a trabalhar em uma versão de 2016 de As bacantes, em São Paulo, após receber um convite do próprio Zé Celso. Fez uma temporada inteira. "Zé queria subverter a lógica teatral de palco plateia, achava o teatro um rito e um carnaval e fez do teatro oficina uma rua, onde o teatro acontecia e as pessoas podiam experimentar de forma mais ativa todo aquele acontecimento. As peças eram longas porque ele achava que o ritual tinha que ser um experimento não somente consumível e sim vivenciado em coletivo", diz a atriz.
Eliana Carneiro, da Cia. Os Buriti, também trabalhou com o dramaturgo na preparação corporal do elenco de As bacantes. Para ela, Zé Celso é um dos maiores nomes do teatro brasileiro, cujo legado transcende o espaço e o tempo. "Ele consegue fazer uma conexão com o passado, com o presente, com o futuro, e isso é incrível. Tem toda uma relação com a musicalidade, com o texto, com a oralidade, com os grandes mitos. Ele é um gigante", acredita a atriz e diretora, que compara o Teatro Oficina a um templo.
O diretor Fernando Guimarães lembra que Zé Celso nunca teve medo da vida e que ele era o "corpo de uma geração que promoveu a revolução cultural". "Contrário aos tempos atuais de gueto, a sua poética da vida sempre foi uma ação anárquica de coisas e seres que se entredevoram para irmos além do ponto de vista social. Um homem de teatro no sentido radical e total", diz Guimarães.
*Colaborou Maria Luiza Castro