Os quase 13 anos sem contar a população cobram seu preço. Dados estatísticos defasados afetam o planejamento de políticas públicas de longo prazo, um problema que o Censo 2022 começa a identificar para que o Poder Público possa fazer as correções de rumo necessárias. A primeira constatação é de que não somos tantos quanto as projeções indicavam. O Brasil tem 203 milhões de habitantes, quase 10 milhões a menos do que indicavam as pesquisas por amostra de domicílio (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) até o ano passado. O crescimento da população entre um censo e outro foi o menor estatisticamente desde o início da série histórica: apenas 0,52%. Cidades perderam habitantes enquanto aumentou o número de imóveis fechados ou usados de forma temporária. Números que apontam fenômenos sociais que especialistas de diversas áreas vão diagnosticar, destrinchar e estudar.
Entre eles está o professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro Claudio Egler. Membro da comissão consultiva do Censo desde a edição de 2010, ele é um dos cientistas que se dedicarão, ao longo dos próximos anos, a analisar informações coletadas em 2022, em um trabalho marcado por percalços que foram desde a falta de recursos até a recusa de uma parte da população — quatro vezes maior do que no Censo 2010 — em receber os recenseadores. "O Censo tem que conviver com as fake news", alerta Egler.
Em entrevista ao Correio, o geógrafo comenta os primeiros números, fala das dificuldades que o Censo enfrentou e se mostra surpreso com a quantidade de lares "não ocupados" que o recenseamento identificou. Dos 90 milhões de domicílios mapeados no país, 18 milhões estavam vagos ou foram considerados de uso eventual — um aumento de 80% em relação ao último levantamento. Acompanhe os principais trechos.
Os primeiros números do Censo 2022 mandaram alguns recados. Quais os mais importantes?
O Censo teve muitos percalços, desde o negacionismo do governo anterior, que queria cortar tudo, queria que o IBGE vendesse um prédio para bancar o Censo, depois teve a crise sanitária, com dengue, zika, chikungunya e, depois, a pandemia da covid-19. E ainda tivemos uma eleição extremamente polarizada. O Censo foi uma vitória porque conseguiu chegar ao final.
Esses percalços contaminaram o resultado?
Não diria que foi contaminado, o Censo criou mecanismos de controle que não haviam antes. Acompanhamos domicílio a domicílio. Mas houve problemas. A principal "contaminação" foi a recusa em responder o questionário, mais de 4% não responderam. Como tudo isso foi monitorado, o que não era feito antes, sabemos agora que esse fenômeno é uma realidade. Fomos várias vezes aos endereços, todos georreferenciados. Sabemos onde ficam todos os domicílios do Brasil. Foi um Censo com essa característica. Do ponto de vista tecnológico, inovou bastante, e conseguiu uma certa transparência. Mas podemos dizer que a sociedade está contaminada e, de certa maneira, o Censo também, porque reflete a sociedade, é um retrato das condições de determinado momento.
Como conviver com essa nova realidade?
O Censo tem que conviver com as fake news. Muita gente se negou a responder os questionários. E não é gente pobre, não. São ricos, que moram em grandes condomínios, que simplesmente se recusaram a participar. Esse foi o problema do Censo e vai continuar sendo, temos que enfrentar isso. Todo Censo tem recusa, mas esse, devido a essas condições, teve uma taxa de recusa maior.
O IBGE teve que se adaptar no meio do caminho?
Sim, com mecanismos que não havia antes, como o Ligue Censo, campanhas, parceria com a Cufa (Central Única das Favelas) para facilitar o acesso dos recenseadores às comunidades que o IBGE identifica como aglomerados subnormais. Mas tivemos uma vitória muito grande: conseguimos cobrir territórios indígenas com uma intervenção muito grande do Estado. Fomos até a Terra (Indígena) Yanomami, em que não se considerava a hipótese de entrar, mas entramos. O mesmo com os quilombolas, Censo nenhum tinha considerado esses territórios. Hoje sabemos quantos são, onde estão, como vivem.
Com relação aos primeiros números divulgados, chamou a atenção o fato de que a população brasileira não cresceu da forma que se projetava, inclusive, na Pnad?
Essa projeção é uma estimativa baseada em censos anteriores, pesquisas e tendências. O IBGE teve que se basear no Censo 2010, não teve nenhuma contagem nesse meio tempo, e passaram-se 12 anos. A estimativa estava bastante defasada. Fora os percalços, como a crise sanitária. E, no meu ponto de vista, também se acelerou o processo de transição demográfica.
O brasileiro está ficando mais velho mais rapidamente do que era esperado?
Exatamente. E há mais mudanças, como a presença da mulher como chefe de domicílio, famílias muito menores — a média de filhos caiu de mais de 3 por família para 2,8. Isso se dá tanto pela evolução do processo social quanto pelas dificuldades econômicas vividas nesse período entre os censos. A crise econômica, o desemprego, impactaram fortemente, as pessoas ficaram mais contidas para definir o tamanho da família. O que surpreendeu foi o número de domicílios, contado muito precisamente.
Por que surpreendeu?
Hoje beiramos 100 milhões de endereços, mas o IBGE encontrou um número expressivo de domicílios fechados. Muitas casas fechadas, que o dono abandonou, principalmente no interior do Nordeste, nas áreas rurais. E muitos domicílios de uso ocasional, principalmente no Centro-Sul. Atribuo a isso o uso de aplicativos (de aluguel de imóveis). Muita gente, hoje, tem apartamentos para alugar por aplicativos, e, cada vez mais, os domicílios são menores. O Censo vai ter que interpretar isso, porque impacta no planejamento das cidades.
Até o século passado, o desenvolvimento das cidades marcou o movimento das pessoas, no que se convencionou chamar de êxodo rural. Agora, o movimento é inverso? Os moradores da cidade estão fazendo o caminho de volta, atraídos pelo desenvolvimento do agronegócio?
Isso está bem mais claro na Região Centro-Oeste. Mas perdemos, por outro lado, em termos de indústrias. A queda do emprego industrial trouxe consequências importantes. Perdeu-se postos de trabalho da indústria e o trabalhador teve que migrar. Isso aconteceu. E há cidades com atrativos associados ao setor terciário, ao turismo. Houve um processo acelerado de metropolização e, agora, há esse movimento inverso. Mas há muitas cidades que continuam crescendo, como Brasília, Manaus e até São Paulo. Mas essas cidades mais tradicionais, mais dependentes da economia tradicional, onde não há mais essa base industrial, como Rio, Salvador, Fortaleza e Recife perderam população. Há um processo de mudança no padrão de metropolização do Brasil. Porque algumas metrópoles crescem e outras decrescem nós vamos ter que investigar. Uma informação importante do Censo será saber onde as pessoas estudam, trabalham e quanto tempo elas gastam para se locomover.
Para quem faz política pública, essa é uma informação fundamental.
Claro. E esses dados vão ser impactantes. Imagine essa informação para Brasília, por exemplo. Ela tem influência em uma área que compreende três "estados" (incluindo o DF). Eu participei de um grupo de estudos para a Ride (Região Integrada de Desenvolvimento do DF e Entorno) e vi como esse é um tema complexo. Nós precisamos entender melhor a área metropolitana de Brasília. Agora, isso vale para o Brasil todo: precisamos saber onde botar escola, onde botar hospital.
O Censo aponta esses caminhos?
Sim. Veremos que há cidades que precisam mais de leitos de hospital do que de carteiras escolares. É isso que o Censo vai informar: onde abrir mais escolas, onde botar mais hospitais. Há lugares em que a população idosa passou a ser muito expressiva, e ainda há a população mais vulnerável. Nós temos que estar preparados para isso.
O que mais chamou a atenção do senhor em relação a esses primeiros números do Censo?
Houve uma aceleração da transição demográfica, que precisamos compreender melhor. Isso afeta, principalmente, o planejamento político. Quando é que o Brasil perderá o bônus e ficará apenas com o ônus demográfico (mais crianças e idosos do que trabalhadores ativos)? Essa é uma informação importante para as políticas públicas, como se preparar para um cenário de carência de mão de obra, por exemplo. Já acontece em alguns países da Europa, mas ainda é prematuro falar desse problema no Brasil. Mas o Brasil é muito grande, em certas áreas poderemos ter falta de mão de obra.
Esse período sem o Censo provocou distorções em relação às informações sobre as cidades e suas populações?
Sim, principalmente em relação ao número de domicílios, muito superior ao que se acreditava. Também contribuiu o fato de as habitações não convencionais terem entrado na contagem. No interior do Nordeste temos muitos domicílios vazios, de pessoas que migram para trabalhar e, muitas vezes, não voltam. E há muitos domicílios de uso ocasional (aluguel de temporada) em toda a costa do Sul e do Sudeste. Nós temos que reavaliar o tipo de uso desses imóveis para que possamos avaliar a dimensão do deficit habitacional que nós temos. Esse é um debate para o planejamento urbano.
Distorções em relação à população trazem consequências para as cidades e seus habitantes?
Há questões vinculadas à densidade. Não vou dar nomes, mas há cidades que apareciam com uma determinada população muito numerosa, mas, na hora que (o sistema público de saúde) transferia vacinas para campanhas de vacinação, sobravam imunizantes. Aí se percebeu que a população desses municípios estava sobre-estimada. E por um motivo muito simples: receber mais recursos de transferências federais.
O Censo vai levar a um recálculo da distribuição de recursos públicos aos municípios?
O impacto não vai ser grande, não houve muitas mudanças, mas vai acontecer. Nesses casos que eu falei, são municípios que terão de ser rebaixados porque suas populações estavam sobre-estimadas.
Quais as lições que esse Censo nos deixa?
Aprendemos muito. Cada vez mais, o IBGE vai usar recursos dos mais variados, usando a base digital. O Brasil ainda tem muitas limitações. O Uruguai, por exemplo, está fazendo o censo agora. Com 90% do país cobertos pela internet, boa parte dos formulários está sendo respondida via rede. Aqui, teremos que criar uma cultura para chegar a esse ponto. O outro grande problema foi a verba destinada ao Censo, que não remunerava bem os recenseadores. Isso desanimou muita gente. Temos que pagar melhor esse pessoal.
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