Para fazer o trajeto entre Alta Floresta, no Mato Grosso, e Joinville, em Santa Catarina, uma carreta com 30 metros cúbicos de madeira percorre, aproximadamente, 3.000 km. No caminho, o veículo passa por algumas das principais rodovias brasileiras, como a BR-163, a BR-364, BR-158, BR-456, BR-116 e a BR-101. Em condições regulares, o motorista precisa de 40 horas de viagem até deixar a mercadoria no endereço do comprador. Mas nem sempre o trajeto traçado por um GPS é utilizado pelos protagonistas do comércio ilegal de madeira.
A rota de Alta Floresta a Joinville é feita diariamente por centenas de caminhoneiros, que deixam a cidade no extremo norte do Mato Grosso em direção ao mercado consumidor de árvores extraídas da maior floresta tropical do mundo. Segundo levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o estado do Centro-Oeste concentra mais de 73% da extração irregular de madeira na Região Amazônica. Lidera, ainda, os rankings de estudos mais recentes acerca do desmatamento na Amazônia Legal.
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Entre 2018 e 2023 foram apreendidos no Mato Grosso 46.627,73371 m³ de madeira ilegal. É o estado com maior número de ações antidesmate realizadas no período de cinco anos pela Polícia Rodoviária Federal (PRF). Segundo o agente da PRF Antônio Barbosa, que trabalha há 14 anos com operações envolvendo esse tipo de crime, cerca de 200 caminhões saem, todos os dias, de Alta Floresta. Essa quantidade é de madeira legal, em meses de grande movimentação, com toda a documentação necessária para sair da região em conformidade com as leis ambientais.
Em relação ao fluxo ilegal, é difícil determinar um número. Mas monitoramentos realizados pelo Greenpeace sugerem que o tráfego pelas rodovias brasileiras com árvores derrubadas ilegalmente pode ser ainda maior do que a estimativa apresentada por Barbosa. Um estudo feito com base na densidade do ipê, informada em inventários de 586 áreas florestais, mostra que 77% desses documentos registraram volumes desta espécie acima dos prováveis níveis máximos naturais. Esse é um indicativo de fraude. O delegado da Polícia Federal Alexandre Saraiva, que trabalhou por 10 anos em áreas exploradas, estima uma porcentagem ainda maior: "99,9% de toda a madeira extraída da Amazônia tem origem ilegal", diz.
Corredores ilegais
As rodovias representam os corredores mais utilizados para escoar a madeira ilegal extraída da Floresta Amazônica. Entre as estradas mais trafegadas pelos contrabandistas do Mato Grosso estão a BR-364, a BR-070 e a BR-163 — as principais para se chegar ao Distrito Federal, a São Paulo e ao Sul do país. Segundo os relatos de agentes da PRF e da PF, as cidades de Santos (SP), Paranaguá (PR) e Brasília são as maiores consumidoras de madeira nativa do país (leia mais no texto abaixo).
As rodovias federais que cruzam Mato Grosso concentraram as maiores apreensões de madeira ilegal ocorridas entre 2018 e 2019. A campeã é a BR-364. No intervalo de dois anos, os agentes recolheram, 44.385,4374 m³ de madeira. Essa quantidade de árvores é suficiente para formar uma fileira de 656 caminhões contêiner plataforma, cada um com aproximadamente seis metros de extensão. Na BR-163, a fiscalização apreendeu 11.905,786 m³ e, na BR-070, 3.548,19 m³.
Além das rodovias federais, os criminosos mato-grossenses utilizam as rodovias estaduais MT-265 e MT-407, segundo o relatório emitido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, sobre rotas usadas pelas organizações criminosas atuantes no segmento da exploração de madeira.
Os estudos sobre desmatamento e as operações da Polícia Rodoviária Federal permitem concluir que o mercado ilegal de madeira no Brasil está diretamente ligado às rodovias. "Estudos mostram que a maioria do desmatamento ocorre até 50 km de um eixo de rodovia principal. Quanto mais acesso às áreas de floresta que ainda não foram exploradas, maior a facilidade de quem vai fazer a extração, seja ela legal ou ilegal. Qualquer tipo de melhoria em acesso, em área com floresta preservada, contribui para o aumento da exploração ilegal de madeira", afirma Rômulo Batista, porta-voz do Greenpeace.
DF enfrenta apagão de dados sobre contrabando
Apontado pelas autoridades que combatem o tráfico madeireiro como um centro de grande demanda de árvores amazônicas, o Distrito Federal enfrenta um apagão de informações sobre o fluxo ilegal dessa mercadoria.
Segundo o Instituto Brasília Ambiental (Ibram), apenas 148 m³ de madeira foram apreendidos entre 2016 a 2022. Nesse período, foram aplicados somente R$ 109 mil em multas contra as madeireiras infratoras. “Em 2015 e 2017 fizeram operações e, depois disso, a gente não fez mais. Estamos querendo retomar essas operações”, afirma a diretora de fiscalização Ambiental do Ibram, Isabela Queiroz.
Em 2017, o então superintendente do Ibram, Marcos Félix, afirmou que o DF era o terceiro maior consumidor de madeira da Amazônia. Em nota, o Governo do Distrito Federal informou que não tem como avaliar a gravidade da situação em 2023. “Não temos como confirmar essas informações referentes aos dias de hoje, pois nesses últimos anos esse levantamento não foi mais realizado e os dados podem mudar a cada ano”, diz o texto enviado ao Correio.
Estimativas indicam que, em 2017, havia 1.200 pátios de madeira no DF. Desse total, ao menos 400 estariam ativos. “A falta de fiscalização consistente tem consequências ambientais e comerciais. A concorrência acaba sendo desleal, porque o mercado legal passa por um controle ambiental muito maior e tem mais limitações. Quando não se tem fiscalização, gera um desestímulo para os madeireiros que pretendeam atuar na legalidade”, observa o engenheiro florestal Leonardo Biali, professor da Universidade de Brasília (UnB).
Interesses lucrativos
Segundo especialistas, o fato de Mato Grosso ser o local mais devastado pelos predadores da floresta está diretamente ligado ao acesso às rodovias. A proximidade do estado com os principais mercados compradores de madeira no país torna mais viável financeiramente explorar a Região Amazônica do Centro-Oeste.
"Tudo tem a ver com o custo da madeira. Comprar madeira extraída do Amazonas ou de Roraima, por exemplo, não compensa para o mercado consumidor interno", conta o agente da PRF Antônio Barbosa. "Essa madeira chegaria muito cara no Distrito Federal, por exemplo. Então o mercado do DF, ao invés de comprar de Roraima ou do Amazonas, compra do Mato Grosso", detalha. "Quando a gente pensa em desmatamento ilegal na Amazônia, os locais mais críticos hoje são Pará, Mato Grosso e Rondônia, justamente pela proximidade com os mercados consumidores e a facilidade de acesso às principais rodovias do país", completa.
Ao atuar no lucrativo mercado ilegal de madeira, os contrabandistas utilizam largamente as rodovias públicas, mas a falta de uma estrada não é impeditivo. "Se não tiver uma estrada, os madeireiros vão abrir", pontua o delegado da PF Alexandre Saraiva. Para ele, a correlação entre a malha viária e o contrabando madeireiro é insuficiente para explicar a complexidade dessa atividade criminosa. "A existência de uma estrada pode até facilitar, mas a exploração ilegal é um conjunto de fatores", pondera. "O que causa o desmatamento, e a maioria dos crimes, é a ausência do Estado", sustenta.
Rômulo Batista, porta-voz do Greenpeace, reforça a atuação predatória do tráfico madeireiro. "Dependendo da BR, se ela existir há muito tempo, as regiões de floresta próxima a ela já foram todas desmatadas, então os madeireiros vão procurar áreas mais dentro da mata", descreve.
A ação devastadora dos contrabandistas, relata o especialista, é proporcional ao interesse em obter mais lucros. "Quando se fala numa madeira mais nobre, essas áreas que estão muito mais próximas da BR já foram exploradas. O acesso facilita o escoamento, mas se for uma madeira de grande valor comercial, o madeireiro vai abrir estradas clandestinas e extrair essa mercadoria, independente da proximidade com uma rodovia ou um rio, para uso de transporte fluvial", completa o porta-voz do Greenpeace.
Drogas e desmate juntos
A correlação entre rodovias e a exploração ilegal de madeira nativa tem reflexos não apenas ambientais, mas também sociais. Por conta da facilidade de acesso às áreas de conservação, proporcionada pelas estradas e canais fluviais, vidas são ceifadas, famílias ameaçadas e futuros destruídos.
Dionéssio Macieira Borges, 32 anos, é líder comunitário da Reserva Extrativista Ipaú-Anilzinho. Ele sofre na pele os efeitos da devastação. A comunidade de cinco mil famílias está localizada em Baião, no Pará, a cerca de 360km de Belém. Relatório de 2022 elaborado pelo Fórum de Segurança Pública indica a reserva como uma das áreas ambientais mais pressionadas pelo contrabando de madeira no estado.
“O risco é iminente, de todas as formas. Não só de ameaça de morte diretamente, mas também de acidentes, porque é constante o trânsito de carretas carregadas de madeira. Também tem muita agressão e ameaça às famílias que moram aqui. A pressão é muito grande”, relata o líder.
Na avaliação de Dionéssio, os episódios violentos foram influenciados pela criação da BR 422 que passa dentro da unidade de conservação onde ele vive com a família. “A BR-422 passa por dentro da nossa reserva. Seis ou sete municípios aqui têm acesso a essa rodovia. Então é muito complicado controlar a exploração de madeira”, conta.
Delitos em série
A exploração ilegal de madeira na Amazônia desencadeia uma série de crimes, incluindo os atentados contra a vida. Não por acaso, a região Norte está na contramão da diminuição dos índices de violência do restante do Brasil. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021, o número de assassinatos no país caiu 7%, em comparação com 2020, mas o Norte teve um aumento de 10%. O anuário da organização, com os dados de 2022, mostrou que a tendência violenta permanece nesta área, com o Amapá liderando o ranking dos estados mais violentos.
“Olhando-se o mapa da Amazônia, é possível perceber que tem muita madeira sendo explorada na região do Oeste do Pará, sobretudo na Transamazônica, São Félix do Xingu, Uruará, e na Cuiabá-Santarém, que é a BR-163. Toda aquela região tem uma presença muito grande de madeireiras, que pegam a rota para escoar essa mercadoria. Eles também utilizam as rotas que são usadas pelo narcotráfico, então há uma sobreposição. É claro que nesses locais têm altas taxas de violência letal, porque são áreas de conflito relacionado a essa dinâmica da exploração ilegal de madeira”, analisa o professor da Universidade Estadual do Pará (UEPA) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Aiala Colares.
Os índices de violência na Amazônia estão ligados, diretamente, aos crimes ambientais e ao tráfico de drogas. E as rodovias se tornam instrumento das atividades do crime organizado. Um estudo realizado pela Organização Não Governamental (ONG) Amazônia 2030, que analisou os dados relacionados aos crimes violentos na Amazônia Legal, num período de 20 anos (1999-2019), mostra a relação entre as rodovias e o aumento de homicídios nos municípios com menos de 100 mil habitantes da região.
De acordo com o levantamento, a exploração ilegal de madeira está entre os três principais fatores que “ajudam a explicar o crescimento expressivo da violência na Amazônia” e, as rotas utilizadas pelo crime organizado, contribuíram para o aumento dos crimes violentos nos 741 municípios amazônicos analisados. “Municípios próximos da rota rodoviária têm, em média ao longo do período, taxas de homicídio maiores do que outras áreas, refletindo provavelmente o fato que essas são áreas mais urbanizadas e com maior presença humana”, destaca o estudo.
Esse impacto social corresponde ao fato das rodovias facilitarem a prática de atividades ilícitas e de a região da Amazônia ser um polo de interesse para madeireiros e narcotraficantes, pela proximidade terrestre com outros países da América do Sul. Confirmando esta ligação, dados mais recentes mostram que o índice de Mortes Violentas Intencionais (MVI) na Amazônia Legal é 54% maior que no restante do país.
Violência crescente na região
Os estados mais pressionados pela exploração ilegal de madeira estão entre os 10 mais perigosos do Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O estado de Mato Grosso, um dos maiores fornecedores de madeira nativa, teve um aumento de 18,9% nas mortes violentas intencionais em 2022, em comparação com 2021. Foram 1.072 assassinatos, contra 889 no ano anterior. O Pará registrou 0,6% a mais de homicídios.
"A Amazônia é uma região onde a gente tem um espaço de disputa, e essa disputa envolve a vida de facções criminosas. Essa disputa se dá porque há necessidade de se controlar as rotas do narcotráfico e da exploração ilegal de madeira, que se juntam a outros crimes, como o garimpo ilegal. Então temos uma região onde há uma complexidade de conflitos", pontua o professor Aiala Colares.
O Fórum Brasileiro de Segurança reforça essa perspectiva. "Pelo menos dois fatores parecem contribuir diretamente para o crescimento da violência letal na região da Amazônia Legal: a intensa presença de facções do crime organizado; e o avanço do desmatamento", detalha o relatório relativo a 2022.
A atuação do crime organizado dificulta a implementação de políticas públicas voltadas para preservar o meio ambiente, oferecer segurança à população amazônica e promover o desenvolvimento sustentável. "Pavimentar uma rodovia na Amazônia, hoje, é como você riscar um fósforo perto de um barril de pólvora. O efeito não pode ser positivo", afirma Raoni Rajão, diretor do Departamento de Políticas de Controle do Desmatamento e Queimadas, do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima (MMA).
Procurada pelo Correio, o governo de Mato Grosso informou que "está fazendo sua parte com grandes investimentos na Segurança Pública, em tecnologia e compra de equipamentos". As Secretarias de Segurança do Pará e de Rondônia não responderam os contatos da reportagem.
Cinco perguntas para: Dionéssio Borges, líder comunitário da Reserva Ipaú-Anilzinho
Como é viver em uma das áreas mais pressionadas pelos madeireiros na Amazônia paraense?
Infelizmente há essa pressão — principalmente para quem carrega o fardo da liderança, como eu, e meu tio, que é presidente do Conselho da Associação da Reserva. O risco realmente existe, mas nossa missão é buscar os caminhos mais viáveis. Buscamos os meios legais que não tragam, mais severamente, risco para nós da liderança. Nós defendemos o meio ambiente, a floresta, porque ela é a nossa casa e de onde tiramos nosso sustento e sobrevivência.
Quais tipos de pressões e violências vocês sofrem? Como isso afeta a vida na reserva?
De alguns anos para cá, foi ficando um pouco mais perigoso para nós. As ações de exploradores e até de órgãos de competência de fiscalização estão nos agredindo mais severamente. Essa pressão é muito árdua. Mas não temos outra opção que não seja enfrentar, porque, como eu falei, essa é a nossa casa. Agressões, ameaças diretamente contra nós e nossas famílias e o risco por conta do tráfego de caminhões dentro da reserva são algumas das coisas que mais sofremos aqui.
Quais as consequências dessas formas de violência?
A principal consequência dessa pressão foi a devastação do meio ambiente que os exploradores deixaram. Hoje a gente sente na pele os efeitos disso. Antigamente, por exemplo, a gente não sentia tanto calor como sentimos agora. Na parte da tarde, antes da vinda dos madeireiros, a gente sentia até frio e tínhamos receio de nos banhar no rio que passa aqui dentro da reserva. Hoje isso não existe mais, porque o calor é intenso.
A que atribui todos esses riscos?
Eu acredito que é por conta da BR-422, que passa dentro da unidade. Isso facilitou a chegada desses exploradores e influenciou a escolha deles pela reserva como área a ser desmatada. Então, com isso, os riscos são três vezes maiores. Há uma BR onde não temos, como moradores, segurança alguma. De uns anos para cá, essa exploração diminuiu, porque a maior parte da reserva já foi desmatada. O que restou foram as castanheiras. Hoje elas são o principal alvo de derrubada aqui na reserva.
Vocês também sofrem pressão do poder público?
Sim. Não só eu, mas a maioria das pessoas que vivem nas comunidades tradicionais. (As autoridades) não querem que a gente faça as nossas roças para o sustento de nossas famílias. Como os sócios me procuram, eu tenho que confrontar os fiscais na forma do que nos garante a lei 9.985/2000, que é a agricultura de subsistência.
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