Todas os números da violência contra a mulher dispararam no ano passado. É o que mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado ontem pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O crime de estupro registrou, em 2022, a maior marca desde o começo do levantamento, em 2011, com 74.930 casos apurados — 8,2% a mais que 2021. Pior: seis em cada 10 vítimas da violação sexual são vulneráveis — isso inclui as crianças.
"Trabalhamos com algumas hipóteses que expliquem o aumento de notificações. Uma delas é de que as vítimas estão mais informadas e empoderadas. Mas, quando a gente olha para o perfil desses estupros, chama a atenção que estamos lidando com vítimas que, em sua maioria, têm entre 0 e 13 anos. Ou seja, estamos trabalhando com vulneráveis. A gente não pode afirmar que crianças e adolescentes estejam mais informadas sobre o que é abuso", explica a pesquisadora sênior do FBSP, Juliana Brandão.
As vítimas com menos de 14 anos — crime classificado como estupro de vulnerável — representam 75,8%, o que equivale a 56.820 meninas. O principal local onde o ataque acontece é na própria casa das crianças (68,3%); 86,1% dos agressores são conhecidos da vítima e 64,4% são da própria família.
Para a pesquisadora, uma possibilidade para explicar esse perfil de vítimas é que os casos possam ter acontecido durante a pandemia de covid-19 e estão vindo à tona agora, "quando as crianças voltaram a frequentar a escola e o acesso ao espaço público foi normalizado".
"Considerando que as escolas acabam sendo o porto seguro para as crianças, geralmente são os professores que percebem a mudança no comportamento. Acaba sendo o adulto que leva a informação aos órgãos oficiais de que a violência sexual aconteceu", destaca Juliana.
Os dados foram compilados pela entidade a partir de registros de boletins de ocorrência, acionamentos ao 190 e solicitações de medida protetiva ao Judiciário. A subnotificação é regra em casos de violência contra a mulher, mas não é a única questão que atrapalha nos levantamentos dentro do tema.
Entre 2021 e 2022, os feminicídios — tipificação do homicídio em que "a morte das mulheres ocorre pela sua condição de gênero ou envolvendo a violência doméstica" — aumentaram 6,1%, indo de 1.347 casos para 1.437, e as tentativas subiram 16,9%, somando 2.563 ocorrências.
Dentro de casa
As agressões em contexto de violência doméstica tiveram um aumento de 2,9% — saltaram de mais de 237 mil, em 2021, para 245.713 no último ano. Ameaças somaram 613.529 casos e os acionamentos ao 190 (número de emergência da Polícia Militar) chegaram a 899.485 ligações — média de 102 chamados por hora. Já os assédios sexuais cresceram 49,7%, de um ano para o outro, chegando a mais de 6 mil ocorrências, e episódios de importunação sexual subiram 37%, chegando a 27.530 casos no último ano.
O Anuário aponta que, mesmo sendo difícil explicar o crescimento de todos esses crimes, três hipóteses se destacam: falta de investimento nas políticas de proteção à mulher no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro; menor alocação orçamentária em uma década; impacto do isolamento social causado pela pandemia nos serviços de acolhimento e proteção às mulheres.
"Não há como dissociar o cenário de crescimento dos crimes de ódio da ascensão de movimentos ultraconservadores na política brasileira, que elegeram o debate sobre igualdade de gênero como inimigo número um", diz um trecho da pesquisa.
Juliana frisa que mudar o cenário implica em um investimento maior em mecanismos de prevenção. "Uma das formas de enfrentar essa questão é admitir que, quando falamos nessa criminalidade violenta, vemos que essas crianças que estão sendo vítimas de estupro estão em famílias que não estão conseguindo protegê-las. E quando olhamos para um projeto de sociedade, é de se perguntar: onde queremos chegar, quando permitimos e naturalizamos que crianças sejam submetidas a violências dessa magnitude?", questiona. (*Estaqiária sob a supervisão de Fabio Grecchi)
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