Se você já manuseou uma Bíblia, são grandes as chances de ter se deparado com o nome dele na folha de rosto: João Ferreira de Almeida. Ou, para usar a versão completa: João Ferreira Annes d’Almeida.
Trata-se de um português nascido em 1628 que, oriundo de família católica, tornou-se protestante e, aos 17 anos, conseguiu uma proeza: foi o primeiro a verter para o português os livros considerados sagrados que formam a Bíblia.
"Ele nasceu em Torre de Tavares, então reino de Portugal, viajou por várias regiões que tinham ligação tanto com Portugal quanto com os [hoje chamados] Países Baixos, viajou por regiões onde atualmente ficam a Indonésia e Malásia", conta à BBC News Brasil o historiador e teólogo Vinicius Couto, doutor em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo, presbítero da Igreja do Nazareno e professor do Seminário Teológico Nazareno do Brasil e do Seminário Batista Livre.
A ligação de Almeida com a religião vem desde a mais tenra infância. Órfão, acabou criado por um tio, que possivelmente era sacerdote católico.
"Segundo consta em alguns documentos e relatos de historiadores, esse tio era padre. E ele assumiu a responsabilidade da criação e do cuidado do Almeida", afirma à reportagem o pesquisador Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.
"O fato é que pouco se sabe a respeito da infância e da adolescência desse sujeito, mas ele teria recebido uma excelente educação, possivelmente sendo preparados para seguir a carreira religiosa, inclusive."
Aos 14 anos ele já estava na Ásia. Ali, acabou instalando-se na Batávia, a atual capital da Indonésia, hoje chamada de Jacarta. Naquela época a região era disputada entre portugueses e holandeses.
A cidade era o centro administrativo da Companhia Holandesa das Índias Orientais e, logo ao lado, Malaca, na atual Malásia, havia sido colônia portuguesa depois conquistada pelos holandeses.
"No ano seguinte, ele deixou a Igreja Católica e se converteu ao protestantismo", prossegue Maerki. Essa guinada foi fundamental na trajetória que Almeida teria como tradutor da Bíblia.
Por razões históricas, vale ressaltar. Afinal, no contexto da chamada reforma protestante, a partir da questão trazida por Martinho Lutero (1483-1546) e que abalou os alicerces do catolicismo de então, era importante que o fiel tivesse acesso aos textos bíblicos diretamente e em sua língua. Ora, isso motivou que uma série de traduções bíblicas fossem realizadas pelo mundo, sobretudo nos século 16 e 17.
Almeida ingressou na então denominada Igreja Reforma Holandesa sob esse contexto. E logo viu que havia uma lacuna a ser preenchida: até então, os crentes lusófonos não contavam com uma versão no seu idioma.
A conversão de Almeida ao protestantismo não foi acidental, mas sim fruto do contato que ele teve, em Batávia, com os membros da igreja holandesa. "[A conversão] foi depois da leitura que ele teve de uma obra que trazia uma perspectiva anticatólica, questionando pontos que o protestantismo [histórico] questiona em relação ao catolicismo", pontua Couto.
Trata-se de um manifesto intitulado 'Differença d’a Christandade'. E entre os ataques promovidos pelo panfleto à Igreja Católica estava um ponto que serviria de maior estímulo ao incipiente tradutor: o uso exacerbado do latim durante os ofícios religiosos, em detrimento de línguas vernaculares.
"A tradução da Bíblia para as línguas vernaculares é uma conquista da reforma protestante. Uma grande sacada dos protestantes foi justamente isso: traduzir a Bíblia para as línguas das pessoas, as línguas que as pessoas falavam", contextualiza à BBC News Brasil o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
É justamente por isso que Maerki define Almeida como um jovem "com ímpeto e desejo de mostrar o quanto estava de fato permeado pela atmosfera protestante, encantado com a Igreja Reformada".
"Porque nela, um dos elementos principais é justamente a tradução da Bíblia para o vernáculo", acrescenta.
Um processo cheio de dificuldades
A base da tradução de Almeida foi a consagrada versão em latim elaborada pelo teólogo protestante francês Teodoro de Beza (1519-1605). Mas não foi a única fonte — os registros históricos indicam que ele, como é praxe em trabalhos de tradução do tipo, comparou sua versão com as opções realizadas por outros autores.
"O Beza foi um teólogo que trabalhou bastante na arqueologia bíblica, com muitos comentários [em sua tradução]. Almeida utilizou isso, mas também usou as versões da Bíblia em castelhano, francês e italiano", ressalta Couto. "Nesse período, já tínhamos uma boa quantidade de traduções da Bíblia para outros idiomas."
Almeida terminou sua primeira versão do Novo Testamento em 1645, quando ele tinha, impressionantemente, apenas 17 anos. Ele pretendia que o material fosse publicado e, conforme alguns pesquisadores afirmam, chegou a enviá-lo para um editor em Amsterdã. "Entretanto, essa primeira versão do trabalho dele se perdeu", relata Couto.
O tradutor descobriu isso apenas em 1651, quando foi procurado por interessados em publicar a versão em português. Então decidiu recorrer aos seus rascunhos, preservados, para refazer o trabalho.
Dali em diante, houve intensos debates acerca da publicação ou não do seu trabalho, já que alguns que tiveram acesso aos manuscritos puseram-se a criticar fortemente a qualidade da tradução. Em 1656 ele foi ordenado pastor da Igreja Reformada e enviado para Ceilão, hoje Sri Lanka. Ali, além de atuar como sacerdote, dava aulas de português para outros religiosos e ensinava o catecismo.
Em paralelo à sua atuação comunitária, dedicava-se a revisar a Bíblia.
"Seu texto chegou a ser publicado mas, logo em seguida, identificaram problemas de tradução. E tudo foi recolhido às pressas, para que não circulasse", afirma Couto. "Ele consegui pregar e fazer uso de alguns desses textos, mas uma equipe passou a se dedicar a revisar tudo."
Algumas dessas versões chegaram a circular. O Museu Britânico, em Londres, guarda um exemplar cuja impressão data de 1681. Mas ainda eram tiragens restritas e não consensuais entre os cristãos lusófonos.
Sobre a vida de Almeida, pouco se sabe. A maior parte dos textos biográficos aponta que ele teria se casado, no Ceilão, com uma mulher chamada Lucrécia Valcoa de Lamos. Assim como ele, ela também seria protestante de origem católica. O casal teria tido dois filhos, um menino e uma menina.
Sua vida foi cheia de conflitos, tanto com católicos quanto com grupos locais. Por suas pregações contra a Igreja Católica, enfrentou proibições do governo da Batávia, em 1657. Também experimentou sanções similares em Colombo, no atual Sri Lanka, entre 1658 e 1661.
Na então possessão portuguesa de Tuticurim, atualmente parte da Índia, os problemas foram com as populações locais. Ali, anos antes, uma comitiva da Inquisição havia promovido uma queima de seu retrato em praça pública, indicando aos habitantes que ele não era bem-visto pela Igreja Católica que tanto criticava.
No período de cerca de um ano em que ele foi pastor ali, sofreu as consequências. Moradores nativos se recusavam a ouvi-lo, e poucos aceitavam serem batizados ou terem seus casamentos abençoados pelo religioso.
Almeida morreu na atual Indonésia em 1691, com 63 anos. Não havia ainda concluído a sua tradução definitiva do Antigo Testamento e esse trabalho prosseguiu com um de seus colegas missionários, o pastor holandês Jacobus op den Akker (1647-1731).
Oficialmente, nem Akker nem Almeida viram a obra concluída. De acordo com a Sociedade Bíblica do Brasil, aquela que é considera a primeira edição da Bíblia completa em português foi publicada apenas no ano de 1753, em dois volumes. Já a primeira versão consolidada em apenas um volume data de 1819.
Uma curiosidade adicional à vida de Almeida é que muitas impressões antigas o creditam como "padre". "Na verdade ele nunca foi padre. Ele foi um pastor calvinista", frisa Moraes.
Problemas de tradução
Até hoje muitas das versões da Bíblia em português trazem o gênese da versão de Almeida. É o caso daquela conhecida como ARA, assim chamada porque é Almeida Revisada e Atualizada. Também há a Almeida Corrigida Fiel e a Edição Revista e Corrigida, entre outras.
"É uma referência em língua portuguesa, uma tradução muito boa. Mas é lógico que, com o passar do tempo, vai-se fazendo ajustes e isso também é importante de salientar", comenta Moraes.
O historiador e teólogo dá um exemplo sobre esses ajustes. Por exemplo, quando no Antigo Testamento são mencionados os filhos de Noé. "Antes dos anos 1990, eles eram chamados de Sem, Cão e Jafé. Então começaram a chamar de Sem, Cam e Jafé. Para não gerar nenhum estranhamento com a palavra 'cão'", exemplifica Moraes.
Outra passagem bastante conhecida também foi ajustada mais recentemente. Trata-se do Salmo 23, aquele do "o Senhor é meu pastor, nada me faltará".
Ali, as versões antigas continham a frase "a tua vara e o teu cajado me consolam". "Os tradutores [contemporâneos] mexeram nessa expressão, porque com 'vara' poderia se gerar uma situação jocosa", conta Moraes. A ARA traz "o teu bordão e o teu cajado me consolam".
O teólogo Couto também identifica problemas na tradução de Almeida. No relato da criação do mundo, no livro do Gênesis, por exemplo, o trecho em que Deus cria "o homem à nossa imagem, conforme à nossa semelhança", é seguido da frase "e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra".
A ideia do ser humano "dominando" a natureza, se não incorreta, soa anacrônica aos tempos atuais, em que o discurso ambiental clama por cuidados ecológicos.
"A questão é que o verbo dominar vem do hebraico e essa tradução feita assim é muito pobre. Difícil encontrar uma tradução precisa, porque a ideia de domínio passa uma imagem de superioridade, sugerindo que o ser humano domina a natureza e esta lhe é inferior", comenta Couto.
"Mas, na verdade, a palavra original trazia uma conotação diferente, um sentido de mordomia responsável, querendo dizer que o ser humano seria quem deve cuidar da criação", explica o especialista.
O pesquisador Maerki ressalta outros trechos curiosos, alguns responsáveis, segundo ele, por "distorções".
"Um dos problemas apontados pelos estudiosos é a tradução da palavra ídolo, tanto do hebraico quanto do grego", afirma.
"Almeida traduz como escultura, como imagens em escultura, e não como ídolos. E isso acarreta justamente esse debate entre a tradição católica e a protestante sobre ter ou não imagens [sacras]. Foi um problema de tradução que originou um debate teológico."
"Outro trecho curioso está no livro de Isaías, quando a palavra que originalmente no hebraico significa ‘moça jovem’ foi traduzida por ele como 'virgem', mesmo que no hebraico haja outra palavra para 'virgem'", aponta. Trata-se do trecho encarado como profético e utilizado pelo cristianismo, sobretudo católico, para justificar o dogma da virgindade de Maria, mãe de Jesus: "eis que uma virgem conceberá, e dará à luz a um filho […]."
Probleminhas e problemões à parte, é unânime o reconhecimento de que o trabalho realizado por pioneiros como Almeida são dignos de respeito pela dificuldade em se traduzir textos tão complexos em uma época antiga. "Não havia os recursos de hoje e o tradutor sempre têm de fazer opções. Estamos falando de textos que originalmente foram escritos em idiomas com estruturas e até caracteres diferentes, como o hebraico, o grego antigo…", comenta Moraes.
"O trabalho desses homens que traduziam a Bíblia no passado é um trabalho digno dos maiores louvores porque, além dos conhecimentos que eles tinham de ter das línguas ditas originais: o grego, o hebraico, o próprio latim, e de outras versões que eles já usavam para cotejar e decidir as melhores opções de tradução, como o francês, o italiano, o inglês, essa era uma temática totalmente nova", acrescenta o professor, lembrando que a reforma protestante encabeçada por Lutero que havia aberto essas possibilidades não estava tão distante daquele tempo.
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