Sabotagens na rede elétrica e em embarcações. Casas incendiadas. Líderes forçados a deixar suas aldeias.
Os casos ocorreram nos últimos anos em comunidades indígenas divididas pelo garimpo ilegal. Para líderes indígenas e pesquisadores ouvidos pela BBC, atitudes e discursos do ex-presidente Jair Bolsonaro estimularam a atividade, acirrando conflitos em vários territórios.
Agora, com Lula na Presidência, o jogo de forças parece mudar outra vez. E enquanto feridas abertas nos últimos anos parecem longe de cicatrizar, algumas comunidades que estavam em pólos opostos do tabuleiro político ensaiam uma reaproximação.
Esse é o tema de um episódio da segunda temporada de Brasil Partido, um podcast da BBC News Brasil, a ser veiculado nesta sexta-feira (30/06) no site da BBC e em plataformas de áudio como Spotify, Apple Podcasts e Deezer.
Apresentado pelo repórter João Fellet, o podcast aborda diferentes conflitos sociais que têm sido vividos pela sociedade brasileira em campos como gênero, religião e cultura.
Divisões entre os Kayapó
Bepdjo Mekragnotire é o cacique da aldeia Baú, que fica na Terra Indígena Baú, no Pará.
Essa é uma das nove terras indígenas do povo Kayapó. A etnia hoje tem cerca de 10 mil integrantes e habita territórios que, somados, têm tamanho equivalente ao da Áustria.
Bepdjo era jovem quando, nos anos 80, dezenas de guerreiros Kayapó liderados pelo cacique Raoni Metuktire foram a Brasília pressionar os congressistas a aprovar uma Constituição favorável aos povos indígenas e à proteção da Amazônia.
Bepdjo diz que a Carta ajudou a proteger as terras dos Kayapó. Até que, mais de 20 anos depois da aprovação, houve um racha na comunidade dele.
Ele conta que, em 2011, indígenas que queriam trabalhar com garimpeiros deixaram sua aldeia e atravessaram o rio Curuá para fundar outra comunidade na outra margem. A nova aldeia foi batizada de Kamaú.
Bepdjo diz que não quis ir para a nova aldeia porque tinha uma visão bem negativa do garimpo.
"Garimpo traz muita coisa ruim - tanto doença quanto indígena contra indígena, brigando por causa de garimpo. Um pega primeiro o dinheiro, o outro chega lá, não tem mais. Aí garimpeiro fala 'o outro já pegou'", ele conta ao podcast Brasil Partido.
Bepdjo lamentou quando houve a divisão da aldeia, mas diz que as duas partes continuaram convivendo.
Até que, em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, o racha se ampliou. A aldeia Kamaú deixou o Instituto Kabu, que assessorava os indígenas do território.
O Instituto Kabu é contrário ao garimpo e gerencia várias atividades econômicas nas aldeias, como o artesanato e a coleta de frutos da floresta.
Descontentes com a entidade, os líderes da aldeia Kamaú criaram uma nova organização para gerenciar suas atividades econômicas, a Associação Mantinó.
Nesse período, houve um crescimento do garimpo ilegal dentro do território.
Para Bepdjo, discursos e ações do governo Jair Bolsonaro estimularam a atividade.
'Vamos usar essa terra'
"Vocês têm terra, bastante terra. Vamos usar essa terra!", afirmou Bolsonaro, em abril de 2019, num encontro com indígenas no Palácio do Planalto.
"O garimpo é uma atividade que é legal também. Em alguns lugares, não é legal, tu legaliza. Meu pai foi garimpeiro, eu também, em parte da minha vida. Garimpei por esporte também, não só com bateia, bem como com jogo de peneira", prosseguiu o então presidente.
Bolsonaro se elegeu prometendo autorizar o garimpo em terras indígenas. Depois, quando assumiu o Planalto, ele mandou pro Congresso um projeto de lei pra regulamentar a atividade.
A proposta nunca chegou a ser votada pelos congressistas.
Mesmo assim, membros de várias comunidades indígenas dizem que simples o envio da proposta e os vários discursos de Bolsonaro a favor da regularização do garimpo em terras indígenas provocaram um aumento da atividade em muitos territórios.
Inclusive em parte dos territórios dos Kayapó.
Operação contra o garimpo
Diante do aumento do garimpo na Terra Indígena Baú, o cacique Bepdjo e outros líderes de sua aldeia organizaram em 2022 uma expedição pra encerrar a atividade - tarefa que, em tese, deveria ser realizada por órgãos de segurança do governo.
"A gente tirou 76 garimpeiros", diz Bepdjo.
A captura foi noticiada pela Polícia Federal. Em nota, a corporação disse que os garimpeiros trabalhavam em parceria com "dissidentes da aldeia Baú".
Mas Bepdjo diz que a ofensiva foi muito mal recebida pelos líderes da Kamaú.
Segundo ele, em represália pela expulsão dos garimpeiros, membros da aldeia Kamaú cortaram a eletricidade que abastecia a aldeia Baú. Isso foi possível porque os fios que levavam energia à aldeia Baú antes atravessavam a Kamaú.
Ele diz ainda que integrantes da aldeia Kamaú danificaram uma balsa que membros da aldeia Baú usavam para atravessar o rio.
Dois atos de sabotagem típicos de guerras, mas que ali eram usados num conflito entre parentes.
"Antes a gente caçava junto, pescava junto, dançava junto e morava junto na aldeia", diz Bepdjo. "Por causa de garimpo, nós não somos amigos mais."
'Responsabilidade é do governo'
A Associação Mantinó, que representa a aldeia Kamaú, contesta essa versão dos acontecimentos.
Adriano Amorim dos Santos, que não é indígena, mas trabalha como coordenador geral da associação, disse que a divergência com a aldeia Baú "não teve nada a ver com garimpo".
Adriano diz que sua associação nunca defendeu o garimpo e que a aldeia Kamaú foi criada porque seus fundadores queriam morar numa área de onde pudessem acessar mais facilmente as cidades vizinhas.
Ele disse também que os garimpeiros retirados do território em 2022 não tinham qualquer vínculo com os líderes da aldeia Kamaú.
"A área é de 1,5 milhão de hectares. Se o minerador entra lá dentro, é papel do governo combater esses mineradores", afirma.
Adriano diz que a Associação Mantinó só trabalha com atividades legais e hoje está envolvida em projetos de etnoturismo e créditos de carbono.
Mas Adriano diz que, de fato, membros da aldeia Kamaú cortaram a energia e danificaram a balsa da aldeia Baú. Ele afirma, no entanto, que o conflito ocorreu porque líderes da aldeia Baú impediram uma família da Kamaú de fundar outra aldeia no centro da terra indígena.
Adriano afirma que indígenas da Kamaú ficaram revoltados com a decisão e, por isso, cortaram a energia e danificaram a balsa da aldeia vizinha.
Ataques, incêndios e exílio
Se as aldeias Baú e Kamaú cortaram relações, houve comunidades indígenas que viveram conflitos ainda mais graves durante o governo Bolsonaro.
Doutoranda em Antropologia na Universidade de Brasília (UnB), Luísa Molina trabalha no Instituto Socioambiental (ISA) e pesquisa, desde 2013, o impacto do garimpo ilegal no povo indígena Munduruku, no Pará.
Luísa diz que o envolvimento de indígenas com a atividade na região sempre foi "de pessos específicas, pontuais".
Mas essa relação, diz ela, "explodiu e passou para um outro patamar mesmo, com uma outra escala de conflito e intensidade também, a partir de 2019", primeiro ano do governo Bolsonaro.
Luísa diz que, depois da posse de Bolsonaro, organizações criminosas envolvidas com o garimpo no território Munduruku adotaram uma nova estratégia.
Quando fechavam estradas da região para protestar a favor da atividade, eles passaram a "colocar os indígenas à frente", diz Luísa.
Um desses atos ocorreu em 2019, quando garimpeiros reivindicaram um encontro com autoridades do governo federal, em Brasília, e foram atendidos.
Luísa afirma que, quando o grupo foi recebido por ministros de Bolsonaro, o equilíbrio de forças na região mudou, e os garimpeiros se sentiram encorajados a expandir suas atividades.
De fato, dados do Inpe mostram um aumento de 259% no desmatamento dentro da Terra Indígena Munduruku entre 2018 e 2021. Ali, a principal causa de desmatamento é o garimpo.
Segundo Luísa, a postura do governo deixou vulneráveis indígenas munduruku contrários ao garimpo.
"Uma família inteira de uma liderança que é um dos ícones da resistência contra o garimpo ilegal teve que se exilar da terra indígena, a centenas de quilômetros de distância", afirma.
"Essa mesma liderança, um ano depois, teve a aldeia incendiada por garimpeiros", diz Luísa, que também cita a depredação da sede de uma organização Munduruku contrária ao garimpo e o ataque a um ônibus que levaria lideranças desse grupo a Brasília.
A BBC enviou ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e ao ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles (PL-SP), hoje deputado federal, pedidos de entrevistas com perguntas sobre as ações deles que, segundo pessoas entrevistadas no podcast, estimularam atividades ilegais dentro de terras indígenas.
Mas os dois não responderam.
Também houve pedidos de entrevista à Associação Indígena Pusuru, que representa indígenas Munduruku favoráveis ao garimpo. Não houve respostas.
Qual a solução?
Em janeiro, milhares de garimpeiros fugiram da Terra Indígena Yanomami depois que o governo Lula prometeu erradicar a atividade no território.
Mas dezenas de garimpos seguem ativos em outras terras indígenas - como nos territórios dos Munduruku.
Há inclusive a possibilidade de que os garimpeiros expulsos da terra yanomami migrem pra garimpos em outras áreas indígenas.
Como frear uma atividade que ganhou tanta força nos últimos anos num país de dimensões continentais?
"A gente não tem como evitar que esse assédio contínuo das comunidades por parte do crime ambiental seja feito se não houver fortalecimento das organizações indígenas de base e promoção de outras fontes de renda que sejam ligadas à economia da floresta", diz a antropóloga Luísa Molina.
Ela defende estímulos a atividades sustentáveis "que garantam para os indígenas um acesso à renda, que blindem as comunidades desse assédio predatório".
Reaproximação
As falas de Luísa indicam que há um longo caminho para que o garimpo em terras indígenas seja controlado.
Mas pode haver atalhos nesse caminho. Doto Takak Ire, homem kayapó que trabalha como Relações Públicas do Instituto Kabu, conta de uma ligação que recebeu em 2022.
Na época, ele estava organizando a ida de uma delegação Kayapó ao Acampamento Terra Livre (ATL), grande manifestação indígena que ocorre todos os anos em Brasília.
Doto diz que o autor da ligação também era Kayapó, mas pertencia a uma comunidade que passou as últimas décadas afastada do movimento indígena porque seus líderes decidiram se aliar a garimpeiros : a aldeia Gorotire, na Terra Indígena Kayapó.
Segundo Doto, o líder queria ajuda para levar membros de sua aldeia para a manifestação em Brasília.
"A gente conseguiu levar esse grupo para o nosso lado, porque faz anos, muitos anos, que a gente não se via. Os Gorotire ficavam isolados", afirma.
Doto diz que os Kayapó de Gorotire enviaram representantes para a manifestação indígena em Brasília em 2022 e agora dialogam com outras associações kayapó sobre alternativas ao garimpo.
"A gente precisa mostrar para eles que eles precisam largar mão disso. A intenção da gente é recuperar a área, está tudo detonado", conta.
Governo Lula
Pessoas que acompanham a reaproximação entre as comunidades - e pediram à BBC para não ser identificadas - disseram que a vitória de Lula na eleição de 2022 acelerou o processo.
Na campanha, Lula disse ser contrário à mineração em terras indígenas e, depois de eleito, em 31 de março, pediu ao Congresso que suspenda a tramitação do Projeto de Lei (PL) 191/2020, do governo Bolsonaro, que regulamenta a mineração e outras atividades econômicas nesses territórios.
No Congresso, no entanto, a proposta continua sendo apoiada por deputados e senadores - especialmente entre os que foram eleitos em Estados onde o garimpo ilegal alcança maior escala.
A adesão a essa bandeira, aliás, desafia lealdades partidárias: um dos políticos mais atuantes na defesa da regulamentação da mineração em terras indígenas é Sinésio Campos, deputado estadual no Amazonas pelo PT e presidente da sigla no Estado.
Em 2017, no governo Michel Temer, a BBC acompanhou uma renião na sede da Funai em que se debateu a mineração em terras indígenas.
Na ocasião, Sinésio usou argumentos semelhantes aos de Bolsonaro. "Enquanto não puderem explorar as riquezas de suas terras, os índios serão mendigos ricos", disse o petista.
Questionado pela BBC se mantinha a posição, o deputado não se manifestou até a publicação desta reportagem. O Diretório Nacional do PT também foi indagado sobre o tema, mas não se pronunciou.