Lisboa — Ser mulher brasileira em Portugal requer muita coragem. Se for negra, então, é preciso uma força descomunal para a sobrevivência. Todo o sistema está voltado para dificultar a vida delas — na saúde, na educação, no mercado de trabalho e no convívio social. Não por acaso, um grupo de ativistas aproveitou a passagem da primeira-dama do Brasil, Rosângela da Silva, a Janja, e da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, pela capital portuguesa para colocá-las a par da triste realidade. É assustador o número de mulheres que estão tendo os filhos retirados de seu convívio pelo simples fato de serem brasileiras e, sobretudo, pretas.
Na avaliação da antropóloga e ativista de direitos humanos, antirracista, Rita Cassia Silva, basta uma denúncia sem fundamento para que as autoridades portuguesas separem filhos de suas mães. “Isso, mesmo que a mulher venha sendo vítima de violência doméstica”, ressalta. “O sistema judicial de Portugal é patriarcal e conservador. Então, a posição dos homens quase sempre prevalece. O absurdo é tanto que, mesmo que o marido agrida sua mulher, em vez de o agressor sair de casa, é a vítima que é retirada do local em que vive, e as crianças, se houver, ainda ficam sob a guarda do homem ou levadas para instituições sociais”, relata.
Rita tem acompanhado vários casos desde 2016, mas diz que não é possível saber quantas crianças brasileiras estão afastadas de suas mães em Portugal, pois não há estatísticas oficiais. “O que temos presenciado é um quadro perverso de racismo, xenofobia, aporofobia (aversão a pobres) e misoginia”, diz. “A discriminação começa, muitas vezes, na maternidade, quando nasce filho de uma estrangeira, e se propaga por toda a vida dessa mulher e de seus filhos”, frisa. A situação é tão dramática que muitas vítimas têm medo de denunciar os crimes aos quais estão sendo submetidas, como a violência doméstica, pois não confiam nas instituições. Temem denunciar, porque correm o risco de serem transformadas em culpadas.
“No geral, quando há denúncias, elas nem são ouvidas. As decisões são tomadas sem que as vítimas possam falar”, acrescenta Evones Santos, assistente social e fundadora do Comitê Popular de Mulheres em Portugal. “Infelizmente, não há suporte para as mulheres que são mães. O que se vê é uma estrutura social em que a violência contra a mulher está normalizada, e aquelas que denunciam, se forem estrangeiras e brasileiras, principalmente, tendem a ser apontadas como responsáveis pelo que estão vivendo”, afirma. “Por isso, estamos pedindo ajuda ao governo brasileiro para que haja uma interlocução com as autoridades portuguesas de forma que a dignidade humana prevaleça, independentemente da cor ou do sexo”, diz.
Sem escapatória
Para ilustrar os descalabros enfrentados pelas mulheres brasileiras em Portugal, Rita relembra o caso de uma jovem que, mesmo apanhando constantemente do marido, teve o bebê retirado dela. “Mas vejam o absurdo: a mulher foi ao tribunal pedir a guarda da criança. Ao proferir a sentença, o juiz disse que não a conhecia, não sabia se ela era uma favelada ou uma empresária. Em relação ao marido dela, o magistrado assinalou que o conhecia havia mais de 20 anos”, detalha. A brasileira fez queixas contra o juiz junto à Ordem dos Advogados e a uma associação de magistrados. Nenhuma das instituições se manifestou. "Hoje, ela vê a criança a cada 15 dias e está com a conta bancária bloqueada para o pagamento de 8 mil euros (R$ 46 mil) em pensões alimentícias”, frisa a antropóloga.
Outro caso estarrecedor se passou com uma brasileira que vivia nos Açores, território português. Ela estava grávida e tinha uma filha de 1,5 ano. Vizinhos denunciaram que ela era vítima de violência doméstica, mas, na verdade, o marido tinha problemas de saúde. Imputaram a ela coisas que não fazia. Por fim, as autoridades locais retiraram a filha dela e ainda a ameaçaram de lhe tomar o bebê que esperava assim que nascesse. A pressão foi tamanha que o parto ocorreu bem antes do previsto. Rita conta que uma outra brasileira teve de retirar o filho da escola porque os funcionários queriam que ela desse calmante para o menino, porque ele era hiperativo. “Ela foi tão pressionada que pegou o filho e voltou para o Brasil, pois não suportou a forma como estava sendo tratada”, assinala. Não é só: brasileiras que perdem a guarda dos filhos e retornam ao Brasil ficam impedidas de voltar a Portugal. Ficam à espera de, um dia, os filhos, adultos, as procurarem.
Nem mesmo as mulheres portuguesas escapam desse contexto de misoginia e machismo. A antropóloga lembra de um fato de 2016 envolvendo Ana Vilma Maximiano, funcionária pública que teve as três filhas retiradas de seus cuidados pela assistência social portuguesa (ISS). Os abusos cometidos foram tantos que as assistentes sociais que levaram à separação da família estão sendo julgadas pela Justiça. “Esta é a primeira vez que pessoas são responsabilizadas por escreverem relatórios sem fatos comprovados. Ana Vilma era vítima de violência doméstica, havia sofrido traumatismo craniano. Duas das meninas foram entregues para o pai agressor e a outra, para o pai que não era presente na vida da filha”, ressalta Rita.
"Neste caso, houve clara discriminação de gênero, pela mulher ter tido filhos em duas relações”, enfatiza.
Seis anos depois, Ana Vilma conseguiu recuperar a guarda das três filhas e, agora, pede uma indenização de 600 mil euros (R$ 3,4 milhões) ao Estado português. Ela conseguiu provar que as assistentes sociais que a acusaram de maltratar as filhas nunca haviam presenciado nenhum ato de violência contra as crianças. A vitória da cidadã portuguesa, porém, em nada muda a situação de vulnerabilidade e de constrangimento em que vivem as brasileiras em Portugal, acredita Evones Santos. “Não há nenhum suporte para boa parte das mulheres estrangeiras, em especial, brasileiras e africanas. Elas enfrentam um processo doloroso para criar os filhos, sempre sob a ameaça de ter as crianças retiradas do convívio delas”, afirma.
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