"Dizem que a mulher é o sexo frágil, mas que mentira absurda" cantava Erasmo Carlos, em composição musical de 1981. A ideia de que há uma fragilidade inerente à figura feminina esteve presente no imaginário social durante muito tempo e ainda hoje impera em nossa sociedade. Segundo especialistas, a máxima serve para reforçar o patriarcado, pois sugere a necessidade de submissão aos homens. Entretanto, uma pesquisa norte-americana rebateu o senso comum ao revelar que as mulheres foram mais capazes de sobreviver a eventos extremos ao longo da história.
O estudo, desenvolvido na Universidade Duke, nos Estados Unidos, e publicado em 2017, mostrou que as mulheres sobreviveram entre 6 meses a 4 anos a mais do que homens durante momentos históricos em que enfrentaram altos níveis de mortalidade, como em epidemias, fome e escravidão.
Os pesquisadores destacaram que a testosterona, principal hormônio masculino, aumenta a chance dos homens se envolverem em condições perigosas e que podem levar à morte. Por outro lado, o estrogênio, principal hormônio feminino, está ligado a ações anti-inflamatórias e na proteção de vasos sanguíneos. Outro fator que pode explicar a maior expectativa de vida das mulheres em relação aos homens é a incidência de comportamentos de risco.
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"Os homens consomem tabaco, álcool e substâncias psicoativas em maiores quantidades, dirigem com menos segurança e comem menos saudavelmente do que as mulheres", pontua a pesquisa. Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, a expectativa de vida da população masculina chegou a 72,2 anos e a feminina atingiu 79,3.
Já foi comprovado cientificamente que as mulheres suportam mais dores físicas do que os homens. Um estudo publicado pela revista Science Translational Medicine, da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS, na sigla em inglês), em 2020, apontou que o hormônio prolactina pode ser um dos responsáveis pela maior incidência de incômodos no corpo feminino. Entre as dores mais fortes sentidas estão a dor do parto, endometriose e fibromialgia (cerca de 8 vezes maior do que em homens, segundo estudo da OMS). Enxaqueca e cólicas menstruais também figuram entre as maiores fontes de mal-estar feminino.
Ano passado, Dominique Truan, ginecologista obstetra da Universidade do Chile, disse à AFP que, embora "nunca se possa medir dores em unidades", a dor do parto "é considerada na medicina como 'alta', assim como um cálculo renal, muito intensa." (A afirmação foi feita quando uma fake news sobre partos surgiu na internet).
Construção social do corpo
A professora da Universidade de Brasília, e especialista em saúde da mulher, Patrícia Rezende, também pontua que os homens costumam ser, em média, 7% mais altos do que as mulheres e, consequentemente, os órgãos também são maiores. No entanto, ela explica que, apesar das diferenças anatômicas entre os corpos, a ideia de que existe uma fragilidade inata às mulheres é fruto de uma construção social inserida dentro da lógica de relação de poder.
"Apesar de haver diferenças, comportamentos, símbolos, características de personalidade se desenvolvem, se constroem ao longo da nossa história, da nossa trajetória e não devido à biologia pura e simplesmente. Essa ideia é prejudicial às mulheres nos mais diversos aspectos. Nos coloca em posição de subalternidade; deslegimita nossa fala, nossos conhecimentos, nossas opiniões", comenta Rezende.
Além de marcar os espaços de poder, geralmente ocupados por homens, essa ideia também impacta na saúde das mulheres. "Mulheres são mais medicalizadas, são violentadas sistematicamente, são mortas por parceiros, por ação e omissão do Estado, são alvo de várias intervenções médicas compulsoriamente", cita a especialista.
"São mães que vivem na batalha pra criar e sustentar seus filhos, muitas vezes sozinhas, muitas perdem seus filhos de forma bárbara e não lhes é permitido sequer viver o luto com dignidade. Muitas são violentadas, vitimas de diversos tipos de abuso e agressões (física, sexual, psicológica), violência obstétrica".
Para Bruna Camilo, cientista política e doutoranda em ciências sociais, o mito de que a "mulher é sexo frágil" serve para atribuir características negativas às mulheres. "Mesmo que tenhamos avançado com os direitos femininos, isso ainda é muito forte. Principalmente na ideia de que a mulher é um ser irracional e que o homem é o assertivo e consegue estar em espaços públicos porque tem controle emocional".
"Essa maneira de enxergar a mulher é uma forma de reproduzir discursos misóginos", ressalta a pesquisadora, que ainda destaca alguns adjetivos pejorativos, que foram atribuídos às mulheres ao longo do tempo: "submissa, histérica, descontrolada e irracional".
Fortes no físico
Nas artes marciais, a noção de fragilidade física feminina fica cada vez mais ultrapassada. No judô, por exemplo, apesar de ainda ser dominado por homens, as mulheres se destacam no tatame. A técnica e ex-atleta profissional de judô, Erika Miranda, conta que, apesar das diferenças biológicas, homens e mulheres treinam juntos.
A rotina no esporte, como atleta de alto rendimento, era quase que integralmente dedicada ao judô, com treinos diários durante a manhã, tarde e noite. Erika afirma que nunca sofreu preconceitos diretamente, mas que já ouviu piadas de homens em relação à presença feminina na arte marcial.
Na perspectiva da técnica, as atletas acabam sendo mais focadas e competitivas nas lutas. "Durante toda história, nós mulheres fomos menosprezadas e levadas a pensar que realmente éramos 'frágeis'. Mulher é o ser mais incrível e forte que existe", declara.
Fortes na vida
Cerca de 48% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres, de acordo com o IBGE. Essas chefes de família costumam viver duplas, e até triplas, jornadas diárias. Lidam com as tarefas do trabalho, criação dos filhos, com a manutenção da casa. É o caso de Taiane Sampaio, mãe solo e assistente de atendimento do Hospital Oftalmológico de Brasília. Para ela, a sentença "mulher é sexo frágil" pode ser facilmente rebatida.
Morando longe do trabalho, Taiane sai de casa às 5h30, de segunda a sexta-feira, e volta somente às 20h. "Quando chego, tenho que dar atenção para minha filha de 3 anos, fazer comida e deixar a mochila dela pronta para o outro dia. No final de semana, que é minha folga, faço as coisa de casa, faço faxina, lavo roupa", comenta.
Essa rotina se repete todos os dias e é o retrato do cotidiano de diversas mulheres do país. Como rede de apoio, Sampaio conta com a ajuda da irmã. "Fui 'abandonada' grávida e mesmo assim até hoje consigo cuidar e criar minha filha sozinha. Com muita dificuldade, muito cansaço, muita luta, mas sigo firme, sendo forte", ressalta.
Resistir é ser quem se é
Para a especialista em diversidade e inclusão, Sônia Lesse, a ideia de que a mulher é frágil contribui para o fortalecimento de estereótipos impostos à figura feminina. Segundo ela, as mulheres que não se encaixam nos padrões estabelecidos socialmente são excluídas ou correm riscos de vida.
"Quando falamos da sobreposição de vulnerabilidade, pensando nos marcadores da diferença, mulheres negras, trans ou com deficiência sofrem um impacto diferente. Tudo isso tem a ideia central de controlar corpos femininos", avalia a também diretora de experiências na Profissas - Escola da Diversidade.
A especialista lembra que as leis que garantem autonomia feminina sobre seus próprios corpos ainda são recentes. Até ano passado, por exemplo, as mulheres só tinham acesso à laqueadura, um processo invasivo ao corpo feminino, com autorização do parceiro — o que ilustra o ideal machista de que a figura feminina deve ser subserviente ao homem. "Essa construção social é muito injusta, isso faz com que muitas mulheres desistam no meio do caminho", diz.
Como mulher negra e gorda, que cresceu em Embu das Artes, na Região Metropolitana de São Paulo, Lesse conta que enfrentou muitos desafios para romper com a ideia de que as mulheres são frágeis, e também passou por múltiplas situações de violência relacionadas a características de seu corpo, como racismo, sexismo e gordofobia.
"Foram várias violências sobrepostas que me fizeram em vários momentos pensar em desistir. Meu caminho de superação se deu pela educação. Eu queria pensar e construir metodologias para que eu pudesse apoiar pessoas que se parecem comigo, para que tenham um caminho mais leve e serem quem elas são", diz a especialista.
Por ocupar uma posição de liderança, Sônia relata que é alvo de constantes questionamentos e tentativas de invalidação. "Uma mulher se comunicar bem é esperado, mas não uma mulher negra. Nada me foi dado na minha trajetória de vida, tudo foi conquistado e construído com ajuda de muitas mulheres que me apoiaram. Enfrentar isso todos os dias ainda é uma grande questão para mim, mas lido bem porque sei que faço para ser quem eu sou e para apoiar outras mulheres também", pontua.
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