Com o Dia Internacional da Mulher, que será comemorado na próxima quarta-feira, o mês de março se tornou uma oportunidade para o governo mostrar efetivamente as ações que irá tomar para enfrentar a violência contra as mulheres. Conforme mostrou o último levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na semana passada — Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil —, todos os tipos de agressão contra a a população feminina aumentaram no país em 2022.
Em entrevista ao Correio, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, adiantou que, na data comemorativa, será lançado um pacto nacional de enfrentamento ao feminicídio, formado por um conjunto de ações para combater o problema. Além disso, ela defendeu um trabalho de abertura de diálogo com a sociedade com vistas a alcançar uma mudança de postura das pessoas e autoridades em relação à violência, e a real tipificação desse crime.
"Temos que acabar com o apadrinhamento (dos homens). Não significa proteção individual, mas você tem um Estado que termina sempre autorizando e justificando o agressor", declarou. "Estamos negociando (ações) primeiro por dentro do governo. Há mais ou menos 60 dias estamos pactuando nos ministérios as diversas ações para que, a partir daí, comecemos a fazer as negociações com governadores e prefeitos", explicou a ministra. Confira os principais pontos da entrevista.
O Fórum de Segurança Pública mostrou aumento de todos os tipos de violência contra a mulher. Sabemos que é um problema de longa data, mas por que estamos vendo esses índices enormes hoje em dia?
Os números estão altos por alguns fatores. Um, a gente está vivendo em um país em que aumentou a intolerância. Dois, a questão do ódio que está repercutindo na sociedade é um ódio muito forte e isso vai recair sob as mulheres. Três, estamos vivendo um período de misoginia. Eu sei que misoginia é a questão do ódio, mas ela está muito vinculada ao fato de que as pessoas estão com muita raiva de quem tem lugar de fala, de quem está na luta, de quem tem condições e, principalmente, as mulheres. Então, eu acho que esses fatores, juntos, terminam por aumentar o índice de violência no país.
Poderíamos dizer que também há um fundo de exposição que contribui, por antes ser um assunto mais velado?
Pode até ser que tenha esse fundo, mas nós não podemos comprovar, porque, nos últimos seis anos, houve muito pouco investimento efetivo em políticas públicas que eliminassem a violência contra as mulheres. Acho que esse é um ponto, porque o aumento da denúncia ele vem quando as mulheres confiam efetivamente no Estado. E os próprios dados do Fórum de Segurança Pública mostram que as mulheres acreditam muito mais na mãe, na família, nos amigos que nos serviços do Estado brasileiro.
Um estudo do Instituto Patrícia Galvão diz que 85% dos homens sabem que estão praticando uma violência contra as mulheres, mas não acham que vão ser punidos. Como combater esse pensamento de impunidade?
Primeiro, temos que acabar com o apadrinhamento. Não significa proteção individual, mas você tem um Estado que termina sempre autorizando e justificando o agressor. É quando a mulher vai a uma delegacia e os profissionais perguntam: "Tem certeza? Seu marido vai pra cadeia". É uma mentira, não vai. O agressor só vai preso em dois casos: flagrante ou descumprimento da medida protetiva. Então, tem que parar com isso, porque é um incentivo para as mulheres não denunciarem. Esse é um primeiro grande desafio que vamos ter que enfrentar efetivamente.
Segundo, temos que trabalhar a tipificação dos crimes de violência doméstica. Na maioria das vezes, se coloca como uma lesão grave e não como uma tentativa de feminicídio. Esses elementos é que vão garantir a impunidade. O agressor sabe que, quando a mulher chega lá, o próprio Estado vai dizer: "Não denuncie". E os dados, na maioria das vezes, são encobertos, porque se coloca assassinato de mulheres e não se tipifica como feminicídio.
Como combater as violências sutis e que indicam o início do ciclo, como a psicológica, por exemplo? E, principalmente, como instruir as instituições para atender as mulheres?
Temos o desafio que é da sociedade. Precisamos estabelecer no país uma cultura de respeito e de solidariedade com as mulheres. A gente já tinha voltado que em briga de marido e mulher se mete a colher. Retrocedemos um pouco nesses últimos anos. A sociedade precisa começar a se envolver e se posicionar em todas as formas de violência. Você ver alguém chamando uma mulher de burra, de gorda, de feia, ou uma piada, a sociedade precisa se posicionar, dizer que isso não dá e que, segundo a lei Maria da Penha, é crime. Eu acho que isso nós precisamos estabelecer como um critério, um parâmetro para ajudar a enfrentar a violência contra as mulheres.
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Qual seria o papel do Estado brasileiro nesse problema?
O Estado tem um papel estratégico e fundamental. Os poderes executivos federal, estadual e municipal, o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública têm que garantir a implementação da Lei Maria da Penha e julgamento justo para as mulheres. Na questão da violência sexual, nós temos protocolos, temos vários encaminhamentos que também podem ser feitos. Então, precisamos que o Estado faça, primeiro, a implementação da lei Maria da Penha, investigação e o julgamento, combata a impunidade, para que não aconteça o feminicídio. E que execute os protocolos de atendimento às vítimas de violência sexual.
Por que as políticas existentes não estão tendo um nível eficiente? Estão erradas?
Não estão erradas não, o problema das políticas (de combate à violência contra a mulher) é que elas não estão dando conta. Se você for ver o relatório do Fórum, cerca de 21% das mulheres procuram as delegacias especializadas. O problema é que elas existem em menos de 10% dos municípios brasileiros. Então, se nós temos 5.600 municípios no país, são 500 que têm delegacia especializada. Ou seja, nós temos uma grande parcela da população que não tem o serviço. Se você pegar as Casas da Mulher Brasileira, nós temos 11 municípios com o serviço. Se você for pegar os Centros Especializados, são menos de 6% dos municípios com esses locais para atender as mulheres. Então, na verdade, não são oferecidos serviços para que essas mulheres possam buscar o atendimento. Para mim, essa é a grande questão, o vácuo que está colocado. Temos a melhor lei do mundo, que é a lei Maria da Penha, temos a lei do feminicídio. Agora, nós precisamos implementar. Precisam ser instaurados mais juizados, mais promotorias públicas da mulher, mais defensorias, mais serviços para que as mulheres possam buscar ajuda.
Como podemos pensar diferente dentro do que já tem sido feito em termos de políticas públicas? Poderia citar exemplos?
Acho que a gente precisa de uma reeducação da população. Quando falo isso, me refiro à sociedade e às instituições. Precisamos reorganizá-las, bem como as relações sociais estabelecidas, para ter outros parâmetros, para que a violência não seja o principal, mas outros, como o respeito, a solidariedade, a valorização. Para isso, precisamos investir numa mudança de valores e comportamentos, porque, sem mudar isso na sociedade, não vamos conseguir muita coisa. Nós precisamos estabelecer novos diálogos, precisamos que a imprensa e outras instituições nos ajudem a enfrentar, por exemplo, a questão da misoginia. O lugar de fala das mulheres está ameaçado. Precisamos que as igrejas se envolvam e ter um movimento na sociedade e no Estado de repensar também uma forma de comunicação com as pessoas que não tem muito acesso a informação.
A desinformação também é um problema para as mulheres vítimas de violência?
Sempre é falado que o grande desafio das mulheres para saírem da situação de violência é a falta de autonomia econômica. É verdade, não estou negando isso, mas tem a questão da relação afetiva. Não é só a dependência financeira, é a dependência afetiva, junto a outra questão, que é a falta de informação. Às vezes, ela não sai de casa, não sai da relação de violência porque tem medo de perder a casa, de perder a guarda dos filhos, porque não conhece seus direitos. Então, precisamos pensar de forma diferente. Temos de começar a pensar como é, de fato, que a maioria das mulheres vive, e que tipo de conhecimento elas têm para, aí sim, mudar a realidade do Brasil.
Como enfrentar uma dependência emocional para quebrar um ciclo de violência? O que o Estado pode fazer?
Vamos enfrentar na medida em que cada vez mais as mulheres se conscientizam dos seus direitos, da questão que ela está colocada. A mulher precisa se sentir apoiada, precisa saber que vai ter outro lugar de segurança na sociedade. A dependência afetiva se dá porque ela acredita que ama, às vezes até ama, mas não tem força suficiente para sair disso. Essa força vai vir do apoio da família, dos amigos, da sociedade ou dos serviços especializados, para que ela possa romper esse ciclo da dependência afetiva. Porque, mesmo que ela ame, a hora em que vencer a dependência afetiva, pode estabelecer um novo tipo de relação com o próprio parceiro que ela diz que ama, mas é ela que vai ter que dizer não para a questão da violência. Ela que vai ter que colocar limite nessa nesse nível de relação.
Quais são as prioridades do Ministério das Mulheres para enfrentar o cenário de combate à violência contra a mulher?
A prioridade é capilarizar o serviço de atendimento às mulheres, estabelecer um pacto nacional de enfrentamento ao feminicídio, que são algumas das ações que vão ser anunciadas no dia 8, e reestruturar o serviço do 180 para ele volte a prestar informação e orientação paras mulheres e não seja só um disque-denúncia. O presidente Lula pediu aos ministros que não fiquem no gabinete e percorram o país. Essa é uma missão minha e de todos os ministros, garantindo as informações, trabalhando, rediscutindo, negociando com o governador, com o prefeito a implantação de serviços. É a discussão da educação, como é que vamos trabalhar por dentro. Não é educação pura e simplesmente formal, mas também a que deve acontecer na sociedade brasileira.
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