Jornal Correio Braziliense

TRAGÉDIA

Confira histórias de pessoas que ajudaram no socorro no litoral de São Paulo

O Correio conversou com moradores da Vila Sahy. Embora todo o sofrimento com as perdas, eles também falaram sobre o "milagre" de estarem vivos

A tragédia na Vila do Sahy, localidade mais atingida pelas chuvas recorde que atingiram São Sebastião e todo o litoral norte paulista há uma semana, não pode ser contada apenas por números. É uma história repleta de rostos, vidas perdidas e o desafio da reconstrução.

Embora as chuvas não sejam uma novidade para o período, o volume recorde, somado à falta de investimentos em moradias fora das áreas de risco, assim como em sistemas eficazes de prevenção, dão um tom ainda mais dramático ao cenário.

O Correio conversou com moradores da Vila Sahy. Embora todo o sofrimento com as perdas, eles também falaram sobre o "milagre" de estarem vivos, conforme relatou a cabeleireira Christiane Santos, que afirma que "nasceu de novo". Acompanhe os relatos de três moradores sobre a madrugada e manhã do último domingo (19).

Cristiane Santana

Arquivo Pessoal - Cristiane Santana ajudou nos socorros

A cabelereira Cristiane Santana dos Santos, 35 anos, é moradora da Vila do Sahy, em São Sebastião, há 12 anos. Natural da Bahia, define a noite de sábado, 18 de fevereiro, como a mais perturbadora da sua vida. "Sou moradora da Vila Sahy, na rua principal, onde as casas foram desabando e começamos a ver as primeiras vítimas sendo socorridas. Uma moça entrou na minha casa toda ensanguentada. Às 5h40 da manhã foi a hora que conseguimos sair de casa e foi uma tristeza total", conta.

Cristiane relembra, com precisão, o terror, que diz não conseguir tirar da mente. "Às 23h30 do sábado eu estava no salão, ainda trabalhando, quando começaram as fortes chuvas e não conseguia descer. O esposo de uma das meninas que estava trabalhando comigo subiu e ajudou a gente passar pela correnteza", recorda. "Às 0h17, a chuva começou a ficar muito forte e foi aquela correria, mas os barulhos de desabamentos começaram por volta das 2h20 da manhã."

Cristiane mora em um ponto alto da Vila do Sahy e decidiu socorrer as pessoas que deixavam suas casas. Com uma escada, as trazia para pontos um pouco mais seguros. "Eu ainda estou muito em choque. Eu não me machuquei, mas como ajudei muitas pessoas, estou sentindo muitas dores, mas a maior dor é a da mente, que eu não consigo desligar de ver os corpos passando", confessa. "Perdi minhas clientes. Eu perdi uma família com mãe, avó, filha e esposo, todos meus clientes."

Cristiane conta que presenciou uma vítima sendo resgatada, já sem vida, de uma das casas soterradas. Uma mulher, com o rosto ensanguentado, a abordou pedindo ajuda desesperadamente. Sua filha e mãe estavam debaixo de escombros.

Na tentativa de minimizar os impactos, diversos patrões cederam abrigos aos funcionários sobreviventes. Como Cristiane explicou, os moradores da Vila Sahy são, em grande parte, empregados domésticos ou trabalham em bares e restaurantes. O marido da Cristiane é vendedor ambulante e não estava em casa naquele momento. Eles só conseguiram se reunir novamente na última quinta, três dias após a tragédia, na casa cedida pelo patrão da mãe da cabeleireira.

Tiago Marques

Arquivo Pessoal - Tiago Marques foi a ponte de informações

Morando um pouco mais afastado da encosta, o técnico em eletrônica e segurança Tiago Marques, 37 anos, casado com Manuela Cerqueira, 34, vive na Vila Sahy há mais de duas décadas. Os baianos só souberam da tragédia quando Manuel, 54, pai de Manuela, acordou o casal antes das sete horas da manhã daquele domingo. "Até então, como lá em casa não entrou água, eu não tinha notado que era tão grave a situação", disse.

O sogro de Tiago pedia ajuda para socorrer um vizinho que estava com uma fratura exposta na perna. O homem foi transportado em uma cadeira por Tiago e outros vizinhos, que se esforçaram para vencer o barro e levá-lo até uma região seca. Em choque, a esposa da vítima também foi amparada pela comunidade. "Eu ajudei a colocar o vizinho na caçamba de uma caminhonete, mas a esposa dele estava em choque", disse o técnico.

Passado o primeiro susto, Tiago percebeu que, além da energia elétrica cortada, todos os sinais de celular estavam mudos, mas o técnico, usando seus conhecimentos, fez uma adaptação. Com o auxílio da bateria de uma parafusadeira, conseguiu ligar o modem e conectar a internet.

"Eu fiquei fazendo uma ponte. Comecei a olhar no grupo de WhatsApp, tinha muita gente pedindo para encontrar os parentes, aí eu ia no Verdescola (ONG da região que serviu de abrigo e centro de atendimento para os moradores), olhava quem estava por lá e depois voltava para casa para repassar as informações", lembra Tiago, que acredita que foi a primeira comunicação após a tragédia.

Ele recorda que passou todo o domingo procurando vizinhos e informando aos familiares. "Enquanto eu estava fazendo a ponte, a minha mulher foi para o ginásio ajudar no atendimento aos feridos. Quem fez o primeiro atendimento foi a comunidade, não teve bombeiro, os médicos chegaram às 15h", conta.

Bruna Souto

Arquivo Pessoal - Bruna Souto destaca união dos moradores

A massoterapeuta Bruna Souto, 23 anos, é caiçara de São Sebastião. Moradora da Vila do Sahy, vive com a mãe, o padrasto e a irmã. Não chegou a ouvir ou ver os deslizamentos.

Ao saber o tamanho da tragédia, se voluntariou no Instituto Verdescola, organização nãogovernamental que atua na região. "A gente ficou ajudando o pessoal na parte da alimentação, era o que estava mais corrido naquele dia. Muita gente desabrigada, o pessoal estava todo concentrado lá. Tinha muita gente ferida, todos estavam sendo levados para lá", relembra.

Inicialmente, de acordo com Bruna, o resgate ainda não havia chegado. "Estávamos nos virando assim: tinham enfermeiros do local e muitos carros que paravam na frente da escola pra ver o que havia acontecido, eram médicos de São Paulo. Os médicos estavam indo olhar e acabavam ficando por lá. Foi isso que ajudou bastante", revela.

A tragédia foi um baque inesperado, aponta a massoterapeuta. "A gente não espera que aconteça, sempre é em outras cidades, mas a gente não imagina que vai acontecer na nossa. Então, foi um baque muito grande. É preciso ter um psicológico bem forte para ver certas coisas."

"Quando eu cheguei à escola, as pessoas (mortas) ainda estavam sendo colocadas lá, junto às pessoas [que esperavam] para serem atendidas. Cheguei a ver tudo isso no primeiro dia", lembra.

Áreas com casas mais seguras para alugar são mais caras e as pessoas não se sentem confortáveis de permanecer na Vila. Para Bruna, será necessária muita união entre os moradores da comunidade para que a vida volte ao normal, principalmente porque muitos não terão para onde voltar.

"Agora, a gente precisa de união para conseguir ter uma vida normal. Metade da vila não vai poder voltar. Eu acho que, mais ou menos, umas 300 famílias", finaliza.

Arquivo Pessoal - Cristiane Santana ajudou nos socorros
Arquivo Pessoal - Tiago Marques foi a ponte de informações
Arquivo Pessoal - Bruna Souto destaca união dos moradores