A crise humanitária no Território Indígena (TI) Yanomami, decorrente da invasão de garimpeiros no local repete cenário semelhante ao ocorrido em 1992, no governo de Fernando Collor de Mello. Na época, foram pouco mais de 40 mil garimpeiros que a atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) expulsou, em uma megaoperação intitulada Operação Selva Livre, encabeçada pelo ex-presidente do órgão, Sydney Possuelo. Em seguida, a TI foi demarcada.
Segundo o indigenista, a ação contou apenas com os servidores e a Polícia Federal (PF), apoiados por um búfalo, um tipo de aeronave, e dois helicópteros da Aeronáutica — com os custos arcados pela organização. "Fomos nós que fizemos acordo e pagamos eles. Então, de verdade, como uma ação de organizações do governo, foi a Polícia Federal e a Funai", detalhou.
Ações sincronizadas de fechamento do espaço aéreo, controle de gasolina vendida para aeronaves e logística operacional para destruir equipamentos usados no garimpo fizeram com que a Funai conseguisse ter êxito na operação e expulsar os garimpeiros. Hoje, Possuelo afirma que o motivo para a situação dos ianomâmis chegar a essa crise foi a falta de monitoramento permanente da TI. Confira a entrevista.
O que foi utilizado na operação da expulsão dos garimpeiros em 1992?
Eu tinha, como presidente da Funai, sete aeronaves, sete aviões. Levei tudo lá pra cima, mandei tudo pra Roraima, para a gente usar na operação de limpeza. Tivemos um búfalo da Força Aérea e dois helicópteros da Força Aérea. Muitos saem pelo rio, ou saem pela floresta, e outros foram levados de aeronaves por nós. Foi uma retirada rápida. Mas foi difícil tirar todos esses garimpeiros.
Os militares participaram ativamente?
A atuação foi feita entre nós e a Polícia Federal, não teve um policial de outra área, nem do Exército, nem da Marinha, nem da Aeronáutica. A PF fez um trabalho incrível. Fechamos a entrada pelo rio, tínhamos aeronave para botar os caras para fora. Nós pagamos as horas voadas do Búfalo. Então, não foi uma participação deles, fomos nós que fizemos acordo e pagamos eles. Então, de verdade, como uma ação de organizações do governo, foi a Polícia Federal e a Funai. Foram essas duas que botaram para fora.
Como foi a conversa governamental na época?
Tive um embate com o ministro do Exército, na presença do presidente da República [à época Fernando Collor]. Ele veio avisando dos perigos, por ser uma área de segurança nacional, por estar a 100 km da faixa de fronteira para dentro do território, disse que é uma área distante. Quando o estado reconhece que essas terras são habitadas por indígenas, aí passa a fazer parte do patrimônio da União e o Estado manda os seus agentes por meio da Funai e outros agentes da sociedade nacional da saúde, da educação que estarão presentes.
Por que manter uma vigilância permanente na TI?
Com uma vigilância permanente é constatado o início de uma invasão, aí, sim, entra com um dispositivo policial, antes que se transforme em milhares de pessoas. Entra uma equipe de 10, 12 ou 15 pessoas para parar. É mais fácil, controlado e econômico proceder dessa forma. Não precisa ter agentes, tem a Funai e ela tem poder de polícia. A lei que criou a Funai concede poder de polícia dentro das terras indígenas, exatamente para coibir o invasor.
Como seria esse poder de polícia? Os funcionários poderiam andar armados, por exemplo?
Apesar de a Funai ter poder de polícia nas terras indígenas, até hoje, por exemplo, não foi regulamentado esse poder. Por não ter sido regulamentado, os servidores da Funai, que estão em campo, dentro da selva, não podem levar uma arma. Então, você vai entrar em dissidência, em confronto com um monte de gente armada e você não tem uma só arma para se defender. Faz um tempo que regulamentaram a ação do Ibama, eles são treinados e têm porte de arma. A mesma coisa deveriam fazer com os agentes da Funai para portarem arma nessas missões. Porque se não, o invasor sabe que você não tem, que você está fraco, você não possui uma forma de se defender e isso dá força [aos criminosos]. Tem que aproveitar para regulamentar agora, que o presidente Lula está com boa vontade em relação à causa indígena.
Qual o papel dos militares naquela região e nesta operação que acontece agora?
Eu acho que eles podem fazer o que quiserem. Estão fazendo o mínimo de obrigação que eles têm com os povos indígenas. Independentemente da política de [Jair] Bolsonaro, eles deveriam dar assistência aos povos indígenas. O Exército diz que dentro de 30 dias vai apresentar um plano de atuação na área de ianomâmi. Daqui a 30 dias não vai mais ter garimpeiro lá, porque eles já começaram a sair. A Operação Selva Livre, para a retirada dos garimpeiros, que eu e a PF demos, mal anunciamos isso muitos já foram embora. Você não precisa reunir Exército, Marinha e Aeronáutica, fazer um conselho e, em 30 dias, decidir. Decidir o quê? Esses homens são preparados para luta, é pegá-los e colocar lá e fazer o resto dos garimpeiros que vão ficar, irem para as pistas e se entregarem. É uma decisão política.
Como a mudança da Política Nacional de contato com os indígenas isolados fez com que invasores se distanciassem das terras indígenas? E como eles retornaram para o território?
Fazendo essa política (de Rondon) descobri que era totalmente incorreto isso. Esse contato vem com uma carga tão grande de um novo conhecimento que massacra os índios, então a melhor coisa que se pode fazer é não fazer mais o contato, delimitar, demarcar a terra, vigiar e monitorar. Então, criei um departamento de índios isolados [na Funai], fiz as frentes de proteção etnoambiental, que deveriam monitorar para não deixar o invasor vir. Tudo que faltou, por exemplo, nos ianomâmis, da época que eu botei os primeiros 40 a 42 mil garimpeiros para fora da terra, foi uma continuidade de vigilância, de observação, que não permitisse a entrada desses homens novamente. Isso faltou, por isso voltaram.
Isso é decisão política?
Sempre é uma decisão política. Viemos de um governo em que a decisão política era acabar com a Funai, com os índios e com o meio ambiente. E conseguiu fazer isso em larga escala no país de uma forma horrível. Estamos falando só de Yanomami porque veio à tona agora, mas tem muitas situações nas terras indígena que tem garimpo, que o rio está contaminado de mercúrio, que tem problema de saúde. Yanomami tomou essa dimensão pela tragédia que foi criada ali. Pelo fato deles gritarem e gritarem e ninguém socorrer durante os quatro anos.
A falta de cuidado no contato com os indígenas acabou gerando essa tragédia?
A classificação na lei, aprovada pelo Congresso Nacional, é que existem três tipos de índios: o isolado, que é esse que eu falo, que não se conhece quase nada, não tem a presença próxima do branco e eles, de um modo geral, não mantêm relacionamento com outras etnias. Outra classificação é índio de contato intermitente, que é tipo o ianomâmis, os kaiapós, os xavantes, que vem até a cidade para tratar dos seus interesses, se movimentam entre os dois mundos. O terceiro grupo é o índio chamado integrado à sociedade nacional. Mas eu não conheço nenhuma comunidade indígena no país que tenha sido integrada. Eles foram sempre escanteados, nunca foram aceitos. Desde o descobrimento não são integrados, são separados. Tem as falas que "índio é vagabundo", "índio não presta", "índio não trabalha", essas besteiras que quem não gosta de indígenas ou não respeitam esses povos reforçam essa ideia. Na verdade, o que está por trás de tudo isso é a vontade de ter a terra dele.
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