Na posse de Aloízio Mercadante no BNDES, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, queixando-se de uma suposta difamação contra o banco, afirmou que "nós vivemos um momento no Brasil em que as narrativas, mesmo que mentirosas, valem mais do que muitas verdades ditas muitas vezes". Será que é apenas um momento ou um aperfeiçoamento de séculos? A primeira página do Correio da Manhã, de 9 de março de 1919, está toda ocupada por um discurso de Ruy Barbosa, em que há um trecho dedicado às verdades e mentiras.
Ruy afirmou que há mentira em toda a parte: nos programas, nos projetos, nas reformas, nas convicções, nas soluções. "Mentira nos homens, nos atos e nas cousas. Mentira no rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Mentira nos partidos, nas coligações, nos blocos."
E segue, discursando na Associação Comercial do Rio de Janeiro: "Há mentira nas instituições, nas eleições, nas apurações, nas mensagens, nos relatórios, nos inquéritos… mentira nos desmentidos. Uma impregnação tal das consciências pela mentira, que se acaba por não discernir a mentira da verdade, que os contaminados acabam por mentir a si mesmos, e os indenes (íntegros), ao cabo, muitas vezes não sabem se estão ou não mentindo."
Não é que Ruy esteja atual como Lula. É que desse discurso de 1919 até hoje, nós continuamos convivendo com esse tipo de cultura, como cúmplices já que só nós, eleitores, somos capazes de mudar essa situação, pelo voto e pela cobrança de nossos mandatários.
Passaram-se 104 anos desde esse desabafo do nosso mais ilustre jurista. A gente relê o que o jornal da época publicou e descobre, assustado, que está no jornal de ontem, com palavras do presidente da República. E que, mais de um século depois, poucos, como Ruy, se escandalizam com as mentiras. Parece que a maioria prefere fingir que as aceita. Depois, acabam convivendo com a mentira e são reféns dela.
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Fábula
Na homilia de domingo, no Mosteiro de São Bento de Brasília, o bispo de Formosa, dom Adair José Guimarães, relembrou uma antiga fábula judaica sobre a verdade e a mentira, que se banhavam num poço. A mentira, aproveitando-se de uma distração da verdade, saiu do poço, vestiu-se com as roupas da verdade e saiu pelo mundo.
Vestida de verdade, a mentira foi bem recebida por todos. Saída sem roupas do poço, a verdade percebe que as pessoas fogem dela, pois ninguém quer saber da verdade nua e crua.
A mentira vestida de verdade conta todos os dias narrativas com as mesmas intenções e as repete tanto que nossos cérebros acabam ecoando a mentira como verdade. Não exigimos que a travestida mentira demonstre o que nos impõe, apenas aceitamos sem perceber que estão nos treinando para não discutir. A rebeldia da desconfiança é desestimulada pela ameaça de censura e desaprovação social. A dúvida em busca da verdade sob as vestes da mentira nos desnuda perante os outros, que se afastam como se afastaram da verdade.
E quando passarmos a mentir para nós mesmos, é porque a verdade talvez já esteja afogada no fundo do poço.
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