Figura marcante para diversas gerações e, principalmente, um ícone responsável por abrir portas e quebrar barreiras da televisão brasileira, a jornalista Glória Maria morreu, ontem, no Rio de Janeiro. Pioneira em vários sentidos, seja por mudar a forma como se faz jornalismo para tevê, seja pela conquista de espaço na condição de mulher negra, Glória deixa um legado de luta, coragem e dignidade.
Repórter da Globo desde 1971, Glória foi pioneira em vários momentos da história do jornalismo brasileiro: a primeira a entrar ao vivo no Jornal Nacional, mostrou mais de 100 países nas reportagens que fez ao redor do mundo. Por anos, marcou não apenas o público que a assistia nas noites de domingo, no Fantástico, mas também quem dividia o foco das câmeras ao lado dela.
"O jornalismo brasileiro ainda resiste a abrir espaço de visibilidade para nós, jornalistas negras", afirma ao Correio a diretora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, jornalista e pesquisadora Dione Moura. Relatora do projeto de cotas e ingresso de indígenas na UnB, Dione tem como principal tema de pesquisa a história e a atuação de jornalistas negras brasileiras. "Nesse sentido, a força e competência criativa de Glória Maria, assim como sua voz nítida contra os mecanismos do racismo, foram fundamentais", complementa. "Glória Maria inspira e continuará a inspirar gerações e gerações de jornalistas negras brasileiras", define.
Vencedora do Prêmio Jabuti, a escritora Eliana Alves Cruz tem em Glória Maria uma referência. Formada em jornalismo, a escritora conta que a repórter era o rosto que a inspirava na profissão desde os tempos de faculdade. "O trabalho dela, além de ser maravilhoso, era o único rosto igual ao meu no jornalismo da televisão brasileira. E esse espaço único da Glória me falava de solidão, porque, como sou uma pessoa de classe média, me identificava muito com ela ao não ver ninguém como eu ao redor", conta. "Olhava para aquela mulher e ficava imaginando o que acontecia com ela nos bastidores. Guardadas as devidas proporções, era o que eu passava nos ambientes que frequentava, eu era a única. Era uma identificação imediata. Todas nós queríamos ser Glória Maria", relata Eliana Cruz.
Anos mais tarde, a escritora dividiu uma experiência profissional com Glória Maria durante a cobertura de um evento de esporte aquático no Rio de Janeiro. Atuando como jornalista, Eliana Cruz cuidava da assessoria da competição. Segundo ela, o presidente da confederação deu ordens de não deixar a imprensa entrar. Eliana disse, porém, que jamais barraria Glória, e ela foi a única a conseguir realizar a cobertura.
Cruz tenta explicar por que a Glória Maria exercia esse magnetismo sobre as pessoas. "Existe uma identificação, uma referência, uma deferência a uma profissional que é muito importante no que faz. É óbvio, acho que não somos únicas, não temos opiniões iguais, mas ela, com toda a personalidade dela, a forma dela de se afirmar, sem ceder ao discurso fácil, ao lugar comum que joga para a plateia, falando coisas que poderiam desagradar a determinados grupos, falava da humanidade dela, ou seja, do direito à opinião, à singularidade. Acho que a Glória é isso tudo. Para mim, ela fala sobre o que é ser uma mulher negra em espaços muito dominados por uma elite em que nós não estamos."
O abrir portas foi essencial para que a carreira de Glória Maria seja lembrada para sempre em território nacional. "Glória é uma inspiração para mulheres e homens negros que um dia sonharam em ser jornalistas e viram nela essa possibilidade de romper as barreiras do racismo. 'Você será a próxima Glória Maria'. Qual mulher negra jornalista nunca ouviu essa frase de um parente ou amigo? Assim como Antonieta de Barros e Almerinda Farias Gama, Glória Maria abriu caminhos e será para sempre uma referência", avalia Juliana Cézar Nunes, jornalista da EBC e integrante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do DF. "Uma referência de profissionalismo, coragem, dedicação, determinação e bom humor. Uma jornalista negra que enfrentou o racismo, o machismo e até mesmo a ditadura militar. Influenciou e vai influenciar ainda muitas gerações", completa.
A escritora e ativista Cristiane Sobral explica a importância da representatividade de Glória Maria para o telejornalismo brasileiro. "Um exemplo de pioneirismo negro no telejornalismo, excelência profissional e representatividade para o povo negro e brasileiro", afirma.
A escritora ressalta a influência de Glória Maria na vida dela. "Para mim, um exemplo de beleza e competência, enfrentando o racismo me fez acreditar na possibilidade de vencer também. Ao ver a sua imagem na tela eu corria, foi um dos primeiros espelhos negros que tive", complementa.
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Exuberância
"A gente parecia irmão, sabe?", contou o amigo e colega de profissão Pedro Bial, emocionado, ao programa Encontro de ontem. "A gente brigava muito, se implicava muito, depois se abraçava, se dava beijo na boca. Era uma farra a nossa relação." Depois, o jornalista postou uma imagem no Instagram com a amiga-irmã, com quem apresentou o Fantástico durante 10 anos.
No mesmo programa, o âncora William Bonner, do Jornal Nacional, falou sobre a perda de uma das maiores influenciadoras do jornalismo no país. "Eu sou um entre milhões de telespectadores brasileiros fãs do trabalho da Glória Maria; eu aprendi a gostar de telejornalismo vendo reportagens da Glória", afirmou.
Ele contou ainda sobre a oportunidade e a "glória" de conviver com ela no trabalho, como profissional de televisão, "de conhecer a exuberância da produção dela, a vontade com que ela sempre saía para realizar um trabalho e o alvoroço que ela provocava quando se preparava para sair". E finalizou: "Glória é um símbolo não só da Globo, mas é um símbolo do telejornalismo brasileiro".
Durante o Bom Dia Brasil, o jornalista Heraldo Pereira chorou ao lamentar a morte da repórter. O âncora do jornal matinal relembrou com carinho e emoção a importância que a jornalista teve em sua carreira: "Parte da minha vida", disse.
Tema da última publicação de Glória Maria nas redes sociais — um trecho de entrevista ao programa TV Mulher —, a apresentadora Marília Gabriela utilizou o Instagram para prestar homenagem à "linda pessoa, querida amiga e colega": "Que merda, que droga, que perda imensa para quem, para além da profissional, conheceu-a e trocou com ela alegria em festas, conversas produtivas, memórias a não esquecer. Adeus, lindeza, você fará demasiada falta. Descanse em paz, esta frase irritante para um desejo verdadeiro, ainda que inócuo", escreveu a jornalista.
Em entrevista à rádio CBN, a repórter Sônia Bridi, do Fantástico, se emocionou ao falar sobre "uma das maiores comunicadoras do país". Para Sônia, a quem Glória era inspiração, não só as mulheres, negras, jornalistas se espelham na repórter, mas "mulheres e negros em geral tiveram ali seu primeiro grande ícone". "Ela não abriu o caminho, abriu avenidas", disse.
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Dia de Iemanjá
A influência e a inspiração proporcionadas pelo duro e encantador trabalho de Glória Maria nas telas ultrapassou, e muito, a esfera do jornalismo. Na música, na política, na televisão, a repórter é, mesmo após a morte, um verdadeiro ícone brasileiro nas mais diversas searas.
"Se hoje tem um Emicida, é porque antes existiu uma Glória Maria", afirmou o rapper, que demonstrou diversas vezes admiração pela jornalista, no Twitter. "Devastado por sua passagem, amiga, e, ao mesmo tempo, grato por ter tido a honra de poder te chamar assim. Nossas aulas de natação vão ter que esperar… Que a terra lhe seja leve, professora."
Também no Twitter, o presidente Lula prestou condolência a "uma das maiores jornalistas da história da nossa televisão". "Glória foi repórter em momentos marcantes do Brasil e do mundo, entrevistou grandes nomes e deixou sua marca na memória de brasileiros e brasileiras", escreveu. "Meu abraço e solidariedade aos familiares, amigos, colegas e admiradores de sua carreira." A primeira dama, Janja, também deixou recado no perfil pessoal: "Será para sempre exemplo de talento e coragem".
Pelas redes sociais, o ator Lázaro Ramos homenageou a vida de Glória Maria. "Foi muito bom acompanhar seu trabalho e, mais ainda, desfrutar da sua agradável companhia. Sentirei falta de sorrir contigo."
Um dos maiores nomes da cena cultural negra brasileira, a atriz e cantora Zezé Motta também pontuou a coincidência: "Glória nos deixa no dia 2 de fevereiro, dia de Iemanjá. Ela, devota de Iemanjá, partiu no dia em que é comemorado o dia da Rainha do Mar…". Também relembrou a trajetória da comunicadora, "desde sempre derrubando gigantes". "Estávamos no início dos anos 1970, o período da ditadura do presidente Médici. Glória Maria era atrevida, teve vários problemas com os militares. Enfrentou dificuldades por ser mulher, por ser negra e por ter vindo de uma família pobre. Mas com muito trabalho, mostrou dignidade, conseguiu respeito, sua história sempre foi de superação", relembrou.
* Estagiárias sob a supervisão de Severino Francisco
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