No momento em que o Brasil abre os olhos para a tragédia humanitária com os Yanomami, outro povo indígena também sofre as consequências da exploração garimpeira em seus territórios: os Munduruku. Autodenominados de Wuyjuyu, a etnia domina a região do Vale do Tapajós, mas agora vive sob a ameaça constante de projetos hidrelétricos e das atividades ilegais dos garimpos de ouro.
A exploração trouxe doenças, fome, mercúrio, destruição, invasões e desunião, perigos que assolam muitos entre os 13.755 (segundo pesquisa de 2014 da Secretaria Especial de Saúde Indígena) Mundurukus, tipicamente localizados no Pará e no Amazonas. Agora, o povo de tradição guerreira enfrenta uma nova batalha em busca de seus direitos e sobrevivência.
Um dos problemas que afetam as aldeias Mundurukus no Médio Tapajós é a contaminação causada pelo garimpo ilegal. Entre 200 indígenas pesquisados, incluindo jovens e adultos, todos apresentaram algum grau de mercúrio no organismo, a maioria com índices altos, conforme aponta estudo da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz). O adoecimento ocorre porque o componente químico utilizado no garimpo contamina o pescado, que é a base da nutrição Munduruku, e também pode ser passado por mães lactantes ao bebê através da amamentação.
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Efeitos
Estudos da Fiocruz divulgados em 2021 mostram que 60% dos indígenas Munduruku da terra Sawré Muybu, na região de Itaituba, no Pará, têm mercúrio no organismo em níveis acima do limite tolerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Pesquisas da entidade também mostram que mulheres e crianças são as mais vulneráveis à intoxicação pelo metal tóxico, que atinge todas as 200 pessoas nas aldeias Sawré Muybu, Poxo Muybu e Sawré Aboy, do povo Munduruku. O produto usado no garimpo até mesmo muda a coloração da água do rio, que deixa de ser esverdeada e fica branca próximo da área de exploração.
Segundo os levantamentos, crianças de 10 anos de idade chegaram a registrar uma concentração de 18,9 mcg/g de mercúrio, taxa considerada altíssima. Os estudos esclarecem que comer peixes infestados aumenta as chances de contaminação porque o corpo humano não tem mercúrio e não elimina o que absorve, seja por contato direto ou consumo de animais e água contaminados.
O médico Lucas Albernaz, mestre em Clínicas Médicas, explica o risco do mercúrio para a saúde. “O mercúrio é considerado um metal pesado porque, diferentemente de outras substâncias, ele se acumula no nosso organismo. O humano não consegue fazer a metabolização dessa substância, para que assim ela seja eliminada ou utilizada de uma outra maneira dentro do nosso organismo. Os sintomas mais comuns na intoxicação pelo mercúrio podem ser tremores de insônia, perda de memória, cefaléia, fraqueza muscular, e os casos extremos podem evoluir até a morte”, explica.
A Fiocruz, por meio de uma nota, afirma que os resultados mostram que a “atividade garimpeira vem promovendo alterações de grande escala no uso do solo nos territórios tradicionais da Amazônia, com impactos socioambientais diretos e indiretos para as populações locais, incluindo prejuízos à segurança alimentar, à economia local, à saúde das pessoas e aos serviços ecossistêmicos”.
“Os indígenas da Amazônia dependem dos recursos naturais para viver, mas os impactos crescentes das atividades humanas ameaçam sua saúde e sua subsistência”, destaca o mais recente dos estudos da entidade.
O lado indígena
A Munduruku Maria Leusa, 35 anos, briga pelos direitos indígenas desde a adolescência. De lá para cá, foi se tornando uma liderança na aldeia. Ela percebeu que precisava “entrar na luta” quando viu que sua terra e locais sagrados estavam sendo destruídos, principalmente pela hidrelétrica, e que seu povo estava adoecendo.
“O que a gente vem enfrentando atualmente dentro do nosso território é uma invasão. Hoje, fazemos a proteção do território e a fiscalização autônoma para poder achar e expulsar os garimpeiros dentro daqui. Por isso que a gente é ameaçada de morte, por estar na luta contra essas coisas, essas invasões de garimpo”, denuncia.
Em um dos ataques à aldeia, Leusa conta que tudo foi queimado e que as pessoas precisaram deixar suas casas por meses. Porém, quando voltaram para reconstruir, a vivência era outra. Além do medo constante de uma nova invasão, também precisaram se acostumar com as novas condições.
“Antes, a gente tinha a pesca, ia tomar banho no igarapé, e isso foi praticamente destruído. Hoje, nós Mundurukus vemos diminuição de peixe, o rio contaminado, então não temos mais aquela liberdade, paz e esperança que sempre tivemos. Às vezes, a comunidade passa fome, é muita doença, principalmente covid e malária por conta da invasão”, desabafa a líder. Com essas dificuldades, a aldeia precisa mudar os hábitos e comprar comida, muito diferente do antigo modo de vida, que consistia na caça, na pesca e na colheita.
Para combater a crise, a resposta dos indígenas é direta e clara: acabar com o garimpo. Na visão da líder, a prática ilegal só trouxe invasão, destruição, malária, mercúrio, desunião entre o povo, doença e ganância. São tantos problemas que a metáfora utilizada é que o garimpo se tornou uma doença sem cura e que afeta toda a aldeia.
“Hoje sabemos que somos doentes. Não somos mais saudáveis como éramos antes. Hoje é muita dor no corpo, muita dor de cabeça, diarreia, vômito, malária, febre, e a gente fica nesse desespero. E isso é por conta do mercúrio. Imagina daqui a 10 anos como vai ser?”, indaga Maria Leusa.
Relação entre garimpo e mercúrio
As maiores consequências de garimpo em terras indígenas no Brasil estão nas áreas Munduruku e Kayapó, no Pará, e Yanomami, no Amazonas e Roraima, segundo o MapBiomas. Entre 2010 e 2020, a atividade cresceu 495% em áreas indígenas e 301% em parques nacionais e outras unidades de conservação na Amazônia. Quase toda (94%) a área ocupada por garimpos no país está em meio à floresta.
Na região, a atividade é quase toda ilegal e cresceu em 1,5 mil hectares anuais entre 1985 e 2009, e em 6,5 mil hectares ao ano a partir de 2010. Uma ferramenta do Ministério Público Federal (MPF) estima que a extração de 1 kg de ouro provoque quase R$ 2 milhões em danos socioambientais em meio à floresta.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) tem lutado contra a liberação da exploração de mineral em terras que são demarcadas para os povos originários. “Os garimpeiros invadem córregos e leitos de rios, causando desmatamento e poluindo recursos críticos com sedimentos e mercúrio, uma substância altamente tóxica. Estas atividades vêm provocando um agravamento de enfermidades letais, como a malária, doenças neurológicas, renais e de pele, causadas pela contaminação e envenenamento da água, que se somam a conflitos sociais como violência armada, tráfico de drogas, predação sexual de mulheres e meninas indígenas e assassinatos”, afirma.
Garimpo no Brasil
A Apib levanta que uma das maiores dificuldades encontradas hoje é rastrear o ouro que vem do garimpo ilegal. Segundo a organização de proteção indigena, um dos motivos dessa dificuldade é que a “corrupção e a falta de transparência nas cadeias de fornecimento tornam praticamente impossível rastrear a movimentação do metal ao redor do mundo sem a cooperação das empresas que o utilizam”.
A legislação brasileira é classificada também como permissiva pela militância da proteção ambiental, com quem quer fraudar a origem do ouro, afirmando que a declaração de origem do metal acontece apenas a partir da “boa fé do vendedor”, isentando qualquer responsabilidade dos compradores. Assim, o ouro ilegal é “legalizado” no momento em que as Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliárias (DTVMs) compram o produto. Pela lei atual, o órgão não precisa apurar a procedência do minério.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, recentemente comentou o caso em uma entrevista à Voz do Brasil, e classificou a lei do garimpo como inconstitucional. “Nós consideramos que essa lei é inconstitucional. Há uma ação proposta por alguns partidos. Eu enviei o tema formalmente ao advogado-geral da União, ministro [Jorge] Messias, para que ele estude, examine, e dialogue, claro, com o Supremo Tribunal Federal, porque a representação judicial da União é feita por ele, para que veja se é o caso de o Supremo julgar”, afirmou o ministro.
A líder Munduruku, Maria Leusa, reforça que as ações em defesa dos indígenas vão continuar no novo governo, especialmente para evitar o descaso do anterior. “Já fizemos várias denúncias e entrevistas contra o garimpo, culpando o governo por isso, que foi omisso por tudo que está acontecendo. Não dá mais. A gente já denunciava, o Estado já sabia, mas, com toda essa omissão, o governo está nos matando, assim como as pessoas e os países que apoiam a compra de ouro que sai com sangue dos nossos filhos. Isso é um socorro que ninguém atende”, encerra.
O Correio buscou contato com movimentos garimpeiros na região do Pará e com o governo federal, mas não obteve resposta até o momento; o espaço segue aberto.
Por que o mercúrio?
Os trabalhadores de garimpos artesanais e de pequena escala usam regularmente mercúrio para ajudá-los a separar o ouro de outros materiais, e a maior parte do metal tóxico acaba no meio ambiente. Em 2015, de acordo com a Avaliação Global do Mercúrio de 2018, o garimpo, artesanal e em pequena escala, lançou cerca de 800 toneladas de mercúrio no ar, aproximadamente 38% do total global, e cerca de 1.200 toneladas na terra e na água.
O envenenamento por mercúrio também representa uma ameaça grave e direta à saúde dos 12 a 15 milhões de pessoas que trabalham no setor em todo o mundo.
Ouro no Brasil
Uma pesquisa do Instituto Escolhas estima que 229 toneladas de ouro com indícios de ilegalidade foram comercializadas no Brasil entre 2015 e 2020, e que quase metade (47%) do ouro comercializado no Brasil seja de origem ilegal. A Suíça, a Itália e o Canadá importam um total de 60% da produção nacional, segundo estudo da Amazon Watch. A Chimet e a Marsam estão entre outras 16 refinarias, sediadas no Brasil, que vendem ouro brasileiro.
*Estagiária sob a supervisão de Andreia Castro
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