Amigos e parentes de vítimas da Boate Kiss realizaram, na madrugada de ontem, uma vigília em homenagem aos 242 mortos e 636 sobreviventes — que saíram feridos física e psicologicamente — de uma tragédia que completou 10 anos sem que ninguém tenha sido responsabilizado. O grupo pendurou faixas e cartazes na frente do local em que funcionava a casa noturna — no centro de Santa Maria (RS) —, que continua fechada e se tornou um memorial contra o descaso e a impunidade.
As homenagens foram organizadas pela Associação dos Familiares da Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e o Coletivo Kiss: Que Não Se Repita, que realizaram, além da vigília, debates sobre um episódio que, uma década depois, não tem solução. Depois do evento na madrugada de ontem, com uma salva de palmas às 2h30 — quando o incêndio começou —, amigos e parentes reuniram-se em frente ao Theatro Treze de Maio para a soltarem balões com a inscrição 10 anos boate Kiss 27 jan. Segundo o presidente da AVTSM, Gabriel Rovadoschi, o ato representa "uma mensagem cada vez mais alta, que chega a mais pessoas". A jornada em memória dos mortos termina hoje, com uma missa.
Em 27 de janeiro de 2013, durante o show da banda Gurizada Fandangueira, um artefato pirotécnico foi disparado de cima do palco, incendiando o teto da boate, que era feito de espuma. A casa noturna tinha apenas uma saída de emergência e as vítimas, a maioria de universitários entre 18 a 25 anos, não conseguiram deixar o local. As mortes foram provocadas por queimaduras, pisoteamento ou asfixia.
Durante o inquérito, constatou-se que quatro elementos foram fundamentais para a tragédia: superlotação (no salão havia em torno de 900 pessoas, apesar de a capacidade da boate ser de 600); uso de uma espuma inflamável como isolamento acústico; o disparo do sinalizador no ambiente fechado; e o descumprimento de protocolos de emergência — havia somente uma saída de emergência, o alvará estava vencido e os extintores, com defeito. O pânico e a falta de saídas fez com que pessoas também morressem pisoteadas ao tentar deixar a boate.
As vítimas fatais foram veladas coletivamente em um ginásio na cidade. O governo federal decretou luto de três dias em todo o país e, à época, a presidente Dilma Rousseff cancelou compromissos de domingo e foi a Santa Maria prestar solidariedade aos parentes das vítimas.
Condenação
Em dezembro de 2021, os sócios da Kiss, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, além de dois integrantes da banda que se apresentava na noite da tragédia, Marcelo de Jesus e Luciano Bonilha, foram condenados. O julgamento, conduzido pelo juiz Orlando Faccini Neto, foi tenso e um dos advogados de defesa chegou a desacatar o magistrado. O juri foi anulado em agosto de 2022 pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), que acolheu parte dos recursos das defesas. Não há data para uma nova sessão.
Delvani Rosso, um dos sobreviventes da tragédia, acusou os seguranças de impedirem a saída das pessoas. Contou ao júri que o irmão, que o salvou, precisava "puxar os homens pelo cinto e as mulheres pelo cabelo, porque se pegasse no braço tirava a pele das pessoas".
Emanuel de Almeida — que com o irmão gêmeo, Guilherme, comemorava o aniversário na Kiss — relatou, no julgamento, que "quando deu o principio de incêndio não soou nenhum alarme e não estava clara a rota da saída de emergência, também não teve iluminação".
Formada em direito, Jéssica Montardo Rosado lembrou ao júri que o irmão, Vinícius, morreu depois de salvar pelo menos 14 pessoas, intoxicado pela fumaça dentro da Kiss. "Ele pensou nos amigos que estavam lá dentro e voltou. Meu irmão era a melhor pessoa na minha vida. E olha que perdi muitos amigos lá. Muitos", recordou.